O presidente Fernando Henrique Cardoso encarnou um velho personagem em sua recente viagem ao exterior, e desempenhou o mesmo papel de presidente dois em um de Jânio Quadros durante seu curto mandato, em 1961: faz uma política de direita dentro do país, e defende teses progressistas no exterior.

Seus discursos na França e na ONU indicam pontos de divergência com os grandes do mundo, sem opor-se a eles de frente, pois, para FHC, o problema da globalização é a forma como é posta em prática.

Na Assembléia Nacional Francesa, em 30 de outubro de 2001, ele foi aplaudido; o discurso repercutiu bem na imprensa chapa branca brasileira, embora conflite, em todas as letras, com o que faz no Brasil desde o primeiro mandato. Apenas quem só vê a figura glamourosa do presidente e desconhece a vida dura que seu governo impõe ao povo brasileiro pode acreditar na existência do estadista por ele ali representado. Disse que a crise pode ser fértil e favorece a mudança, expandindo “as fronteiras do possível”. Insistiu na defesa do livre comércio como caminho para a riqueza das nações; falou em controlar, não os fluxos financeiros, mas a instabilidade que eles causam; clamou – ora vejam! – contra as “distorções e abusos do mercado”; fez uma defesa canhestra do papel do Estado na promoção das mudanças; quer a atualização e adaptação à realidade do século XXI das “instituições da governança internacional”; defendeu o respeito aos Estados e às nações em um “novo contrato internacional” baseado na “ética da solidariedade”.

Havia um tom contra o hegemonismo norte-americano, grato aos franceses. Seu clímax chama à luta por “uma nova ordem mundial que reflita um contrato entre nações realmente livres, e não apenas o predomínio de uns Estados sobre outros, de uns mercados sobre outros”.

Na abertura da 56ª Assembléia Geral na ONU, no dia 10 de novembro, ele repetiu a dose. Reivindicou uma vaga para o Brasil no Conselho de Segurança, e maior presença nas decisões internacionais. Pregou uma “Rodada do Desenvolvimento” nas negociações sobre comércio que ocorrem em Doha, no Qatar; condenou o protecionismo dos países ricos; ameaçou quebrar patentes de medicamentos; defendeu a criação do Estado palestino; combateu os paraísos fiscais; reconheceu que há “um mal-estar indisfarçável no processo de globalização”, que “tem ficado aquém de suas promessas”; pediu mudanças no comércio mundial, com “maior acesso dos produtos dos países em desenvolvimento aos mercados mais prósperos”.

Tudo isso é fruto de um contraste entre duas políticas: uma retórica; outra, real.
O mundo é regido – como os norte-americanos sabem melhor do que ninguém – por interesses e não por declarações de boa vontade, uma verdade palmar que, reiteradamente, FHC desconsidera. Justo ele, cujo governo foi o bom aluno das agências internacionais e dos países ricos, sem alcançar os benefícios prometidos. Defender, como ele faz, apenas a expansão das fronteiras do possível é pouco – o possível está dentro da ordem, e é preciso romper com ela, defender aquilo que parece impossível e lutar por ele.

FHC foi um dos principais defensores, no mundo, da ordem neoliberal. Outro arquiteto deste mundo injusto e desigual, o norte-americano Joseph Stiglitz, prêmio Nobel de Economia deste ano, economista-chefe do Banco Mundial de 1997 a 2000 e ex-conselheiro econômico do presidente Bill Clinton, diz que a “liberalização comercial foi criada para os países ricos” e “contribuiu para a degradação das economias de muitos países em desenvolvimento”. E desmascara o argumento de que a globalização foi uma imposição da modernidade: “Nós liberamos os serviços financeiros para agradar a Wall Street”, política imposta aos demais países sem a comprovação “de que a liberalização financeira beneficia o crescimento econômico”.

Essa é a voz da realidade, contra a candidez hipócrita e propagandista dos deslumbrados modernizadores de nosso tempo.

Comissão Editorial

EDIÇÃO 63, NOV/DEZ/JAN, 2001-2002, PÁGINAS 3