O trabalho intelectual vive mudança estrutural em sua organização, iniciada ainda no século XIX, mas que continua em expansão até os dias de hoje, quando a universidade – talvez a última esfera da produção intelectual que ainda atua em moldes clássicos – passa por uma crise para submeter-se à produção coletivizada sob a forma de uma organização da produção propriamente capitalista.

Rastreando o fio da história que nos conduziu a este ponto, observamos que, em meados do século XIX, as conseqüências do capitalismo para a vida nas cidades já eram de tal monta que tornaram obsoletas as multimilenares práticas de construção urbana ou mesmo as dos profissionais de engenharia e arquitetura que até então lidavam eficazmente com a matéria. Para problemas que, pela primeira vez, extrapolavam o conhecimento dos ofícios tradicionais, novos atores tiveram de ser convocados ao trabalho. Médicos, advogados, filantropos e o embrião dos que se transformaram em administradores públicos foram chamados para contribuir com sua experiência para a solução interdisciplinar dos problemas da cidade industrial. Junto com as bases do planejamento urbano moderno, iniciou-se também a experiência sistemática do trabalho intelectual coletivo centrado em um tema empiricamente dado que organizava a visada comum de campos anteriormente distintos. Século e meio depois, esta é a forma hegemônica de organização das relações de produção intelectual. As conseqüências são de tal ordem que apenas podemos esquematizar alguns de seus impactos éticos, epistemológicos, sociais e econômicos.

Depois do planejamento urbano, novos campos da cultura vieram a produzir em termos similares. De fato, cinema e televisão, as artes do século XX, já foram fundadas com base no trabalho de uma equipe interdisciplinar, burocraticamente organizada sob o domínio do capital. As conseqüências advindas para o resultado do que até então se esperava de uma prática ligada ao belo foram de tal forma revertidas, que as novas expressões artísticas, fruto de inegáveis avanços tecnológicos, foram também objeto de um vasto veio de análises teóricas e ideológicas marxistas, que investigaram a indústria cultural nascente e a relação entre a qualidade dos seus produtos e a formação degradada de um público-massa de espectadores.

Mas todo o potencial do trabalho intelectual coletivo só demonstrou suas reais possibilidades quando físicos e engenheiros se uniram para produzir a ciência e a técnica necessárias para levar a cabo o Projeto Manhattan, que criou a bomba atômica no final da II Guerra. É preciso reconhecer, com a montagem dessa equipe que produziu ciência pura da mais alta qualidade, o momento de virada em que governos e empresas se convenceram de que era possível dirigir a produção de conhecimento e cultura para atingir seus interesses, a tempo e a hora, liberando-se da autonomia e das escolhas epistemológicas, éticas, estéticas e políticas do intelectual de ofício. Lembremos que, desde o Renascimento, tal intelectual trabalhara de forma crescentemente autônoma, definindo os seus objetivos de acordo com a lógica interna de seu próprio campo e arcando pessoalmente com as conseqüências positivas ou negativas que pudessem advir do processo de legitimação dos seus resultados.

De fato, o Projeto Manhattan fez mais do que produzir a bomba atômica. Criou, junto com o artefato bélico que mudou completamente as perspectivas de futuro da humanidade, uma organização do trabalho de pesquisa que envolve a divisão hierárquica entre concepção e desenvolvimento; o parcelamento de tarefas; a adoção de frentes de investigação que se instruem em tempo real; a internalização da instância crítica; a definição externa – ainda que negociada quanto à sua factibilidade tecno-científica – dos objetivos do trabalho; e, evidentemente, a independência dos processos em relação às escolhas éticas de cada pesquisador, que passa a ser apenas um elo sempre substituível numa engrenagem. Taylorismo no trabalho intelectual, para simplificar.

As conseqüências tecnológicas, sociais e econômicas dessa mudança fazem parte de nosso cotidiano em casa, no trabalho, na vida política e social, marcadas que estão pelas conquistas da pesquisa resultante, e falam por si. Mas, se o vasto aumento da produtividade do trabalho intelectual inegavelmente se associa a essa produção de grupo, no entanto, outras características, seja para o produto, seja para a organização do trabalho intelectual, ficaram sem análise ou mal-entendidas, embora não sejam menos contundentes e até possam ser bastante devastadoras para o desenvolvimento que potencializaram em arte e ciência.

Crescentemente, depois da II Guerra, o fazer intelectual passou a conviver com a separação entre o produtor e seu meio de produção pela via de sua subsunção a um controlador das relações sociais de produção, conformando uma relação de trabalho que, para além da presença do trabalho complexo no chão da fábrica, é típica do capitalismo; porém tinha sido até então característica apenas do trabalho manual. É preciso enfatizar aqui o seu aspecto crescente, porque a mudança tem sido lenta – e isso é uma das fontes da dificuldade em identificá-la – mas inexorável. Lembremo-nos que a separação entre o docente pesquisador júnior e seus meios de produção foi observada pioneiramente por Weber em 1919, em seu célebre ensaio A ciência como vocação. Sua observação, até onde sei, não foi retomada ou desenvolvida, seja pelos weberianos – a corrente sociológica hegemônica em nossos dias – seja pelos marxistas, dos quais talvez pudéssemos esperar uma sensibilidade mais aguçada sobre a questão.

A luta das empresas e do governo tem sido, desde o final da II Guerra, impor o controle sobre a autonomia do trabalho intelectual: mecanismo interno à esfera da produção que facilitou o avanço capitalista atual, normalmente batizado de sociedade do conhecimento, mas que é necessário nomear como capitalismo do conhecimento. É do controle do produto do trabalho intelectual, bem como da direção a ser dada à pesquisa, que o capitalismo extrai os superlucros de inovação que garantem o avanço neoliberal que vivemos. A nova economia, medida pelo índice Nasdaq, desafia seus analistas para a compreensão de seus limites e de sua lógica e extrapola os conhecimentos já desenvolvidos para pensar a velha economia. Mas já produziu seus heróis, Bill Gates o mais notório deles.

Outra mudança associada à questão pode ser identificada em toda movimentação político-legal em torno da propriedade intelectual e patentes. As leis até agora vigentes deram conta de forma mais ou menos adequada da situação clássica do indivíduo de engenho produzindo solitariamente; mas já precisam ser substituídas para permitir a apropriação pelo capital dos superlucros gerados pela inovação.

Retornando à esfera da produção, observamos que, se a mudança aproxima a organização do trabalho intelectual daquela típica do trabalho manual no capitalismo, então, aqui está sendo defendido que o aprofundamento da divisão do trabalho pela extração do mais-produto específico do trabalho intelectual é a base e conseqüência da subsunção da capacidade intelectual de trabalho. Politicamente deslegitimado, por não se apropriar do produto de seu próprio trabalho, o intelectual pode ser mais facilmente levado a aceitar uma posição hierárquica de subordinação, onde passa a desenvolver trabalhos definidos por outros. Ao mesmo tempo, esta prática reforça e legitima sua subsunção, justificando uma interpretação política de sua minoridade intelectual, daí em diante um pressuposto do processo. Sua proletarização deixa de ser apenas uma metáfora ligada ao assalariamento e a um vínculo de trabalho crescentemente degradado, para ser uma definição substantiva e completa de uma nova relação de produção.

Em pauta, pois, a transformação do intelectual em produtor e, da obra, em produto ou mercadoria. Ou seja, junto com a tão propalada mercantilização do produto do trabalho intelectual veio, como aliás não poderia deixar de ser, a transformação do próprio intelectual em mercadoria, a forma de relação produtiva exigida pelo capitalismo.

Por revolucionar tão profundamente a organização da produção intelectual, esta mudança não tem como deixar de fora a universidade, se levarmos a sério a observação de Marx, segundo a qual, colonizada uma área, o capital parte para colonizar outras, em sua lógica de obter sempre mais lucro. Esta é a fonte primária da crise da universidade ocidental que está a subverter a ordem estabelecida para o trabalho acadêmico definida ao longo do século XII na Europa. Foi essa ordem, lembremos, que permitiu a progressiva autonomia do trabalho intelectual, livrando-o do proselitismo da Igreja e dos governos, estando a mesma associada ao Renascimento, ao Iluminismo e ao desenvolvimento da ciência e da arte modernas.

Como, além da notória mercantilização da educação e da extensão na universidade pública, se dá a reorganização das relações de produção que permitem a expropriação de mais trabalho? Porque, reforcemos, não se trata apenas da venda de educação como mais uma mercadoria, mas de uma verdadeira revolução na forma de produção para adaptar as relações sociais de produção ao feitio do capital. Afinal, lembremos com Marx, o capital ergue-se sobre os próprios pés quando revoluciona as relações de produção, assenhoreando-se do processo produtivo e, assim, superando sua origem histórica na esfera mercantil e na pilhagem.

A expropriação do trabalho intelectual não se faz sem mediações que não comparecem nas típicas relações industriais de produção. Na verdade, para entender a lógica da crescente subordinação do trabalho júnior nas equipes de pesquisa, é preciso estar atento a uma pequena distinção feita por Marx no “Capítulo VI”, inédito, de O Capital, em que explicita que capitalista é o proprietário ou usufrutuário das relações sociais de produção. Nisso se transformou parte daqueles que integram o alto clero da academia aos quais devemos chamar empresário intelectual por oposição ao já conhecido empresário cultural. Este obtém seu lucro organizando e vendendo o produto do trabalho intelectual da forma como o encontra produzido. Aquele, conhecendo tecnicamente o trabalho, reorganiza-o, obtém o financiamento e divulga o produto nas instâncias acadêmicas de legitimação dos resultados e, nesse processo, apropria-se pessoalmente do reconhecimento social pelo trabalho socialmente produzido.

Como o reconhecimento, evidenciado pelas comprovações que necessariamente acompanham os curricula vitae, é parte do pagamento pelo trabalho intelectual e aquela parte que o diferencia do trabalho manual, sua expropriação equivale à mais-valia típica desse tipo de trabalho.

Antes de continuar, é preciso enfatizar que há os legítimos participantes do alto clero que permanecem como intelectuais clássicos, ou seja, são autônomos, responsáveis pela concepção e desenvolvimento de seus próprios trabalhos e serão nomeadamente implicados nos avatares da legitimação dos seus resultados quando se sujeitarem ao julgamento da comunidade científica, cultural ou artística. Mas, é preciso assinalar, sua função e lugar serão no mínimo redefinidas frente às burocracias culturais que assumem agora o papel hegemônico.

A expropriação do resultado do trabalho intelectual acompanha uma inversão típica do processo clássico de sua avaliação. Se antes um intelectual era avaliado depois do exame de sua obra, agora é avaliado antes, por mais extravagante que isto possa parecer. São, para tanto, adotados indicadores de capacidade intelectual, como número de trabalhos publicados e titulação formal sem qualquer análise minimamente consistente dos seus conteúdos. Estamos no reino da reificação dos títulos. Os critérios deixam de ser qualitativos e se transformam em quantitativos. O empresário intelectual, independente de sua participação concreta nos andamentos do trabalho, acaba por receber reconhecimento pela produção intelectual propriamente dita, tendo freqüentemente apenas intermediado a obtenção do financiamento ou a negociação de seu tema, objetivos e cronograma. Variações desse caso geral podem ser observadas sem que se altere em substância a lógica aqui exposta.

O produtivismo que assaltou as avaliações acadêmicas – por detrás de sua fachada democrática, igualitária e incentivadora do bom uso dos recursos públicos – é um sintoma da nova ordem. Esta, apóia-se em duplo efeito da mudança nas regras de avaliação. Primeiro, o quantitativismo é a melhor forma de impulsionar a subsunção de docentes e discentes juniores ao alto clero, já que aqueles, por sua posição inicial na carreira, ainda que competentes e promissores, freqüentemente não poderão competir com a alta “produtividade” exigida como “garantia” de produção. Resta-lhes aceitar a participação subordinada se quiserem trabalhar. Segundo, estabelece as bases do círculo vicioso de critérios definidos pelo próprio alto clero, que a eles próprios beneficia, pois, na medida em que controlam e participam da autoria de trabalhos do “seu” grupo, são os usufrutuários das relações acadêmicas de produção, capazes, portanto, de potenciar sua própria possibilidade de apresentar-se legitimamente como os mais produtivos.

Não há dúvidas que interfere aí o argumento legitimatório da alta experiência, mas isso nem sempre é o suficiente para justificar as escolhas observadas de financiamento, o que espero deixar claro à frente. Inegavelmente, o aumento da produtividade das pesquisas em situação de trabalho de grupo e a maior confiabilidade de uma organização de produção, não dependente de apenas um indivíduo, são as bases maiores de justificativa social para a mudança observada e certamente deverão ser mantidas em qualquer situação futura que contestar suas atuais conseqüências deletérias.

No contexto quantitativista, resta ao intelectual clássico aderir à nova ordem ou aparecer como improdutivo. Improdutivo relativo, é preciso desde logo ressaltar, porque um indivíduo, ainda que muito capaz e fecundo, dificilmente pode competir em quantidade com a produção de quem controla um grupo e potencializa sua própria legitimidade cultural numa autêntica acumulação de capital simbólico, base doravante necessária para posições privilegiadas na negociação de contratos de pesquisa com o governo e com o capital e mediação simbólica necessária para possíveis ganhos econômicos.

Eventualmente, o trabalho nas duas formas de produção não está atualmente excluído e pode servir como válvula de escape às tensões políticas geradas nesta fase de implantação da nova ordem produtiva, ou, em qualquer tempo, como a possibilidade sempre aberta de contestação.

O processo de validação das novas normas quantitativistas de avaliação pode ser relativizado quando se analisa algumas das práticas que dão origem a altos índices de produtividade. O caminho para esse estado de coisas não se fez dentro dos limites éticos que regiam a prática clássica. Muitas práticas que contrariam a ética acadêmica podem ser corriqueiramente observadas dentro das universidades ou dos institutos de pesquisa. Sem esgotá-las, mas usando como fonte o conteúdo de uma carta aberta dirigida em 1972 ao então diretor do principal órgão de pesquisa francês, o CNRS, pesquisadores juniores franceses elencaram como infrações éticas mais freqüentes: a assinatura sistemática, pelos pesquisadores de mais alto nível hierárquico, das publicações dos pesquisadores juniores; a recusa de associar os técnicos à publicação, mesmo que tenham tido participação de relevo no trabalho; a utilização da pertença a um grupo de pressão importante para conseguir o aceite de publicações em revistas ditas de boa qualidade; o aumento do número de publicações por diversas práticas, entre elas a reprodução do mesmo trabalho “original” em diferentes congressos e seminários; a utilização de vantagens hierárquicas e relações pessoais para açambarcar créditos das missões de que participam; e a auto-atribuição de prêmios e distinções científicas através de lobbies. (JAUBET e Lévy-Leblond, 1973)

A freqüência dessas ocorrências impede de considerá-las como funcionamentos residuais imperfeitos de qualquer atividade humana, mas nos obriga a classificá-las como acumulação primitiva de capital simbólico. E, quando algumas delas e de outras práticas similares deslizam para a esfera da normalidade, estamos frente ao processo social de sua legitimação na forma de mais-valia do trabalho intelectual, visto ser preciso caminhar para algum tipo de regulamentação das relações de expropriação que contenha o descontentamento da massa de juniores submetida à subsunção formal e regule a competição entre os próprios empresários intelectuais.

Importante, do ponto de vista social, é observar o fato de ser por essa via que se perde a autonomia da pesquisa e do trabalho intelectual duramente conquistada durante a modernidade. E, por ela, as empresas e o governo ganham controle crescente sobre o direcionamento dos destinos da ciência, da arte e da cultura no capitalismo contemporâneo, quando negociam diretamente com o empresário intelectual, que precisa manter “seu” grupo continuamente produzindo para manter-se “produtivo”, o financiamento e os objetivos do trabalho. E não deixa de ser irônico observar que os tecnocratas, aqui redefinidos como empresários intelectuais, finalmente conseguiram formular corretamente seu objetivo histórico de servir ao poder. Esse objetivo lhes quebrou a cabeça desde a Grécia antiga, passando por Maquiavel e muitos outros, quando foram usados, mas freqüentemente derrotados, pelos senhores políticos em sua ambição pessoal de atingir o poder pela via de colocar o saber no poder. Agora, sua função está historicamente definida: controlar a massa dos intelectuais a mando de governo e capital.

Se esse modo de produção está associado ao aumento inegável da produção, o resultado, em termos de qualidade, precisa ser discutido. Na prática, em caso que justifica ideologicamente a mudança, observamos seu aumento qualitativo e quantitativo, se o empresário intelectual é de fato um intelectual de mérito.

Noutros casos, apenas o aumento quantitativo comparece. Dessa forma, o processo tem permitido uma sobrevida intelectualmente injustificada a linhas de pesquisa crescentemente estéreis, mas que precisam ser mantidas pelo empresário intelectual por estarem associadas ao seu nome próprio e haver a possibilidade de não se darem as condições epistemológicas ou políticas necessárias para que ele conduza algum tipo de transição, mantendo simultaneamente o controle do processo.

Aumentam-se, então, os entraves políticos a mudanças social ou intelectualmente necessárias, pois, claro, podemos sempre contar com o engenho dos intelectuais altamente legitimados para justificar a necessidade de mais uma pesquisa na direção já prevista anteriormente, porque desta dependeria a solução dos problemas que até aqui resistiram ao enquadre necessário. Se esse já for o caso em inúmeras situações da ciência normal, a situação do trabalho coletivizado exacerba o problema em termos intelectuais, sociais e financeiros. A produção tende, neste caso, a se tornar crescentemente volumosa e estéril, mas sendo bem avaliada porque quantitativamente relevante. É preciso anotar, de passagem, que tal efeito é especialmente nítido para o caso das ciências humanas e sociais.

Uma variação, ou conseqüência dessa última possibilidade, é o caso de o empresário intelectual ser indivíduo vazio, medíocre, incapaz ou incapacitado de uma produção própria, mas que conseguiu obter e, pela via da arregimentação de trabalho júnior de qualidade, pode manter o acesso a uma fonte de financiamento regular. Este apenas vive da produção alheia como participante da autoria dos seus trabalhos sem deixar de ter alto poder político nas estruturas administrativas.

Na verdade, convém ressaltar que a ofensiva do capital sobre as universidades é apenas o último elo de um processo já bastante consolidado em diversas instituições de pesquisa não universitárias mais ou menos associadas ao governo ou às indústrias. As conquistas tecnológicas que permite – nos casos bem sucedidos – são, não apenas a base dos superlucros do capital que dependem de pesquisas fortes e bem conduzidas, mas também a fonte mais importante de legitimação do Estado, garantidor em última instância da ordem econômica instituída.

A universidade destaca-se no panorama das burocracias científicas, culturais e artísticas pela peculiaridade de ser a única instituição em que todos os campos de saber se confrontam em bases cotidianas e por isso, o lugar social em que deverá se definir a forma comum de subsunção do trabalho intelectual concreto por sua transmutação em trabalho abstrato. Isso exige a formulação de critérios capazes de abstrair dos diferentes valores simbólicos de uso criados. Estamos em processo de detalhamento de valores simbólicos de troca tais como o tempo de formação e o tempo de produção que equalizariam o esforço intelectual concretamente distinto entre os mais diversos campos.

Assim se compreende o esforço quantitativista de avaliação e sua crescente associação com os salários dos docentes em universidades brasileiras ou no primeiro mundo – forma, em processo de institucionalização, que tende a legitimar as mudanças e que tem, naturalmente, encontrado resistência pelo seu reducionismo intrínseco. Outra forma de derrotar a resistência do trabalho é a precarização das relações trabalhistas dos intelectuais juniores, seguindo aqui a cartilha conveniente do Banco Mundial.

E, claro, como governo e empresas agora podem conduzir a produção intelectual, seus próprios critérios de aplicabilidade e de legitimação da ordem instituída passam a ponderar significativamente sobre os critérios de julgamento autônomos herdados do regime clássico de produção, quais sejam, o valor de verdade e o de beleza/originalidade dos trabalhos produzidos. Assim, serão financiados e, eventualmente, divulgados os trabalhos que não apenas se comprovarem verdadeiros, como também aplicáveis à indústria, respeitado seu interesse intrínseco no sigilo; ou os que não só forem belos ou originais, mas também In – o critério maior da indústria cultural. Outros valores que não caírem neste intervalo passarão ao esquecimento, no caso clássico da “Lei de Ricupero”. Esse é o objetivo e a forma da desautonomização dos campos.

Tanto o trabalho coletivo quanto a participação social na definição dos rumos do trabalho intelectual são um caminho relevante e socialmente almejado para a produção intelectual. O que não é a mesma coisa de admitir que o capital, em última instância o motor e beneficiário da atual revolução, passe a ditar os rumos do desenvolvimento científico, cultural e artístico da humanidade apenas para garantir de forma renovada a manutenção de seus lucros.

Por tudo isso é preciso considerar esta nova revolução nas relações sociais de produção como o coroamento da função do capital de controlar a capacidade de trabalho, capaz agora, ao fim de uma tarefa multissecular, de subsumir não apenas o trabalho manual, como já há muito o sabemos, mas também o mais refinado trabalho intelectual.

Professora titular de Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal de Minas Gerais. Este texto baseia-se na tese de doutorado Trabalho intelectual coletivizado: produção, conhecimento e reconhecimento (Rio de Janeiro: UFRJ/IPPUR, 1999).

Referências
JAUBERT, Alain e LÉVY-LEBLOND, Jean-Marc. (Auto)critique de la science. Paris: Seuil, 1973. La taylorisation de la recherche. p. 291-293.
MARX, Karl. “Capítulo VI” inédito de O Capital: “Resultados do processo de produção imediata”. Trad. de Joaquim José de Faria e Maria Clara de Faria. São Paulo: Moraes, 1985.
_______. O Capital: “Crítica da economia política”. Trad. de R. Barbosa e F. Kothe. São Paulo: Abril, 1983.
WEBER, Max. Ensaios de sociologia. Trad. de Waltensir Dutra. 5 ed. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1982. “A ciência como vocação”. p. 154-183

EDIÇÃO 63, NOV/DEZ/JAN, 2001-2002, PÁGINAS 75, 76, 77, 78, 79