Dois acontecimentos recentes centralizam a atenção do mundo: o atentado terrorista de setembro passado, ocorrido nos Estados Unidos, que ceifou a vida de mais de cinco mil pessoas e atingiu símbolos do poderio econômico e militar norte-americano; e a guerra desfechada pelos Estados Unidos contra o Afeganistão, país asiático, um dos mais pobres do mundo, punido por não ter entregue a pessoa tida como autora intelectual dos referidos atentados.

Logo após os atos terroristas, quase todos os países e forças políticas do mundo, dentre elas o PCdoB, declararam sua solidariedade ao povo norte-americano e sua repulsa ao terrorismo. A reação dos EUA, desencadeando guerra de retaliação e anunciando que poderá usar todo tipo de arma e atacar outros países, quebrou essa quase unanimidade. Os afegãos e religiosos envolvidos procuram transformar o conflito em guerra santa, levantando bandeiras sensíveis, como o fim da ocupação israelense na Palestina e a retirada das tropas norte-americanas da Arábia Saudita, onde ficam as cidades santas de Meca e Medina. Os mulçumanos de outras partes do mundo em geral se solidarizam com o país muçulmano atingido e protestam contra governos que apóiam os norte-americanos. Os demais povos dividem-se, aparecendo, em variados países, expressivas manifestações contra a guerra, tendo líderes religiosos católicos, anglicanos e luteranos, do Brasil, Argentina e México, divulgando manifesto no último dia 21 de outubro, segundo o qual os ataques ao Afeganistão “são comparáveis aos atos terroristas ocorridos nos Estados Unidos”.

O desfecho dessa situação ainda é imprevisível. Somente há pouco os norte-americanos começaram a fazer guerra terrestre, na realidade operações-relâmpago, advertidos por ex-comandantes soviéticos que lá estiveram, como o coronel Viacheslav Krasen, segundo o qual “o uso de tropas terrestres pelos EUA não vai dar certo”, os “garotos norte-americanos (…) não têm preparo para lutar contra essa gente no solo”, “os norte-americanos erram em suas táticas de ataque, como no Iraque e na Iugoslávia” e, finalmente, “só com a força não se ganha nada por lá, nós da Rússia sabemos.” (Folha de S. Paulo, 20/10/01)

Oportunamente, portais, revistas e jornais do mundo, como a Folha de S. Paulo, (15/10/01) desencavaram um ensaio de 1858, de Friedrich Engels, o famoso companheiro de Marx, sobre a derrota do Exército britânico em 1842 no Afeganistão. Entre outras observações, ele acentua “a importância política” da “posição geográfica” do Afeganistão e descreve os afegãos como “um povo corajoso, resistente e independente”, para quem “a guerra é um lazer glorificante, que os alivia de suas ocupações monótonas e laboriosas”.

O cenário geoestratégico mundial, sem dúvida alguma, sofreu modificações políticas, econômicas e militares, com os atentados terroristas de setembro. Contudo, as grandes tendências que estavam em curso continuam, evidentemente, em quadro de reajustamentos. Daí ser útil uma apreciação dessas tendências, para se aquilatar de que forma e em que medida serão elas recolocadas.

A unipolaridade que se seguiu à Guerra Fria

A desregulamentação financeira ocorrida no planeta a partir da década de 80 beneficiou enormemente a economia norte-americana. O fim dos controles sobre movimentações financeiras ocorrido na Holanda, em 1981, na Alemanha, em 1982, no Japão e restante da Europa até os últimos anos 90, e a elevação de taxas de juro e corte de impostos nos EUA, garantiram a esse país excepcional poder de atração de capital do mundo inteiro. O capital financeiro passou a ter uma predominância no conjunto da economia norte-americana como nunca tivera desde a década de 30.

Tamanha era a hegemonia dos Estados Unidos no imediato pós-Guerra Fria, que o então presidente norte-americano George Bush, pai do atual presidente, chegou a se comprometer, no encontro de Malta, após a Guerra do Golfo de 1991, com a construção do que chamou de uma Nova Ordem Mundial. Sob os parâmetros da Guerra Fria, o mundo esteve 44 anos em uma espécie de equilíbrio à beira do abismo. Muitos choques armados ocorreram e muito sangue foi derramado, mas os conflitos eram apresentados como expressão das disputas entre as duas superpotências. Suas causas internas eram ofuscadas.

Certa distensão ocorreu nos momentos iniciais do pós-Guerra Fria, permitindo o reaquecimento de idéias como a do "fim da história". A vida cedo se encarregaria de mostrar quão despropositada era essa visão. O que na continuidade sucedeu foi o aparecimento de múltiplos conflitos e situações que, no contexto da Guerra Fria, estavam, de certo modo, sob controle. Alguns merecem destaque.
Em primeiro lugar, surgiram vinte e dois novos estados independentes na esteira da desagregação do antigo campo socialista, nomeadamente da União Soviética, da Iugoslávia e da Tchecoslováquia. Esse número é excepcional. É maior que o dos estados constituídos depois da I Guerra Mundial, ou dos estados surgidos com a descolonização da África, entre os anos 50 e 60.

A emergência desses países, independentes e, às vezes, vizinhos, trouxeram à tona antigas e profundas diferenças, rivalidades e disputas étnicas, religiosas e territoriais. Estas, cedo evoluíram para guerras abertas, como as que envolveram Eslovênia, Croácia, Bósnia, Moldávia, Criméia, Macedônia, Kosovo, Albânia, Transilvânia, Eslováquia, Estônia e Chechênia, numa lista incompleta.
Em segundo lugar, conflitos crônicos que subsistiram recobraram fôlego, como o do Oriente Médio, principalmente o que envolve a Autoridade Palestina e Israel, e as lutas decorrentes da descolonização da África, que estão destruindo países daquele continente. Continuaram também os resíduos mais visíveis da Guerra Fria, a separação entre as duas Coréias, o status de Taiwan e o bloqueio a Cuba.

Em terceiro lugar, por conta de leitura deformada das relações entre a religião muçulmana e conflitos territoriais e étnicos, e na esteira de opiniões profundamente racistas, como as levantadas, em 1993, por Samuel Huntington, sobre o suposto “choque das civilizações” que “dominará a política mundial”, foi se criando, principalmente nos Estados Unidos, mas também na Europa, um preconceito contra o Islã, guindado à condição de “inimigo do Ocidente”, visto e anunciado como responsável por atentados, como, por exemplo, o de Oklahoma, em abril de 1995, que melhor investigado, mostrou ter sido praticado por norte-americanos de extrema-direita.

Finalmente, o perigo nuclear, que se imaginava poder diminuir bastante com o fim da Guerra Fria, recolocou-se de outra forma. Se os grandes arsenais podiam ser contabilizados e reduzidos, o risco da proliferação atômica ganhou novos contornos, com a possibilidade de armamento nuclear chegar a países menores ou até a grupos organizados.

Esse cenário mundial, novo e sumamente complexo, aparecia como um desafio aos povos e estados. A postura dos EUA, como Estado hegemônico foi, neste sentido, de grande importância.
Os Estados Unidos, entretanto, são um país de formação relativamente recente, sem larga história e sem larga tradição. No acervo relativamente novo de suas experiências, não têm demonstrado vocação para tratar dos problemas do mundo, muito menos dos complexos impasses cuja solução demanda engenho, persuasão e perseverança. É notória sua inclinação para tratar dos problemas internos, como desenvolvimento e nível de vida. Seu isolacionismo chega a ser discutido como política de Estado. O ex-secretário de Estado Henry Kissinger teve oportunidade de criticar esse traço da política norte-americana, em livro sintomaticamente intitulado Precisam os Estados Unidos de uma política externa?

Quando os problemas externos conseguem se impor, os EUA os tratam a partir da idéia de que a força é o método por excelência nesse terreno, como mostra o rol de suas intervenções na baía dos Porcos (em Cuba), Panamá, Granada, República Dominicana, Nicarágua, Vietnã, Laos, Camboja, Líbia, Sudão, Iraque, Afeganistão etc.

O novo cenário pós-Guerra Fria recebeu, ademais, uma herança crucial, a OTAN. Esta organização surgiu para fazer frente ao que se considerava ser o expansionismo da antiga União Soviética, que posteriormente organizou o Pacto de Varsóvia. Com o fim da URSS, e naturalmente do Pacto de Varsóvia, havia de se definir o futuro da OTAN. Líderes europeus começaram a vê-la como um “fardo estratégico-diplomático e financeiro” e, mais grave ainda, como um instrumento de domínio dos EUA sobre a Europa. Setores do velho continente, que segundo Willy Brandt, era um “gigante econômico e anão político”, anteviram a possibilidade de, livrando-se do “fardo”, livrarem-se dos EUA e transformarem o gigante econômico em gigante político. Chegaram a projetar um Exército Binacional Franco-Alemão, núcleo de uma eventual defesa européia. Quem não aceitou o problema posto nestes termos foram os EUA.

Em 1992, documento do Pentágono, intitulado Defense Planning Guidance 1994-1999, não só descartou o fim da OTAN como foi à frente, e propôs sua ampliação, devido a supostas ameaças que poderiam advir do Leste europeu e do Oriente Médio. Sendo assim, a França levantou a idéia de que caberia então um general europeu no comando da OTAN, pretensão que provocou conhecida e ríspida resposta do então ministro da Defesa norte-americana, William Cohen: “Evidentemente, e categoricamente, isto é inegociável”. Paulo F. Vizentini (professor da UFRGS e doutor em História pela USP) lembra que foi nesse “processo de convencimento dos europeus que foi desencadeada a Guerra do Golfo e alimentados os conflitos da Iugoslávia em desagregação”. Os EUA lograram demonstrar assim a importância da continuidade da OTAN.

A multipolaridade como tendência objetiva

Paralelamente ao quadro que se formava no pós-Guerra Fria, um dado foi se impondo – a emergência de uma nova potência, a República Popular da China.

Desde 1978, a China segue uma linha nova de construção de sua sociedade socialista, alcançando surpreendentes êxitos em todos os terrenos. Aqui, importa-nos sublinhar o econômico e o militar.
A China está completando agora 22 anos de crescimento contínuo, com um extraordinário nível médio em torno de 9% ao ano. País que exportava em 1980 menos que o Brasil, em 2001 exportou 183 bilhões de dólares, três vezes mais que o nosso país; atingiu um superávit comercial de 40 bilhões de dólares, registrou reservas cambiais de US 140 bilhões e levou seu PIB à marca do 1 trilhão de dólares, no limiar de ultrapassar o da Inglaterra. E recebe elogios generosos da ONU pela eficácia com que combate a pobreza! Joseph Stiglitz, então economista chefe do Banco Mundial, em estudo reproduzido na Folha de S. Paulo (12/7/98), relatou curiosa simulação feita por esse Banco. Disse ele: “Se as 30 províncias da China fossem consideradas como economias nacionais independentes elas ocupariam os primeiros 20 lugares no ranking das economias que mais cresceram no mundo entre 1978 e 1995”. Segundo especialistas, não havendo reversão, a China poderá ser, na terceira ou quarta década deste século, a maior economia do planeta!

No terreno militar os chineses não descuidaram da preparação de sua defesa, nos aspectos material e doutrinário. A República Popular conta hoje com o maior contingente militar do mundo, com a quarta maior frota de superfície e a segunda maior de submarinos, ocupa o terceiro lugar em número de blindados e carros de combate, o segundo em canhões e o primeiro em aviões de caça. É a quarta potência em número de ogivas e a terceira em número de mísseis intercontinentais. Embora seja o décimo país do mundo em gastos bélicos é, segundo avaliações especializadas, a terceira potência militar da atualidade. Estudos admitem que ela pode se transformar na primeira potência militar do mundo, no primeiro quarto do século entrante. (1)

No aspecto da doutrina militar, três pontos merecem destaque. Primeiro, o empenho chinês no armamento tecnologicamente avançado, ao lado do preparo do combatente, disposição que os chineses passaram a ter depois da guerra da Coréia, onde as perdas chinesas foram elevadíssimas, por não contar a China com armamentos modernos, e por subestimá-los. Segundo, o postulado pelo qual a China, “jamais, sob nenhum pretexto, e em nenhuma circunstância, será a primeira a lançar um artefato nuclear”. Terceiro, o princípio de que a China, em eventual conflito, não tomará iniciativa de ataque, mas, se atacada, não apenas se defenderá, mas contra-atacará.

Naturalmente a emergência de uma potência com tal significação e potencialidade aparece como uma hipótese de negação da unipolaridade existente. Esta, vai sendo contestada por uma tendência objetiva à multipolariedade, que se expressa em diversos fatores, um dos quais, e dos mais importantes, é o crescimento da China. Mas há outros.

Independente de terem se desagregado antigas Federações, como já vimos, um movimento de aglutinação de Nações avançou na Europa. A União Européia se articula na busca da unidade a ser feita mesmo entre países com antigas histórias de confronto. A criação pela UE de uma nova moeda, o Euro, faz parte da estratégia de contestação do dólar, a moeda do pólo hegemônico, que pode ser impressa por decisão isolada de um governo e que é respeitada como moeda padrão do mundo a despeito de não ter lastro de garantia.

Em perspectiva, outros pólos podem surgir com elevada importância política, econômica e militar, como a Rússia, se se recuperar, ou o Japão, se voltar a se desenvolver.

A contestação à unipolaridade revela-se ainda na resistência que povos e organizações oferecem ao hegemonismo dos EUA e à chamada globalização, que aparecem sob múltiplas formas, entre as quais a tentativa de impedir a realização de reuniões de organismos como o G7 e outras cúpulas, no que têm conseguido êxitos surpreendentes. Os líderes desses organismos já estão pensando em se reunir no mar, em navios, porque nas cidades onde chegam são repelidos.

Mas, se a multipolarização é uma tendência que questiona a hegemonia absoluta do Império norte-americano e que cresce objetivamente, não podemos perder de vista a possibilidade e a conveniência de posições serem acertadas e de aproximações serem feitas entre interessados na consecução de certos objetivos.

Há, por exemplo, relevantes identidades e interesses entre o Brasil e a China, além de outros. Esses dois países estão em desenvolvimento, têm grandes extensões territoriais, populações, riquezas potenciais e tradições políticas de não intervencionismo, não expansionismo e não hegemonismo. Quando, em 1988, Deng Xiaoping, o artífice da vitoriosa teoria do socialismo atual da China, teceu comentários sobre problemas mundiais com o então Primeiro Ministro da Índia, Rajiv Ghandi, observou que, por trás da assertiva de que o século XXI seria o século do Pacífico, estava a idéia de que os EUA, Japão, Austrália, Nova Zelândia etc, eram países do Pacífico. Disse que só haveria “algo parecido com um século da Ásia e do Pacífico” quando a China e a Índia se desenvolvessem. E acrescentou: “Da mesma forma não haverá nenhum século da América Latina sem o desenvolvimento do Brasil”. Parecia que Deng Xiaoping sinalizava com uma aliança estratégica para o futuro, envolvendo a China, a Índia e o Brasil.

Estratégias da unipolaridade

No quadro unipolar que prevalece, os EUA tratam de esquematizar sua visão estratégica. Um problema precisa ser resolvido: quem é seu inimigo, qual o país que o ameaça, ou, como queiram, quem ameaça o Ocidente, o Mundo Livre?

No passado, e por décadas, a resposta a essas perguntas foi simples – o comunismo. Na nova situação, ficou difícil e confusa, pois que riscos variados e de distintas naturezas são considerados, como o narcotráfico, o crime organizado, a AIDS, o Ebola, o fundamentalismo religioso, a proliferação nuclear etc. Quem sabe até o efeito estufa.

Mas, duas estratégias foram sendo elaboradas e mais ou menos praticadas pelos EUA, nesse pós-Guerra Fria. A primeira partia do princípio de que o risco principal viria dos chamados “países párias”, assim chamados o Iraque, Líbia, Sudão, Irã, Coréia do Norte, talvez Cuba, etc, que supostamente poderiam atingir os EUA; e a segunda vislumbrava o surgimento de uma força militar expressiva capaz de fazer frente à força norte-americana em nível de equivalência. Esta força seria a China, eventualmente uma Rússia revitalizada.

Essas duas estratégias, não necessariamente excludentes, pareciam convergir para a construção do escudo antimíssil, popularmente chamado de guerra nas estrelas, a partir da denúncia do acordo antimíssil balístico (o ABM, de 1972) firmado entre EUA e URSS. Bush já classificara esse acordo de “antiquado e inútil”. Tal escudo naturalmente despertava fortes reações contrárias da China e da Rússia, que viam nesse projeto a retomada em outro nível da antiga corrida armamentista. As duas estratégias sinalizavam ainda para um redirecionamento dos sistemas de mísseis norte-americanos e para o acantonamento de tropas norte-americanas nas proximidades da Ásia.

O redirecionamento dos mísseis foi tratado no primeiro quadrimestre do ano, tendo o Washington Post de 30 de abril informado sobre a "redução de 50% nos alvos russos e um aumento de 100% nos alvos chineses". Bush afirmara dias antes (25/4/01): os EUA “farão o necessário para ajudar Taiwan a defender-se da China”; primeira declaração do gênero de um governante norte-americano desde 1979, quando os EUA romperam relações com Taipei e reconheceram a China Popular como a “única representante do povo chinês”. Pequim considerou, no dia seguinte, essa declaração de Bush como um “atentado à soberania chinesa”.

A animosidade que se cria nos EUA contra a China vem desde antes do atual governo de Bush. No meio literário, publicou-se, em 1997, o livro de Richard Bernstein e Rosso Munro intitulado O iminente conflito com a China, que mereceu da revista Beijing Informa (27 de julho de 1997) crítica mordaz, e a observação de estarem os EUA sofrendo de uma espécie de “síndrome da falta de inimigos, produto da mentalidade da guerra fria”. Mais à frente ocorreram o bombardeio da Embaixada chinesa em Belgrado, durante a Guerra de Kosovo, em 1999, e o incidente com o avião de espionagem norte-americano, interceptado por caças chineses e obrigado a pousar no aeroporto de Hainan, em 1º de abril de 2001. Finalmente, em maio de 2001, o Ministério da Defesa confirma que os Estados Unidos deverão dedicar menos atenção à Europa e mais atenção à China.

A ONU, de instância máxima a estorvo!

A unipolaridade que viceja no mundo, com os EUA como pólo hegemônico, passou a ter na atividade tímida das Nações Unidas um obstáculo, um estorvo. Os EUA passaram a ver a OTAN como o instrumento eficaz para a interferência que queria ter nos problemas do mundo. Na OTAN ele decidia, em um colegiado homogêneo e restrito. A ONU atrapalhava.

A experiência da guerra de Kosovo, onde a OTAN, sob comando norte-americano, foi à guerra, à margem do Conselho de Segurança, suscitou análises do comando da organização. Algumas das conclusões foram apresentadas em Brasília pelo general Klaus Naumann, ex-membro do Comando da OTAN, sob os auspícios da Fundação Konrad Adenauer, em setembro passado, em palestra no Hotel Nacional, poucos dias após os atentados terroristas nos EUA. Eis alguns de seus pensamentos: “a Rússia e a China disseram que jamais concordariam com a Resolução do Conselho de Segurança sobre a intervenção em Kosovo”; “como não queríamos humilhar a Rússia e a China, intervimos sem mandato do Conselho de Segurança, o que pode ter sido um erro, já que não foi completamente legal, embora tenha sido legítimo”; “é desejável, em qualquer conflito futuro, um mandato do Conselho de Segurança da ONU; mas, o que fazer se o Conselho falhar de novo? Poderemos agir mais uma vez sem mandato, frente ao terrorismo e ao genocídio”; “há um novo conceito de soberania dos estados, que implica em responsabilidade e respeito aos direitos humanos”; “há situações em que Estados perdem o direito à defesa pela comunidade internacional”; “os malandros do mundo não podem se esconder na inoperância do Conselho de Segurança da ONU”; “esperamos que em lutas futuras nossos amigos, inclusive os brasileiros, estejam do nosso lado”; “na próxima rodada da OTAN discutiremos nova ampliação”; “a Rússia será da Europa ou não”; “não vamos definir área de segurança da OTAN, mas agir caso a caso”; “há possibilidade de alguém comprar inclusive armas nucleares, e temos que reduzir essa possibilidade”; “a ONU é tão boa quanto somos nós que a compomos, mas o elemento central é a soberania de um Estado, que na globalização tem certas modificações”; “se vocês transferirem parte da soberania, a referência do cidadão continuará sendo o Estado nacional; mas os direitos humanos precisam ser aplicados, se não todos os outros estados estarão obrigados a defendê-los, pacificamente ou pela violência”. Uma das assertivas últimas do general nessa palestra foi: “Podem ficar despreocupados, porque não seremos policiais globais”.

A marginalização da ONU, que se observa, e do seu Conselho de Segurança é, assim, premeditada. Na ótica do hegemonismo norte-americano essa marginalização é uma necessidade, praticada de forma flexível, como bem situou o palestrante, “caso a caso”. Os EUA chegam a exigir que leis norte-americanas sejam respeitadas em outros países, como no caso da lei Helms-Burton que aumenta o bloqueio a Cuba.

Finalmente, há pouco foi comemorado em Washington o 50º aniversário da OTAN. Os EUA propuseram, na oportunidade, redefinir conceitos estratégicos do bloco. No documento firmado, a OTAN considera-se autorizada a intervir, sem prévia autorização da ONU, em locais onde considerar imperioso a defesa dos direitos humanos, o combate ao narcotráfico etc. Enumera, como um dos fatos que podem justificar uma intervenção, a ameaça a “reservas estratégicas da humanidade…”. E assim, a nossa Amazônia entra no bolo.

A Frente antiterror

Atingidos material e psicologicamente pelos atentados terroristas de 11 de setembro passado, os EUA de pronto se dispuseram a ir à guerra. As primeiras declarações de seu presidente eram fundadas na lei de Talião – olho por olho, dente por dente. Na preparação logística da guerra, sentiram a necessidade de uma articulação diplomática e puseram-se a constituir o que chamaram uma Frente antiterror. A Frente foi ampla enquanto fundada na solidariedade ao povo norte-americano e na condenação enérgica do terrorismo. Mas foi restrita, cheia de ressalvas e condições, no que diz respeito à guerra ao Afeganistão. Ir mesmo à guerra, só os ingleses.

Declaração política firmada por líderes de expressão mundial, até agora, só uma foi emitida, a da reunião da APEC (o Fórum Ásia-Pacífico) realizada no dia 21 passado, em Shangai, com a participação de 19 líderes, entre os quais os presidentes dos EUA, China e Rússia. Essa declaração é enfática na condenação do terrorismo, mas não faz qualquer referência à guerra do Afeganistão.

É certo que há um reajustamento de forças devido ao trágico acontecimento da morte em escala, de norte-americanos e de gente de outras nacionalidades. O terrorismo, de imediato, reforçou politicamente os Estados Unidos. O próprio presidente Bush, que estava com sua popularidade em baixa, ganhou apoio popular. Em decorrência, a unipolaridade, a prazo curto, se acentua, e com ela o hegemonismo e a política de força dos EUA.

A ofensiva antiterrorista norte-americana, contudo, não entra em contradição com suas estratégias fundamentais e não as revoga, mas, ao contrário, vai se desdobrando na linha dessas estratégias, a que se volta contra os “estados párias” e a que objetiva a potência emergente da Ásia.

Essas estratégias requeriam, como já vimos, além do redirecionamento dos sistemas de mísseis, a localização de forças militares mais próximas da Ásia. Já a guerra de Kosovo permitiu que os EUA acantonassem, na importante região dos Bálcãs, forças militares expressivas, que para lá foram fazer a guerra de Kosovo, e de lá não saíram. Agora, com a justificativa de pegar Bin Laden, ou todo o seu grupo, ou derrotar um país praticamente arrasado, os EUA deslocam para a estratégica região da Ásia Central um aparato militar desproporcional a seus objetivos declarados. Noticiário da Folha de 18/10/01 dá conta de que “Bush tentará convencer Jiang Zemin de que a atuação de Washington na Ásia Central não representa uma ameaça a Pequim”. Segundo a matéria, “para os setores mais nacionalistas do regime chinês, a presença de forças dos Estados Unidos na Ásia Central representa um pesadelo.

Eles acreditam que a verdadeira intenção norte-americana é ‘ensanduichar’ a China, colocando tropas na Ásia Central e mantendo seus cerca de 100 mil soldados baseados no Japão e na Coréia do Sul”. Pequim insiste, para que qualquer operação militar na Ásia Central esteja sob o controle da ONU; que não atinja inocentes; e que seja rápida. Nada disso está ocorrendo, demonstrando que a situação está em evolução.

O Brasil neste contexto

O Brasil, com suas dimensões continentais, sua população grandiosa e não dividida por choques étnicos ou religiosos, sua unidade lingüística, suas riquezas naturais portentosas, água abundante e a maior biodiversidade do planeta, tem tudo para ser uma grande Nação, não em futuro longínquo, mas em futuro próximo. A perda do seu ritmo histórico de desenvolvimento o conduziu às dificuldades sociais que hoje enfrenta e a uma vulnerabilidade acentuada na sua capacidade de decisão soberana.
Interessa ao Brasil crescer com os que estão crescendo, atento ao fato de as políticas hegemônicas que lhe chegam de fora terem frustrado seu projeto nacional. À luz de seus interesses próprios, há de procurar aproximar-se dos países com quem tem convergências, em particular daqueles empenhados na busca de uma situação multipolar no mundo.

Foi correta a posição do Brasil em solidarizar-se com o povo norte-americano, atingido pelos atentados. E foi correta a crítica justa, pronta e enérgica ao terrorismo. Pareceu-nos forçado e equivocado termos recorrido ao Tratado Interamericano de Assistência Recíproca – o TIAR, de 1947, da época da Guerra Fria e quase já denunciado pelo México – para defender que o ataque terrorista aos EUA, pelo artigo 3º do TIAR, atingia a todos os estados americanos. Na verdade, o artigo 3º do TIAR estabelece que qualquer ataque armado de Estado estrangeiro feito a qualquer Estado americano atinge a todos os estados do continente. Os EUA não receberam ataque armado de nenhum Estado estrangeiro. Forçamos uma interpretação legislativa para nos colocarmos na linha de fogo do terrorismo internacional, sem nenhuma razão plausível.

A Comissão de Relações Exteriores e Defesa Nacional da Câmara dos Deputados, examinando essa questão, observou ter a nossa diplomacia uma característica própria, reconhecida e respeitada internacionalmente, que decorre das características do nosso próprio povo. É a característica da negociação inteligente, da articulação ampla, da busca da solução política. Razão pela qual, entre a guerra e a iniciativa diplomática e política para enfrentar o terrorismo, a nós caberia o empenho na frente diplomática. A Comissão considerou, por outro lado, que o terrorismo deve ser criticado sem ressalvas, mas que não se pode desconsiderar ser ele expressão do desespero que brota de situações agudamente injustas. E que, por conseguinte, caberia a nós contribuir para a solução desses problemas. Neste sentido a Comissão aprovou, por unanimidade, e já fez chegar às mãos do presidente Fernando Henrique Cardoso uma Moção que “exorta” o Presidente a pôr a diplomacia brasileira em se tratando de uma questão que, se encaminhada, poderia significar uma grande descontração na situação internacional – a questão da criação do Estado da Palestina.

Haroldo Lima é deputado federal pelo PCdoB/BA, exerce seu quinto mandato na Câmara dos Deputados, é membro titular e vice-presidente da Comissão de Relações Exteriores e Defesa Nacional.
Este texto reproduz sua intervenção na Escola Superior de Guerra, no dia 23 de outubro de 2001.

Nota
(1) Militar Balance 1998-99, London, Barseys, 1999. Citado em “A busca da harmonia e a idéia de revolução”, de Janice Theodoro e Fortunato Pastore, da USP, Revista Tempo Brasileiro 137, RJ, abril-junho de 1999.

EDIÇÃO 63, NOV/DEZ/JAN, 2001-2002, PÁGINAS 21, 22, 23, 24, 25, 26, 27