O Brasil precisa de um ciclo de desenvolvimento e progresso social
O Brasil vive o esgotamento de uma fase de aplicação da política neoliberal. O conto mirabolante de que bastaria a abertura e o fluxo do capital privado estrangeiro para elevar a produtividade, propiciar a diversificação da atividade econômica e produzir os investimentos suficientes para edificação da infra-estrutura e dos serviços públicos, sem a intervenção do Estado, revelou-se uma fantasia.
As contradições do capitalismo se aprofundam. As leis capitalistas, de exploração e exclusão, continuam as mesmas. A especulação financeira ganhou proporções nunca vistas, e afasta-se mais e mais da realidade produtiva. Aposta-se no lucro crescente futuro, mas ele não se concretiza. Na atual fase neoliberal, o capitalismo se torna cada vez mais parasitário e irracional.
A situação é paradoxal. Ao tempo em que o neoliberalismo prega a absoluta liberdade do mercado, um único homem, o presidente do Federal Reserve dos Estados Unidos tem o pretenso poder de sinalizar para cima ou para baixo a economia mundial. O Estado, que deve ser mínimo quando o assunto é atender às necessidades básicas da população, intervém e investe pesado no mercado quando se trata de socorrer a elite financeira mundial. O Estado passa a abrir caminho para a exploração privada de amplos setores produtivos e a atuar no campo financeiro, a serviço do grande capital. Para se ter uma idéia, no Orçamento brasileiro para 2001 (equivalente a R$ 950,2 bilhões), cerca de 40% – R$ 380,6 bilhões – foram destinados para o pagamento do serviço da dívida. Cumprindo ordens externas, o governo FHC persegue de forma absoluta as metas para a inflação e os superávits primários (arrecadar mais do que gasta, para tranqüilizar os círculos financeiros internacionais).
Essa orientação leva à perda da soberania do país. Atrelada ao exterior, a economia brasileira fica vulnerável, dependendo do humor dos investidores estrangeiros que buscam crescentes vantagens. O ajuste fiscal perseguido pela equipe econômica significa tirar bilhões de investimentos na área social e em infra-estrutura.
A dependência ao fluxo de capital externo levou à instituição tácita de um governo que só governa em parceria com os organismos internacionais e a eles subordinado, um condomínio compartilhado por Fernando Henrique e seus financistas com o Fundo Monetário Internacional e o Tesouro norte-americano. As entidades internacionais – em especial o FMI – não se pronunciam sobre a política econômica de um país apenas com o intuito de proteger os investidores e credores estrangeiros, mas dão aval político para as medidas econômicas adotadas, aplacando a insegurança dos investidores. A orientação imposta representa restrições fiscais austeras, que minguam investimentos, e a exigência de superávits altíssimos, enquadrando um orçamento que já é curto para as grandes necessidades do país. Somente neste ano, o superávit exigido é de cerca de 40 bilhões de dólares, superior a 3% do Produto Interno Bruto.
O modelo seguido pela elite dominante brasileira desde o início da década de 90 – sobretudo após a vigência do governo de Fernando Henrique Cardoso –, na sua essência, nega a necessidade e a viabilidade de um projeto nacional. Tornou-se uma heresia a definição de planos de desenvolvimento de médio e longo prazos, passando a ser terminantemente condenada a intervenção do Estado no processo produtivo e na edificação da infra-estrutura do país. A linha governamental seguiu um fundamentalismo liberalizante.
A elite dominante, que originalmente aderiu ao modelo neoliberal, hoje, se divide. Determinados setores dominantes já começam a esboçar a necessidade de um sistema "misto", no qual o Estado teria um papel interventor de maior significado e, por outro lado, as privatizações teriam limites. Torna-se patente que, sobretudo nos países dependentes, em regimes de abertura financeira como os atuais, a absorção do capital externo não eleva a taxa de investimento interno. No Brasil, ao longo de uma década, esta cresceu apenas 2% em relação ao PIB. Ademais, num quadro de ajuste fiscal absoluto como o praticado em nosso país, predominando a dinâmica de pesados superávits primários, o investimento em bens públicos de uso universal é seriamente comprometido, chegando-se ao abandono dos setores básicos da economia.
A crise econômica atual, produto da política liberalizante vigente, se enreda num permanente círculo vicioso – retorno ao aumento de juros, acompanhado de crescente emissão de títulos cambiais. Com isso aumenta mais ainda a dívida interna em geral e em dólar, favorecendo a perspectiva de aumento inflacionário por meio do câmbio. Apresenta-se assim um repetido quadro de crise cambial. Além disso, é cada vez mais difícil manter sob controle a dívida, devido a seu crescente custo econômico e sobretudo social.
O governo de Fernando Henrique Cardoso lança o Brasil num processo recessivo recorrente. O país vive a imprevisibilidade da crise financeira, reforçada com a crise cambial. A situação econômica é instável e preocupante. As previsões de desenvolvimento econômico são revistas. A realidade econômica de 2001 é conformada pelos juros mais altos, queda no nível de crescimento, volatilidade cambial e aumento da inflação e do desemprego. Mesmo setores do governo reconhecem que os chamados "fundamentos" do modelo econômico adotado estão abalados. O governo FHC não consegue saída para o círculo vicioso infernal em que envolveu o país: a crise da balança de pagamentos leva à alta de juros, que por sua vez leva à redução no crescimento econômico, que leva à queda de arrecadação somada à diminuição do fluxo de capital externo. Para dar garantia ao credor, o governo busca aumentar o superávit primário, cortando despesas, aumentando impostos e promovendo a liquidação de ativos (Petrobrás e Banco do Brasil sofrem uma privatização branca).
A desaceleração econômica mundial e a crise argentina deixam a situação ainda mais adversa para uma economia vulnerável como a brasileira. Os desdobramentos da crise ocorrem em todos os terrenos, perpassando os planos econômico, social, político e moral. A crise energética compõe a crise econômica e leva a uma queda acentuada da credibilidade do governo. As dívidas interna e externa crescem, os investimentos e o desenvolvimento diminuem. O governo corre ao FMI, que para liberar verbas exige mais contenção de investimentos e cortes no Orçamento e um superávit recorde de R$ 45,7 bilhões em 2002. O esforço fiscal determinado pelo FMI distorce a competitividade da economia brasileira. Com isso o desemprego é ainda mais agravado e são maiores os cortes na área social. Neste ano, o país vive uma crise cambial, com uma mega desvalorização do real e a demanda industrial caiu. Está aberto o caminho para mais um ciclo recessivo.
Entretanto seria enganoso subestimar o arsenal político e econômico a serviço das forças situacionistas, dentro e fora do país, concretizado no já analisado condomínio de governo e nas formas de "blindagem" – arcabouço de leis que amarra o futuro presidente ao modelo vigente. Mesmo porque o governo FHC, por meio de manobras diversionistas e demagógicas, respaldado pela maioria da mídia e setores dominantes mais poderosos, não deixará de considerar a realidade patente, forjando um "cenário intermediário", tentando até tirar proveito da tendência mudancista.
Historicamente, nos ciclos longos de endividamento externo e interno, próprio dos problemas estruturais brasileiros, em função do "buraco" que crescia nas contas externas, o próximo lance consistia no esforço desesperado para alcançar o superávit comercial, tentando “tapar o furo”. Daí as recorrentes campanhas exportadoras. O governo FHC tenta repetir essa dinâmica estrutural da dependência em condições ainda mais graves. Quando Fernando Henrique assumiu o seu primeiro governo, encontrou um superávit comercial de mais de 15 bilhões de dólares, logo revertido para um elevado déficit. A política de estabilidade monetária se fixou em abrir radicalmente o mercado comercial brasileiro, favorecendo as importações, sobretudo no período inicial de sobrevalorização cambial. Com isso visava elevar a oferta de bens para estabilizar os preços. Isso, somado a uma desnacionalização sem precedente histórico e sem expansão produtiva, desendustrialização, juros altos e crédito restrito, condicionou uma situação estrutural antiexportação que não poderá ser revertida se mantidos os atuais fundamentos políticos e econômicos.
Isso aponta para a necessidade de o novo ciclo adotar um caminho de desenvolvimento próprio para o país. Setores da classe dominante apressam-se, no momento da disputa sucessória presidencial, em criticar aspectos do modelo adotado pelo governo de Fernando Henrique. Por ser uma situação de fim de ciclo, tanto governistas quanto oposicionistas apregoam a necessidade de mudanças. Nas hostes governistas, setores levantam a voz exigindo ajustes. Falam em políticas sociais compensatórias e na retomada do desenvolvimento. Sem abandonar a orientação neoliberal, querem uma reciclagem.
Diante da crescente perda de poder de FHC – que já não apresenta mais nada de novo perante o povo e por ter perdido apoio popular –, cada partido da base governista (PSDB, PMDB, PFL) quer mais trunfos visando uma melhor posição no processo sucessório. Especialmente após o que houve nas eleições de 2000, os setores conservadores percebem que é essencial formar um bloco unido para 2002. A disputa entre os governistas se acirra, mas localiza-se na questão de quem comandará o processo de escolha e quais os candidatos.
Ao mesmo tempo, as forças situacionistas e seus serviçais bradam ameaças sobre uma possível vitória das correntes oposicionistas, atemorizando camadas sensíveis da população acerca da pretensa "ingovernabilidade" que a descontinuidade da linha oficial traria. Na verdade, o que eles pretendem é deixar intocado o sistema político e econômico montado na década de 90, a serviço do capital financeiro.
Contraditoriamente, importantes forças oposicionistas prostram-se defensivamente na sustentação de um projeto de ruptura com os fundamentos do modelo em vigor. Constata-se tal comportamento porque ainda predomina no plano de conjunto, no mundo e no Brasil – onde prevalece a legitimação da hegemonia do capital financeiro –, uma correlação de forças ainda adversa às forças políticas mais conseqüentes, populares e democráticas, e as massas trabalhadoras e deserdadas ainda não se organizaram em extenso movimento político contra a ordem dominante atual.
Mas os discursos dos governistas e da oposição não podem ser iguais! Para o povo e a sociedade brasileira se configura um momento de vazio político: de um lado, as disputas entre os setores governistas, suas dúvidas e ausência de proposta definida para reciclar o modelo em curso; de outro, na oposição, a falta de nitidez programática e maior credibilidade para uma alternativa de ruptura com o modelo atual. Alguns setores oposicionistas mostram-se também favoráveis a uma reciclagem do atual modelo, mas o que necessitamos é de uma nova orientação para o país. Precisamos romper com a política atualmente adotada. Nosso esforço é pela construção de um programa junto com partidos e setores sociais, desencadeando um processo de convencimento para a necessidade da unidade em torno de uma plataforma comum, antineoliberal. A oposição tem de ter por eixo superar a situação gestada pelo atual modelo – romper com ele, e não continuá-lo sob nova forma – e apontar para mudanças no sentido de um caminho próprio de desenvolvimento. O projeto nacional a ser apresentado pela oposição visa a um desenvolvimento sustentado internamente, acelerado – uma exigência objetiva do país – e a adoção de mecanismos de distribuição de renda. Objetiva retomar, ainda, os níveis históricos de desenvolvimento alcançados pelo país, mas diminuindo as desigualdades sociais. Não se trata de “crescer o bolo para depois dividir”, como foi falado no passado (e a divisão do bolo nunca ocorreu), mas de criar mecanismos que diminuam efetivamente as desigualdades à medida que o crescimento econômico seja retomado.
Do ponto de vista histórico, o Brasil se encontra sujeito ao esgotamento de um ciclo econômico e social com suas conseqüências políticas. Ninguém apregoa uma “volta ao passado”. O Brasil está diante da perspectiva de adotar um caminho de desenvolvimento próprio, com um projeto imediato de reconstrução nacional, retomando a identidade do país. Um projeto que defenda os interesses geopolíticos e geoeconômicos do país; que construa um pacto latino-americano ainda mais amplo que o Mercosul nas relações comerciais – contrapondo-se aos interesses hegemonistas estadunidenses expressos na Alca; que rompa com a dependência do fluxo de capital externo como mola propulsora de desenvolvimento.
Podemos avançar no processo de construir a unidade oposicionista, apresentando pontos concretos que façam parte de um programa mínimo, levando a um posicionamento mais conseqüente de combate à orientação neoliberal. Nesses pontos deve ser afirmado que a Alca não interessa ao Brasil – ela leva à subordinação da América Latina aos interesses dos Estados Unidos – e deve ser adotado o compromisso de não privatizar as hidrelétricas, levando-se em conta a questão nacional, de soberania.
Além disso, deve-se contemplar também questões sociais básicas, como a reforma agrária, o aumento do salário mínimo, a geração de empregos e a redução da jornada de trabalho. A democracia deve ser ampliada. Torna-se imprescindível definir o compromisso de convocação pelo novo governo de uma Assembléia Constituinte, para a reordenação da vida política, econômica e social do país, porque a Constituição de 88 foi desfigurada. A discussão de pontos programáticos concretos é o melhor caminho no momento porque permite o debate mais amplo no âmbito das organizações populares e da sociedade civil, além de estimular a construção de um novo pacto político e social que possa respaldar a alternativa ao atual modelo dominante.
Contrapondo-se à orientação subserviente ao capital internacional, adotada por FHC, a oposição deve elaborar um novo projeto nacional. Isto significa abrir um caminho próprio de desenvolvimento, superando a dependência do capital estrangeiro. O desenvolvimento do país deve estar fundamentado em mecanismos institucionais internos de investimento nacional. O Brasil é um país de desenvolvimento médio, com grandes recursos e de dimensão continental. Tem condições objetivas para adotar uma política baseada em seus próprios recursos e que recorra a investimentos externos de forma auxiliar, submetendo-os aos interesses nacionais e populares. Ao contrário de uma volta ao passado ou uma visão autárquica, trata-se de um projeto que leva em conta a inserção do país na economia mundial, mas o faz com interesses próprios auto-sustentados, e não de forma subordinada.
O resgate do papel soberano do Brasil na comunidade internacional, o reforço da defesa de seus interesses, é uma exigência da nação que deve ser levada adiante pelas forças oposicionistas.
Outra questão que surge é a necessidade de estabelecer uma política industrial que desenvolva os bens de produção e a tecnologia de ponta, combinando essa orientação com o incentivo também aos setores menos desenvolvidos tecnologicamente, mas que não podem ser abandonados pela política governamental. A política industrial tem de levar em conta também a substituição de importações. Deve ser definida uma política para a agricultura que contemple as necessidades internas e o comércio exterior. Os investimentos em ciência e tecnologia têm de ser significativos, para fazer frente às necessidades crescentes do desenvolvimento econômico e social. Essa orientação deve ser acompanhada de uma política emergencial de geração de emprego e de combate à pobreza.
Esse novo modelo requer o respaldo da ampla maioria da população, o que só será conquistado com a ampliação da democracia. Ampliação no nível político, garantindo a manifestação e a participação popular na definição dos rumos a serem adotados e o combate aos monopólios nos meios de comunicação; mas também no usufruto de direitos básicos, como saúde, educação, moradia e saneamento básico.
A orientação em curso no país produz diariamente levas de excluídos. Há a volta de epidemias de doenças (outrora erradicadas) e o aumento das tarifas (decorrente do processo de privatização); o desemprego persiste e há queda do salário médio real. Esses e muitos outros elementos reforçam o quadro de agravamento da realidade social do povo brasileiro. Um grande contencioso social se acumula e pode explodir.
O programa de mudança tem de levar em conta um período de transição, uma adaptação e reversão da realidade do momento para a que se pretende. Problemas graves e críticos, como o déficit externo, juros altos e dívidas gigantescas devem ser abordados de forma soberana, tendo em vista o novo rumo proposto para o Brasil. A reconstrução nacional, objetivando a realização de um país soberano e progressista, cujo desenvolvimento sirva à melhoria das condições de vida e trabalho da imensa maioria da população, é uma bandeira apresentada pela oposição, que a diferencia da orientação adotada pelo governo atual.
Nosso grande objetivo é apresentar uma saída política – um projeto alternativo ao neoliberalismo – para a realidade brasileira. Por isso é importante caracterizar a crise vivida pelo país nos seus múltiplos aspectos e as classes e interesses de classe em jogo. Temos de fixar nossas fronteiras para demarcar as mudanças programáticas necessárias e construir uma ampla frente que vise à derrota do pacto político dominante e à vitória de um governo baseado em novas forças políticas e sociais, interessadas na reconstrução nacional, na democratização crescente da vida política do país e na restituição e ampliação dos direitos do povo.
Renato Rabelo é vice-presidente do Partido Comunista do Brasil.
EDIÇÃO 63, NOV/DEZ/JAN, 2001-2002, PÁGINAS 6, 7, 8, 9