Este artigo procurará abordar recentes estudos divulgados pela mídia, que tratam da situação de vida da população brasileira, intercalando o mesmo com algumas definições de conceitos de pobreza, riqueza, miséria, entre outros. Nosso objetivo é tentar demonstrar que a ineficácia e ineficiência das ações governamentais no combate à pobreza – e mesmo o Plano Real, tão alardeado como benéfico para os mais pobres –, acentuaram as distâncias sociais entre os mais pobres e os mais ricos em nossa sociedade.

Serão abordados números atuais, em especial os do Censo de 2000, do IBGE, ainda que os mesmos sejam provisórios. Estudos do IPEA serão mencionados. Por fim, detemo-nos no Relatório Mundial do PNUD sobre Desenvolvimento Humano, que produz uma profunda radiografia da situação de povos e países, e não leva em conta apenas os aspectos econômicos.

O referencial teórico de boa parte do texto apóia-se nos trabalhos do Nobel de Economia de 1998, o indiano Amartya Sen, cujo livro nos ajuda a compreender e a desmistificar o discurso governista de ter feito alguma coisa de positivo para a pobreza no Brasil. O próprio relatório da ONU foi desenvolvido com metodologia aperfeiçoada por Amartya Sen. (1) Esse respeitado economista especializou-se em estudos das grandes fomes coletivas e da pobreza, a partir de trabalhos seus sobre a própria Índia; e posteriormente, na China e África. Ele se considera um seguidor de Adam Smith, mas um profundo crítico dos modelos concentradores de renda sem, no entanto, abrir mão evidentemente da defesa do mercado.

Ao final, faz-se algumas conclusões e aponta-se propostas para alteração dessa situação de concentração de renda, que envergonha a todos nós. Desde a implantação do Plano Real, em 1º de julho de 1994; portanto, há sete anos, economistas de plantão e porta-vozes da oficialidade de Brasília vêm alardeando que o número de pobres vem diminuindo e que os investimentos governamentais têm sido suficientes para minimizar os sofrimentos do povo.

Recentemente, entre os meses de maio e junho, ao país foi apresentado um conjunto de estudos e resultados que mostram completamente o oposto do que vem difundindo o governo. O primeiro deles é o Relatório Preliminar do Censo de 2000, do IBGE, divulgado ao grande público no dia 9 de maio último. Depois disso, veio à luz um excelente trabalho do economista Ricardo Barros, entre outros, de um órgão insuspeito. Trata-se do respeitado Instituto de Pesquisas Econômicas Avançadas – IPEA, vinculado ao Ministério do Planejamento. (2) Nesse trabalho seus autores mostram, com dados e fatos, que o Brasil não é apenas um país rico, mas possui de fato muitos recursos à sua disposição para combater a sua pobreza, porém a questão central continua sendo a forte concentração de renda que não vem cedendo nos últimos 20 anos.

Dados preliminares do Censo de 2000: quantos somos e como vivemos? (3)

Os dados integrais e já ajustados do Censo de 2000 deverão estar disponíveis apenas no início de 2002. Os anuários estatísticos brasileiros vêm saindo, nos últimos anos, com uma média de 18 meses de atraso. Os que foram divulgados, no entanto, já são substanciosos, ainda que abordem basicamente as questões relacionadas ao tamanho das populações nas cidades e ao local de suas moradias. E já nos revelam muitas coisas.

O Censo em um país não mede apenas quantos habitantes o integram. Mede também o tamanho das famílias, suas moradias, condições de vida, tipo de trabalho das pessoas e sua ocupação, grau de escolaridade, acesso aos serviços de saúde básicos, origem étnica de sua população etc.
Ter sempre em dia os dados populacionais e da sua economia, ajuda qualquer país a fazer um bom planejamento administrativo, gerir bem seus recursos, aplicar melhor seu dinheiro e procurar oferecer melhores serviços à sua população, em especial nas áreas identificadas como as mais carentes.

O Planejamento levado a sério no Brasil faz parte daquilo que o governo FHC vem querendo desmantelar há seis anos: a era Vargas. Não data de mais de 60 anos que as estatísticas e as pesquisas populacionais vêm sendo mais bem elaboradas e planejadas. Quando da realização de um Censo, como se sabe, mobilizam-se milhares de pessoas, técnicos, supervisores, sociólogos, estatísticos, geógrafos e tantas outras profissões, para elaborar o que mais se deseja: uma radiografia o mais real possível da sua população. (4)

Com base nos dados do IBGE, quando cruzados com os dados do Tribunal Superior Eleitoral, que fornece o perfil dos eleitores brasileiros, é possível realizar, de forma científica e muito precisa, as pesquisas eleitorais e de intenção de voto, cujos resultados, salvo algumas exceções, vêm sendo acertados pelos principais institutos de pesquisa do país. Com esses dados, os profissionais da área podem determinar o tamanho das amostras que se vão entrevistar, de tal forma que as mesmas sejam probabilisticamente iguais ao universo estudado. (5)

O Brasil é hoje o quinto país mais populoso da Terra, com 169.590.693 habitantes, ou, em conta de chegar, 170 milhões de pessoas. Perdemos apenas para a China (1,28 bilhão), Índia (1,01 bilhão), EUA (275 milhões) e Indonésia (225 milhões). Esses números, combinados com os do IDH do PNUD, indicam que o Brasil terá, em 2015, 201 milhões de habitantes.

No entanto, o que chama a atenção nesse aspecto é a densidade demográfica, ou o número de habitantes que vivem em um quilômetro quadrado de território. Vê-se, em nosso caso, que o Brasil continua sendo um dos países com uma das mais baixas taxas de ocupação territorial do planeta. Neste caso, comparando com os países que estão na nossa frente em termos populacionais: somos apenas 19,9 brasileiros por quilômetro quadrado (a Índia tem 304, a China 134, a Indonésia 119 e os EUA 29,3).

Mas mesmo essa ocupação territorial é completamente desigual em plano nacional. Há lugares densamente povoados e outros minimamente habitados. Há núcleos populacionais urbanos, como São João do Meriti, no Rio de Janeiro, com 12.897,8 habitantes por quilômetro quadrado, enquanto que Atalia do Norte, no Amazonas, tem apenas 13 pessoas morando a cada 100 quilômetros quadrados, ou densidade 0,13/Km2.

O Censo revelou uma concentração de grandes cidades. O Brasil possui hoje 5.507 delas em todos os Estados. Desse total, apenas 224 (ou 4,06%) concentram 51% de toda a população do país (ou 86 milhões de pessoas).

Os dados preliminares já nos apontam que as capitais e grandes cidades deixaram de ser pólos de crescimento e de migração interna, ou seja, não atraem mais tantas pessoas quanto já atraíram em passado recente. Todas elas cresceram a uma média menor do que a nacional.
Do total de crescimento verificado entre os dois Censos (1991 a 2000), 76,8% foram registrados a partir de cidades do interior do país, em especial as de porte médio, que passam a atrair mais pessoas. Os municípios pequenos e micros continuam com seu perfil, ainda rural em sua maioria.

Registre-se que num período de nove anos apenas, foram criados 1.106 novas cidades, ou uma média de uma cidade a cada três dias. Ou dito de outra forma, uma, em cada cinco cidades existentes no Brasil, surgiu na última década. Isso faz com que ainda persistam as populações rurais expressivas em certas regiões. Do total nacional, consideram-se moradores do campo 31.835.143 ou 18,77% da população (os urbanos são 81,23% ou 137.755.550 moradores).

Também com relação à moradia dos mais pobres o Censo fez algumas novas revelações. De um modo geral, os dados apontaram para um percentual de crescimento das moradias muito maior do que o próprio crescimento populacional. Isso pode indicar pelo menos duas coisas:1. crescimento da especulação imobiliária (muita gente constrói, mas para não morar no imóvel) e 2. degradação das condições dos que moram em uma residência.

Nos nove anos que separam os Censos de 1991 e 2000, o número de domicílios cresceu 83%, enquanto a população no mesmo período cresceu apenas 43%. Em números absolutos, o Censo mostrou um total de seis milhões de domicílios desocupados. Desconsiderados os aspectos metodológicos, sobre o que o IBGE considera domicílio desocupado (e aí incluem de fato até casas em cidades fantasmas que não mais existem); mas o fato é que esse contingente de casas poderia abrigar em torno de 22 milhões de brasileiros, que por sua vez vivem de forma precária nas periferias das grandes cidades.

Estatisticamente, isso faz cair, ainda que de forma artificial, o número de pessoas por domicílio no país, ou seja, quando dividimos o total da população pelo total de domicílios existentes, verificamos que em 2000 tínhamos apenas 3,75 pessoas por domicílio, enquanto que em 80 éramos 4,63 e em 91 éramos 4,10.

Mas esses números levam em conta o total de domicílios no país, incluso aí os fechados. O que se vê é também um grande disparate entre as moradias. Se por um lado, vê-se residências com mais de 60 quartos, como a mansão da família Safra no bairro do Morumbi, em São Paulo, por outro, nas favelas e cortiços, chega-se a morar mais de 18 pessoas em apenas um só cômodo. É a precarização das vidas nas grandes cidades.

Os dados do Censo 2000 são inequívocos ao apontarem uma migração interna nas grandes cidades; coisa do tipo fluxo migratório do centro para as periferias. Isso acaba acarretando uma precarização das moradias, já apontada por diversos estudos aos quais se tem tido acesso, em especial o Mapa da Pobreza e da Exclusão Social, elaborado pela PUC de São Paulo.

Essa migração interna nas grandes cidades acaba por acarretar um impacto muito grande na qualidade de vida dos moradores da periferia. Além de encarecer os serviços urbanos que devem ser levados a cada dia para locais mais distantes, cria uma situação de paradoxo completo: o centro, com serviços instalados há muito mais tempo, vai ficando jogado às moscas, precarizado, com uma densidade demográfica pequena, num local onde exatamente existem praticamente todos os serviços urbanos já instalados (luz, água, gás, telefonia, transportes, escolas etc.).

Assim, quanto mais as periferias vão crescendo, em função da especulação imobiliária, mais precária torna-se a vida das pessoas nessas localidades, ao passo que onde as condições de vida urbana são melhores, moram poucas pessoas, que possuem um poder aquisitivo maior. É uma das grandes injustiças geradas pelo sistema capitalista.

Finalmente, pegando-se como exemplo a maior cidade da América Latina, que é São Paulo, vamos perceber exatamente o significado dessa onda migratória para as periferias das grandes cidades. O centro da cidade perdeu em nove anos 19,7% de sua população que se mudaram para a periferia, ou em outras palavras, um em cada cinco moradores dessa localidade deslocou-se para a periferia, tornando o centro um local sem nenhuma vitalidade, às vezes quase deserto.

Por outro lado, em algumas regiões da periferia da mesma São Paulo, o crescimento observado foi exponencial e absurdamente grande, como é o caso do bairro Anhanguera, que nestes mesmos nove anos, inchou em 210%; a Cidade Tiradentes aumentou em 98% e Parelheiros inchou em 84%, sem que essas localidades recebessem, com essa mesma velocidade, os serviços urbanos necessários a uma vida digna.

Num momento em que procuramos estudar e aprofundar, no âmbito do pensamento marxista brasileiro, o conceito de proletariado dentro das categorias que o próprio Marx estabeleceu, os dados e números do Censo indicam inequivocamente o aumento e o crescimento do proletariado brasileiro e o local onde ele se encontra, nas periferias das cidades grandes e médias.

Concentração de renda e riqueza, uma vergonha internacional

Passemos agora aos comentários sobre os aspectos da concentração de renda e de riqueza. Esse é um dos maiores objetos de estudo de economistas e sociólogos que procuram desvendar como ocorre, e se é que ocorre, alguma justiça distributiva, maior eqüidade na distribuição e no acesso dos recursos disponíveis para a população.

Afinal de contas: o Brasil é um país rico ou pobre? Por que as distâncias sociais tão grandes entre sua população? Se em determinados momentos da nossa história crescemos a índices altíssimos, por que existem muitos pobres ainda? E por que, mesmo gastando rios de dinheiro em determinados programas sociais, a situação não se altera? Essas e outras perguntas muitos economistas e sociólogos vêm tentando responder com seus estudos. Alguns chegam até a calcular exatamente o montante de dinheiro que seria necessário para se gastar na tentativa de erradicar a miséria e a pobreza no Brasil.

De fato, “o Brasil não é um país pobre, mas um país com muitos pobres”. (6) O entendimento do conceito de pobreza, expresso por muitos autores “refere-se a situações de carência em que os indivíduos não conseguem manter um padrão mínimo de vida condizente, com as referências socialmente estabelecidas em cada contexto histórico”. (7) Procura-se ainda estabelecer um outro conceito, o de indigência social, para orientar estudos sobre a miséria no país. Barros & Outros, assim definem a indigência: “refere-se somente à estrutura de custos de uma cesta alimentar que contemple as necessidades de consumo calórico mínimo de um indivíduo”, (8) ou seja, para se medir a indigência leva-se em conta um mínimo de ração alimentar e na pobreza, deve-se levar em conta além da alimentação, outros fatores como vestuário, habitação, transportes, entre outros.

De uma forma mais simples e mais didática, o professor Amartya Sen nos dá uma outra forma de ver a pobreza, que “deve ser vista como privação de capacidades básicas em vez de meramente como baixo nível de renda”. (9) Ele liga a pobreza, portanto, às privações intrinsecamente importantes, ao contrário da renda baixa, que é vista apenas instrumentalmente.

A grande conclusão a que se chega nesse estudo, e mesmo no da FGV, apoiado pelas teorias do Nobel de Economia de 1998, é que não basta crescimento econômico. É preciso que se adotem políticas redistributivas de renda, ou seja, se não se alterar a concentração de renda nacional, a situação não se modificará. Portanto, a questão central passa a ser a desigualdade. É claro que devemos pensar em crescer e desenvolver sempre o país, de forma que este acompanhe pelo menos as taxas mínimas de natalidade do povo. Mas o fundamental é crescer com justiça, eqüidade, distribuindo renda e riqueza. Isso faz cair por terra aquela falácia antiga de que seria preciso sempre esperar para crescer o bolo, para depois dividi-lo; o que nunca ocorreu. Hoje não se fala mais em divisão do tal bolo fictício, mas apenas em “crescer, crescer e crescer”.

Os dados do IPEA apontam para uma manutenção da quantidade de pobres no país em 22 anos (entre 1977 e 1999). E o único momento em que essa situação se altera, com real significado, foi durante o Plano Cruzado em 1986 e mais recentemente, mas ainda com menos intensidade, a partir de 1995 com o Real. O próprio governo usa esses números para cantar loas ao seu Plano estabilizador da moeda. Mas mascara uma questão: ele usa números relativos, apresentados em termos percentuais, ou seja, de fato, desde 95 a pobreza vem se estabilizando na casa dos 34% da população, mas não diminuindo. Mas em números absolutos isso vem significando um número de 53 milhões de pobres no país, quando em 1979 eram 40 milhões. São muito pobres e ganham também muito pouco.

Como se sabe que não há grandes problemas de escassez no país, as coisas estão ligadas diretamente ao poder aquisitivo da população e à possibilidade de ter acesso a determinados recursos. E Barros conclui: “a pobreza no Brasil é, sobretudo um problema relacionado à distribuição de recursos e não à escassez”. (10) Aliás, o próprio Malthus, desde 1798 quando da publicação de seu famoso trabalho, onde previa que a população da terra cresceria em uma proporção geométrica, enquanto a produção de alimentos apenas em escala aritmética. Ora, de lá para cá, a população, que era 1 bilhão, cresceu 6 vezes e sabe-se que a fome no mundo não é por falta de alimentos; pelo contrário, existe até um excesso deles. (11)

Há estudos que fazem comparações do nosso desempenho nesse aspecto com o de outros países com o mesmo perfil de renda per capita que o Brasil. Verifica-se que a pobreza em nosso país é muitas vezes superior à média desses países e isso só pode ser decorrente da má distribuição de riquezas. (12) No mesmo estudo do IPEA, é apontado o volume de recursos necessários para se debelar a pobreza no país, com políticas redistributivas. Chegam à conclusão de que seria necessário gastar algo como 32 bilhões de reais para essa finalidade. Esse valor, por coincidência, é exatamente o que resultará de superávit primário nas contas nacionais ao final de 2001, mas estará totalmente comprometido com o pagamento de juros e serviços da dívida brasileira. (13)

Há também outras comparações possíveis, que até já estamos acostumados a ouvir. Trata-se de estabelecer razões entre determinadas faixas percentuais da população e de sua renda. A mais comum usada internacionalmente e que pode ser objeto de comparação no Brasil é a razão entre os 10% mais ricos da população e os 40% mais pobres, ou seja, de quanto se apropriam da renda nacional essas duas parcelas da população, ou seja, de um lado, 17 milhões de pessoas e, do outro, 68 milhões. A razão vai apontar um número cuja interpretação será: quanto menor ele for mais justa a distribuição de renda e quanto maior, mais injusta.

Pois bem, no mencionado estudo do IPEA, e utilizando-se de dados do Banco Mundial envolvendo 55
países cujos dados foram apresentados, a grande maioria dos países tem razão menor que 10. Em apenas seis, a razão é superior a 20. O Brasil é o campeão na 55ª posição – último lugar, com uma razão de 28 (14). Um dos índices estatísticos bastante conhecido que mede concentrações (e não só de renda) é o de Gini. Também com dados disponíveis do Banco Mundial, o IPEA constrói um Gráfico que envolve 94 países. Os índices de Gini variam de 0,0 a 1,0. Se o índice fosse 0,0 num determinado país, significaria que todos se apropriariam da mesma fatia da renda e se o índice fosse 1,0, apenas uma única pessoa se apropriaria de toda a renda.

É claro que esses dois extremos não existem em nenhum lugar. Mas no Brasil, entre os 94 países estudados, só perdemos para a África do Sul e Malavi, de forma que ficamos com a 92ª posição nesse macabro ranking (15).

Por fim, os economistas em tela usam outra razão comparativa para mostrar o quanto injusta é a distribuição de renda no país. Esta ocorre com as parcelas dos 20% mais ricos e os 20% mais pobres da população e qual a razão entre elas, ou seja, de quanto se apropriam da renda os 34 milhões de pessoas mais pobres e mais ricas do país. Pois numa comparação internacional com dados de 84 países, cujas tabelas foram construídas a partir de dados do PNUD da ONU, o Brasil fica na lanterna, na 84ª posição (16).

Um outro aspecto que ilustra a desigualdade no país, na mesma linha de comparações com faixas de percentual populacional, vai no sentido da apropriação da Renda Nacional entre os mais ricos e os mais pobres. Só que aqui, levados ao extremo. Pois bem, a parcela dos 1% mais ricos apropriam-se de uma fatia da Renda Nacional (13,3%), que é praticamente do mesmo tamanho do que se apropriam os 50% mais pobres (12,6%). Ou dito de outra forma: 1,7 milhão de pessoas apropria-se do mesmo volume de Renda Nacional que outros 85 milhões de brasileiros (ver tabela).

Uma conclusão a que chegaram os economistas do IPEA acaba por demolir os propagandistas do Real: “no que se refere ao Real, não dispomos de evidência alguma de que tenha produzido qualquer impacto significativo sobre a redução no grau da desigualdade, apesar de a pobreza ter sofrido uma redução (…)”. (grifos nossos) (17)

A partir de um outro estudo, que envolve estoques de riqueza, temos os dados que apenas 1% da população brasileira, ou seja, 1,7 milhão de pessoas (ou 425 mil famílias), abocanha 17% da renda nacional e 53% de todo o estoque líquido de riqueza privada (aí incluídos propriedades e bens materiais). Só para fazermos uma idéia em termos comparativos, nos Estados Unidos, grande propagandeador do neoliberalismo moderno, o 1% mais rico amealha 8% da renda nacional e fica com 26% da riqueza. E olha que os EUA não são um país que se possa dar como exemplo de distribuição de renda e riqueza (os EUA ficam em 16ª colocação, em 48ª e em 55ª posição respectivamente nos três paradigmas).

Em outras palavras, pode-se dizer que os mais ricos brasileiros são, relativamente à sua renda, pelo menos duas vezes mais ricos que os ricos norte-americanos! Esse grupo de 1% mais rico no Brasil atinge uma renda familiar anual de U$ 400,000.00 (ou R$ 1.036.000, ou seja, mais de um milhão de reais ao ano de renda) (18) ou 25 vezes mais que a renda nacional média dos restantes 99% da população e sua riqueza familiar alcança US$ 2,700,000.00 (equivalente a R$ 6.993.000,00 reais), equivalente a 110 vezes a riqueza média do resto do povo brasileiro. (19)

No outro extremo da população, os 40% mais pobres, que perfazem em torno de 68 milhões de habitantes ou 17 milhões de famílias, se apropriam apenas de 8% da renda nacional ou uma renda familiar média de apenas US$ 1,000.00 ao ano (R$ 2.590,00 ou R$ 215,00 ao mês para a família inteira, ou ainda R$ 53,75 por pessoa).

Há que se destacar também que a participação dos salários na Renda Nacional vem diminuindo gradativamente no Brasil nas últimas décadas. O capital vai ampliando a sua participação cada vez mais. Em 1950, os salários representavam 55,5% da composição do PIB brasileiro. Esse percentual caiu para 45% em 1990 e atinge 38% em 1996. No outro lado da conta, o chamado excedente operacional (lucros, juros, aluguéis e outras rendas), aumenta entre 1990 e 1996 de 33% para 41%.
O salário mínimo também foi arrochado sistematicamente desde que foi criado em 1943 por Vargas. Diversos estudos mostram que em 1940 ele valia R$ 592,96, passando para R$ 373,71 em 1980, sendo que a partir de maio de 2001 valia R$ 181,00 (hoje, isso significa US 70.00; um dos mais baixos do continente latino-americano).

Convém lembrar que os 10 anos de neoliberalismo no Brasil fizeram aumentar a dívida pública sem a contrapartida de investimentos sociais. Entre 1994 e 1998, a dívida pública saltou de 28,1% para 42,6% do PIB brasileiro, um crescimento de 51,6% enquanto os investimentos sociais no mesmo período cresceram apenas de 11,9% para 12,6%, um acréscimo de ínfimos 0,7%.

A dura realidade da exclusão social

Os dados do Índice de Desenvolvimento Humano da ONU, feito a partir do programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento – PNUD, divulgados mundialmente no último dia 10 de julho mostram outros aspectos da dura realidade nacional. (20)

O critério para a obtenção de novo índice, que mediria o Desenvolvimento Humano, foi estabelecido a partir de dados e informações que não levassem em conta somente a renda per capita da população ou aspectos meramente econômicos, mas também dados e índices relacionados com a saúde (expectativa de vida ao nascer) e educação (taxa de matrícula e índice de alfabetização da população acima de 15 anos). Esses três fatores – renda, saúde e educação –, são combinados e chega-se a um valor final de varia, tal qual o índice Gini, de 0,0 até 1,0, de forma que quanto mais próximo o resultado for de um, melhor será a qualidade de vida e do desenvolvimento do país. (21)

Nesse ranking de 162 países, cujos dados foram considerados confiáveis; portanto, o Brasil fica na 69ª posição e o primeiro lugar fica com a Noruega (0,939) e os EUA ficam em 6º lugar, atrás, pela ordem, de Austrália, Canadá, Suécia e Bélgica.

Na verdade, entre a divulgação dos dados de 1999 e de 2000, ainda que o Brasil mantenha por um artifício a mesma colocação, vê-se que a melhora é infinitesimal, quase desprezível. No item expectativa de vida, o número anterior era de 67,3 anos, tendo passado para 67,5 anos, ou seja, uma melhora de dois meses de vida apenas. A taxa de alfabetização diminuiu apenas 0,4% e uma melhora um pouco maior, foi a da taxa de matriculados, elevando-se de 78,3% para 80,0%, ou seja, um acréscimo de 1,7%. Em relação à renda per capita, ainda que pequena, houve na verdade uma diminuição de US$ 34.7 dólares por pessoa (hoje se situa na faixa de U$ 7,037.00 e era 7,071.70 em 1999). (22)

Essa metodologia é inovadora, e como já se disse, foi desenvolvida pelo Nobel de Economia, o indiano Amartya Sen e se fosse levado em conta apenas o PIB per capita, o Brasil ocuparia a 57ª posição entre 162; se fosse levado em conta o índice na área da educação, ficaríamos com a 79ª posição e se fossem levados em conta apenas os dados da saúde, ficaríamos apenas na humilhante 95ª posição. Foi a combinação desses três índices que resultou na 69ª posição (na verdade seria 74ª).

Destaca-se ainda que a posição brasileira em comparação apenas com os países vizinhos da América Latina e Caribe, fica em 14º lugar, atrás de muitas pequenas repúblicas e países pouco desenvolvidos. Mesmo esses pequenos países, em alguns dos 3 aspectos do IDH diferenciados mostram algumas “ilhas de excelência”, como é o caso da República Dominicana, com 98,4% de alfabetização de adultos; Bahamas com PIB per capita de US 15,528.00 e Argentina com 83% de taxa de matrículas. (23)

Alardeou-se que o Brasil “subiu” 5 posições com relação aos dados anteriores. Um verdadeiro engodo, que o próprio escritório do PNUD no Brasil encarrega-se de desmentir. Ocorre que pelo Brasil ter sido classificado em 69º lugar não há nada de extraordinário nisso, exatamente porque neste ano, 12 países foram excluídos da lista por não apresentarem dados confiáveis e, entre esses, 6 estavam na frente do Brasil na pesquisa anterior. Desses seis países, três deles inclusive são da América Latina, pela ordem: República Dominicana, Granada e Cuba. (24) Assim, o correto seria o Brasil ainda estar posicionado na 74ª colocação.

Por fim, há um conceito novo introduzido pela ONU, denominado IPH – Índice de Pobreza Humana, também do professor Sen que nos indica que quanto mais alto o índice, pior a situação do país. Ele leva em conta as privações de uma sociedade, como o percentual de pessoas que não se espera que vivam mais de 40 anos, a taxa de analfabetismo adulto, o acesso à água potável, a serviços de saúde e de saneamento, crianças com menos de 5 anos com peso inferior ao normal e a diferença de renda entre a parcela dos 20% mais ricos e os 20% mais pobres. (25)

Nesse ranking, cuja primeira colocação é do Uruguai, com 4%, o Brasil ficou em 18º lugar, com 12,5%. Esse percentual reflete o índice de pessoas que passam privações graves nos três aspectos do desenvolvimento humano medido pelo IDH: longevidade, conhecimento e padrão de vida digno.Assim, os estarrecedores dados que vem à luz com esse trabalho nos indicam os seguintes índices: a) 11,3% não devem ultrapassar a idade de 40 anos; b) 15,1% de todos os adultos são ainda analfabetos; c) 17% de toda a população não têm acesso à água potável; d) 6% de todas as nossas crianças com menos de 5 anos, não atingem o peso necessário; e) 9% de toda a população (15,3 milhões) vivem com menos de US 1.00 por dia (R$ 2,50 ao dia ou R$ 75,00 ao mês) e f) 22% da população (37,4 milhões de pessoas) vivem com menos de US2.00 (ou R$ 5,00 ao dia ou R$ 150,00 ao mês); considerada pelos critérios do PNUD a linha de conceituação da pobreza.

Conclusões necessárias

Um país onde a política econômica é voltada para a remessa sistemática e disciplinada de bilhões de dólares ao exterior a título de pagamento da dívida externa, amortização e serviços, que compromete seu orçamento em mais de 71% com os pagamentos de dívidas, e que remeteu, entre 1995 e 1998, 128 bilhões de dólares ao exterior, (26) só pode beneficiar mesmo as elites e as classes dominantes. Esse volume de recursos poderia minimizar imensamente o sofrimento do povo brasileiro.
Ao sermos impactados pela divulgação de tais dados, sejam eles do Censo, da ONU ou do IPEA, devemos levar em conta as mensagens que esses números e dados nos mostram. E podemos resumir essas mensagens em termos gerais da seguinte forma:

1. é falácia a história de “crescer” o bolo para depois repartir – os dados são inequívocos ao mostrar que mesmo com crescimento econômico, a faixa de pobres mantém-se estável e a concentração de renda e riqueza não é afetada;
2. é preciso distribuir renda – se não forem adotadas políticas redistributivas de renda – e isso por um novo modelo em uma nova ordem de desenvolvimento econômico do país que fuja do modelo neoliberal – a situação só tende a piorar, concentrando-se renda, riqueza, terras e população;
3. é preciso melhorar a escolaridade – e isso significa anos de estudos de boa qualidade e não simplesmente matrículas nas escolas, muitas vezes em busca de merenda escolar, bolsa escola etc.;
4. avanço tecnológico – é preciso fazer com que todos os avanços tecnológicos, na indústria de fármacos e na genética, possam ser imediatamente estendidos ao povo, para uma melhoria da sua qualidade de vida;
5. dívida pública e orçamento – é preciso alterar imediata e profundamente, a forma e a concepção da construção dos orçamentos nacionais, estaduais e municipais, de maneira que busquemos uma política de grande desenvolvimento interno e estímulo ao consumo interno de massa e reversão imediata dos acordos com os organismos multilaterais de crédito, em especial o FMI, aplicando todo o superávit primário do orçamento, em melhorias para o povo, distribuição de renda e desenvolvimento nacional.

Lejeune Mato Grosso Xavier de Carvalho é sociólogo, professor de Sociologia, Ciência Política e de Métodos e Técnicas de Pesquisa da Universidade Metodista de Piracicaba e presidente da Federação Nacional dos Sociólogos – Brasil (FNSB).

Notas
(1) Desenvolvimento como liberdade. Tradução de Laura Teixeira Motta. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.
(2) BARROS, Ricardo Paes de & Outros. A estabilidade inaceitável: desigualdade e pobreza no Brasil. Brasília. Ministério do Planejamento, IPEA. Junho de 2001. ISSN 1415-4765 – 24 páginas.
(3) Este capítulo é uma versão modificada e ampliada de meu artigo publicado na Classe Operária n.º 202, ano 76, de 20 de junho de 2001, página 8, cujo título foi “Censo 2000: a revelação de um novo Brasil”.
(4) Os referenciais teóricos para as bases amostrais do Censo no Brasil podem ser obtidas em BIANCHINI, Zélia Magalhães. Estudo de Alternativas para Frações de Amostragem do Censo Demográfico 2000. Rio de Janeiro: IBGE – Diretoria de Pesquisas, 1999.
(5) Isso só passou a ser possível com base nas teorias de Fermat e Pascal, matemáticos do século XVIII
(6) BARROS, Ricardo & Outros, Op. cit. Página 1.
(7) BARROS, Ricardo & Outros, Op. cit. Página 2.
(8) Ibidem página 2, nota 5.
(9) Op. Cit. Página 109.
(10) Ibidem página 5.
(11) Amartya Sen, op. cit. página 237.
(12) Ibidem página 6.
(13) Ibidem, página 8, Tabela 2.
(14) Ibidem, página 12 e Gráfico 5.
(15) Ibidem página 12 e Gráfico 4.
(16) Ibidem página 14 e 15, Gráfico 6.
(17) Ibidem, página 17.
(18) Leva-se em conta a cotação do dólar do dia 13 de julho, onde precisávamos R2,59 para comprarmos US$1.00.
(19) Os dados sobre concentração de riqueza foram obtidos a partir de um
trabalho intitulado “Diagnóstico Estrutural da Pobreza”, de autoria do deputado federal Aloisio Mercadante,
do Partido dos Trabalhadores/SP.
(20) Os dados completos do Relatório Anual de Desenvolvimento Humano da ONU, em sua versão em inglês podem
ser obtido integralmente (274 páginas)
no seguinte endereço da Internet. O jornal Folha de São Paulo publicou na sua
edição do último dia 10 de julho de
2001, Caderno A, paginas 9 a 11,
extenso comentário sobre o mesmo.
(21) Folha de São Paulo, 10 de julho
de 2001, Caderno Brasil – A, página 10.
(22) Há um importante esclarecimento metodológico a ser feito, quando se
utiliza o dólar para essas comparações. É preciso antes de tudo ajustar os valores de poder de compra dos países comparados e as questões relacionadas com o câmbio.
(23) Nesse aspecto, convém ressaltar que o governo tem feito uma grande onda para a inclusão de matriculados nas escolas, isto para que os registros sejam artificialmente alterados. O próprio critério mesmo de
não existir mais a reprovação esconde um duplo problema: aumentar índices de
escolaridades artificialmente e deixar de construir escolas em número suficiente, aumentando a média de alunos por sala
de aula (em SP, segundo o último boletim da Apeoesp, já chega a uma média de
36,7 por sala, quando o máximo deveria ser de 25).
(24) Todos os dados que a seguir serão mencionados do mencionado Relatório (Human Development Report 2001 for the United Nation Development Program – UNDP), obtidos da versão brasileira
do Relatório, coordenado sob a responsabilidade de José Carlos Libânio.
(25) Na verdade, existem dois IPHs:
o feito para os países mais ricos e
desenvolvidos, cujos critérios de
riqueza e pobreza são diferentes
e o IPH para os 90 mais pobres.
(26) MARINGONI, Gilberto, “Um Plebiscito para a Dívida Externa”, Revista Princípios, n.º 58, página 11, Agosto de 2000, Editora Anita Garibaldi, São Paulo.

EDIÇÃO 62, AGO/SET/OUT, 2001, PÁGINAS 40, 41, 42, 43, 44, 45, 46, 47