A Guerrilha do Araguaia – a mais extensa e prolongada obra de resistência ao regime militar – completa 30 anos no dia 12 de abril de 2002. Uma avaliação do período é inevitavelmente rica. Nessas três décadas, essa epopéia histórica do povo brasileiro foi indexada em milhares de páginas por inúmeras reportagens, estudos, pesquisas e, a cada ano, novas revelações incrementam a curiosidade persistente em torno do tema. é a derrota mais profunda da história oficial, que, nos 502 anos da formação do nosso povo, tratou de obscurecer incontáveis lutas, menosprezadas como episódios sem significação que firmariam a passividade como conceito diante da tirania e da desigualdade.

Outras lutas memoráveis do nosso povo levaram muito mais tempo para que se conhecesse, ainda que parcialmente, a verdade dos fatos. Contudo, conclui-se que, nas condições em que ocorreu a ruptura do regime militar, sobreviveram aspectos da tirania ainda não superados, exigindo uma posição decidida das Forças Armadas nacionais quanto às questões obscuras e do pleno resgate do respeito junto ao nosso povo, num momento em que podem se encontrar cada vez mais compulsoriamente envolvidas com as tarefas de defesa da soberania nacional nas circunstâncias atuais da ofensiva dos EUA no mundo e, em particular, no que diz respeito à Amazônia.

Noutro ângulo, o curso do tempo tratou de limpar mais o terreno infestado de equívocos e preconceitos e filtrou o essencial: preparada no processo político de enfrentamento contra o obscurantismo, no terreno mais favorável para os que lhe faziam oposição, a Guerrilha do Araguaia terminou por desnudar a essência do Estado brasileiro e a ação historicamente subalterna de suas elites, capazes de levar ao paroxismo a violência para sustentar internamente os objetivos imperiais e os seus mais mesquinhos interesses. Do domínio portu- guês ao norte-americano, as cabeças cortadas dos tombados simbolizaram a síntese imperial do barbarismo devotado a quem ousou contestar a ascendência sobre territórios tidos como reserva estratégica dos colonizadores e dos seus servos locais.

Não apenas por ironia, a campanha executada pelo núcleo de informações da ditadura nos governos dos generais Emílio Garrastazu Médici – principal comandante da repressão – e Ernesto Geisel – que o sucedeu –, reuniu oficiais portugueses e dos EUA nos bastidores do combate. A Guerrilha do Araguaia, que sucedeu as derrotas dos EUA na Ásia e algumas duras experiências portuguesas na África, recebeu a influência dos métodos empregados contra os povos nesses episódios. A trucul ência, que não logrou êxito naquelas guerras, dessa vez se abateu precocemente sobre populações que ainda desconheciam o desafio militar da libertação nacional e social.

O vaga-lume e a ULDP

Do “medo de vaga-lume”, mencionado pelo jornalista Eumano Silva numa série de reportagens para o Correio Braziliense (11/2001), em referência ao temor das selvas que assustava os oficiais, à imagem da tropa, sem roupas e armas, correndo rumo a Marabá, tocada pelos guerrilheiros, aos confrontos entre tropas oficiais no meio da mata – e baixas até hoje não divulgadas –, o respeito aos guerrilheiros, que tinham disposição de luta e um programa, manteve a região do conflito sob sua hegemonia por mais de um ano. Mesmo cercados numa extensa área limitada pelo rio Araguaia, a Transamazônica e as rodovias OP-3 e PA-70 (em construção), eram pouco combatidos no interior da selva, um “santuário” no qual as forças oficiais não se aventuravam.

A perman ência de centenas de militares nas bases de Marabá, Xambioá, Araguatins, Conceição do Araguaia e em bolsões da selva não impediu que, em julho, tranqüilamente, os guerrilheiros iniciassem a criação dos primeiros núcleos da União pela Liberdade e pelos Direitos do Povo (ULDP), que chegaram a 20, com centenas de pessoas, em pouco tempo. Quando as forças do governo voltaram maciçamente no início de setembro de 1972, às vésperas da inauguração da Transamazônica, as Forças Guerrilheiras do Araguaia (FORGA), reduzidas a menos de 60 na fase inicial, ultrapassavam os 100 combatentes – reforços oriundos dos núcleos criados, de acordo com moradores da região.

Um efetivo pequeno, mas preocupante para Médici e sua “comunidade”, que envolveu mais de dez mil homens – número bem maior que os efetivos empregados em qualquer batalha da Guerra do Paraguai – nas três campanhas de cerco e aniquilamento. Já em 1978, o general Viana Moog qualificava a Guerrilha do Araguaia como “o mais importante movimento armado rural já ocorrido no Brasil, principalmente por ter sido mais organizado” (Veja, 6/9/78). O general disse também que “foi o maior movimento de tropas do Exército, semelhante à mobilização da FEB que combateu o fascismo na Europa durante a II Guerra Mundial”. Outra comparação – do general Hugo Abreu – definiu a Guerrilha do Araguaia como “o mais importante movimento armado já ocorrido no Brasil rural”, em relação às guerrilhas de Caparaó, do Vale da Ribeira, no sertão baiano, e ao movimento de Jefferson Cardim.

Com o insucesso da primeira investida militar, o general Milton Tavares, que representava a linha dura do Exército, convenceu o ministro Orlando Geisel a realizar uma operação de guerra de grande porte, com uma mobilização gigantesca de tropas que durou de setembro a novembro de 1972: mais de três mil militares e apoio da FAB com quatro helicópteros UH, três aviões Búfalo, um C-47, quatro aviões D-19 e quatro caças de combate T-6. A operação “não teve sucesso em liquidar a guerrilha devido à extensão da área a ser coberta, entre outros razões”. (JB, 7/6/92). Os estrategistas militares adotaram a tática da bigorna e do martelo, num cerco maciço da região, articulado com pelotões que invadiam a mata para empurrar os guerrilheiros em direção à tropa, mas desconheciam as dimensões da área de atuação da Guerrilha – superior à do território da Itália.

Além disso, D. Pedro Casaldáliga (Jornal Movimento, 17/7/78) lembrou que o conflito foi muito além da área conflagrada: “A guerrilha do Araguaia sempre se concentrou mais no sul do Pará, e estendeu seu raio de ação ao norte de Goiás. No entanto, durante os anos de 1972 e 1973, o Exército e a Aeronáutica também realizaram operações antiguerrilha na margem mato-grossense do rio Araguaia, nos municípios de Luciara e Barra do Garças, concentrando-se, sobretudo no então distrito de São Félix. Nós estávamos a cerca de mil quilômetros da guerrilha. Em nossa região, nunca houve, ao que se saiba, nem a sombra de guerrilheiros. O povo mesmo da região não sabia bem o que era isso. E a ACISO, realizada pelo Exército em São Félix em 1972, e também em 1973, se deu com técnicas e solenidades de operação antiguerrilha”.

Um depoimento de Dom Alano Maria Pena lembrou o difícil cenário e uma das inúmeras atribulações da Igreja Católica no período, quando, durante a segunda campanha, as forças oficiais organizaram a tomada simbólica da cidade de Marabá, distribuíram revólveres de brinquedo aos jovens, que fariam o papel de tropas legais, enquanto as tropas descaracterizadas fariam o papel de “terroristas”:

“Eles fizeram um bombardeio da ilha aqui na frente, batalha simulada, jogaram Napalm, fogo de morteiro, e depois fizeram uma programação da vitória. Houve festas na cidade e o baile da vitória à noite, e esse negócio todo veio organizado de Brasília. E havia uma missa. E foi aí que começou o enguiço, porque D. Estevão recusou-se a rezar a missa. Isso foi em setembro. Aí o prefeito e até o governador procuraram D. Estevão para demovê-lo, até o arcebispo se prestou a esse papel de insistir com D. Estevão, que continuou rejeitando energicamente. Aí eles trouxeram um capelão militar do Nordeste e decretaram isso aqui uma praça militar, e o capelão celebrou a missa. Uma palhaçada verdadeira”. (Jornal da Tarde, 13/1/79)
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Ocorre que os guerrilheiros não representavam perigo para a Igreja, até porque não executavam o inimigo como procedimento de guerra. Dina – temida, símbolo do perigo das matas para os militares, ao lado de Osvaldão –, ficou conhecida também por sua capacidade de libertar, poupando vidas de oponentes indefesos.

Estavam cobertos de razões os comandantes militares que perfilavam seus subordinados diante do guerrilheiro tombado e proclamavam suas virtudes como exemplo do comportamento guerreiro. Um oficial entrevistado por Fernando Portela ressaltou a atitude “militarmente correta” dos guerrilheiros, a qualidade de “profissionais de gabarito, intelectualmente muito bem dotados”, e que, com “uma mobilidade impressionante, conheciam a região muito bem, dominavam a topografia local melhor do que a gente conhece a palma da mão, se infiltravam, passavam, às vezes, a dois, três metros de onde a gente estava, observando o que se fazia lá, o que estava ocorrendo lá dentro, e depois deixavam mensagens. Claro, eles deviam estar em inferioridade numérica muito grande, então apelavam para essa guerra psicológica, que tinha um efeito enorme. Isso era uma atividade subversiva bastante demolidora, abalava muito”.

Mais subversiva era uma outra motivação de fundo, especial: o Programa de 27 pontos da União pela Liberdade e Direitos do Povo (ULDP), que resumia a situação em que viviam os moradores da região, sistematizava um conjunto de reivindicações que refletiam suas demandas e apontava uma saída.

Tratava da luta pela posse da terra, da sua defesa contra a grilagem, da política extorsiva de impostos de uma região que o Estado desprezava, da ausência de meios para escoar a produção do pequeno e médio lavrador, das arbitrariedades da polícia, dos direitos da mulher, da necessidade de um sistema de saúde que dotasse de postos de saúde as povoações, de um preço mais justo para a produção do castanheiro e do trabalhador da madeira, da defesa dos recursos naturais, de uma política em defesa do índio, da organização de comitês populares para viabilizar esse conjunto de reivindicações. No Programa, os representantes seriam eleitos pelo próprio povo, que deveria organizar sua vida nas cidades, nos lugarejos ou vilas, decidindo sobre seu próprio destino.

De impressionante atualidade, o Programa da ULDP, em diferentes circunstâncias políticas no País, substituída a ditadura militar, vale ainda hoje para os moradores do Araguaia. Num amplo espectro de problemas, persiste em larga escala a grilagem de terras, do mesmo modo que a cobrança extorsiva dos impostos, a vasta destruição dos recursos naturais, o desprezo pela situação da mulher, a concentração dos incentivos fiscais nas empresas do grande capital em detrimento da pequena e média propriedade, dos mineradores estrangulados pelas grandes companhias que monopolizam toda atividade, afastando os autônomos.

Mas, sem nenhum respeito pelos desejos do povo e caçando brasileiros no epílogo do confronto, a partir de outubro de 1973 a janeiro de 1975, os “secretas” do Exército e a Aeronáutica chegaram em Xambioá precisamente como duas empresas privadas (uma agropecuária do Exército e uma mineradora da Aeronáutica), alavancaram o terror em larga escala sobre os moradores da região, e, com vasto equipamento militar em efetivos e armas, detonaram o matraquear de helicópteros e metralhadoras zunindo até hoje sobre as cabeças dos sobreviventes do período.

A guerra persistente

As queimadas diárias que precedem o período das chuvas, as árvores esturricadas que anunciam a passagem da destruição, a presença passiva do gado se espalhando pelo horizonte, as mineradoras à beira do caminho são os sinais do aparente triunfo da barbárie especulativa sobre os interesses do país e do povo da região. Sinais, contudo, apenas simbólicos de uma vitória arrancada a fórceps e que não conseguiu dobrar – pelo contrário, desenvolveu – o espírito de resistência e de luta, temperado pela audácia, criatividade e tenacidade dos combatentes comunistas, ampliando ao longo do tempo a área conflagrada.

Desde que os generais do período (e sua “comunidade”) deram como encerradas as operações de combate à Guerrilha, apenas cresceram entre os moradores do Araguaia os sentimentos de admiração pelos guerrilheiros, vistos como boas pessoas que ali chegaram e nunca se foram – presos vivos, escaparam, mesmo executados. Assim como não arredaram pé a “comunidade” e seus assassinos de aluguel, que, chafurdando o rio Maria, exterminaram barbaramente os Canuto – Expedito e João –; Belchior, Paulo Fonteles, Gringo – amigo de Osvaldão –; entre tantos lutadores. Seus ossos – de guerrilheiros e sucedâneos – fertilizam a terra que, nua e fecunda, é ocupada pelo MST e MLT, núcleos oriundos de uma oposição sindical que surgiu na seqüência da luta armada.

“Combatendo a guerrilha rural na região do Araguaia, no começo da década dos 70, o Exército trouxe para a área dois problemas que persistem até hoje: a briga pelas terras e a impunidade de pistoleiros. Para acabar com a Guerrilha, as autoridades prometeram terras alheias ou que nunca foram entregues, e contrataram pistoleiros para matar os guerrilheiros”. A afirmação, colhida onze anos após o fim da Guerrilha foi de João Nunes (codinome Pancho Vila) durante a repressão, à época uma das principais autoridades civis da área das divisas dos estados do Pará, Goiás e Maranhão. Advogado, era o procurador-geral do INCRA e responsável inicial pelos programas de colonização iniciados com a Transamazônica (JB, 8/12/85). Teria ocorrido, também, a libertação de presidiários em troca da comutação da pena, como hoje contam os moradores da região.

Os desdobramentos da Guerrilha incluíram uma exaustiva relação de eventos relacionados à ação permanente do núcleo da “comunidade de informações”. Nos anos seguintes, a região permaneceu militarizada e o Exército procurou patrocinar uma improvisada reforma agrária com a distribuição de terras entre os que haviam colaborado com as tropas. “Em nenhuma outra área do Brasil, de todo modo, a ação do Exército deixou traços tão nítidos como na região em que operaram no princípio da década as Forças Guerrilheiras do Araguaia. Decididos a encontrar uma fórmula que trouxesse a calmaria, os militares acabaram promovendo uma singular partilha da terra. Assim, tão logo cessaram as hostilidades, lotes de 21 alqueires (equivalente na região a 100 hectares) foram distribuídos entre cerca de 350 famílias de antigos ‘bate-paus’ da PM, guias do Exército e alguns forasteiros que de alguma forma colaboraram. Esses lotes se localizam às margens das três ‘OP’s’ – as ‘estradas operacionais’ construídas na época para dar passagem às tropas que perseguiam os guerrilheiros” (Veja, 6/9/78).

Mas os conflitos prosseguiram com intensidade. Diante da ofensiva do movimento camponês em Xinguara (julho de 1978) o capitão da PM de Marabá, Osvaldo Ferreira da Silva Filho – conhecido como capitão Alaor – declarou: “Foi preciso intervir. O que tivemos aqui foi uma verdadeira rebelião, uma das movimentações mais descontroladas que já vi”. Tratava-se de algo parecido com o movimento guerrilheiro que o capitão Alaor ajudou a combater, anos atrás, em matas não muito distantes dali. Pouco menos de três anos após o fim das guerrilhas, um grupo de posseiros atacou um destacamento da Polícia Militar que dava cobertura à mediação de uma área por técnicos do INCRA, matando dois soldados e ferindo outros dois. Os soldados caíram numa emboscada armada em Boa Vista de Perdidos, povoado próximo a uma das bases dos guerrilheiros (OESP, 14/9/78).

Os problemas fundiários e as arbitrariedades policiais continuaram a acumular-se. Um dos capítulos mais recentes resultou no massacre de 21 militantes do MST em Eldorado dos Carajás, também marcado pela impunidade. O jornal Zero Hora (10/5/96) publicou e chamou a atenção para as semelhanças entre as fotos da época da Guerrilha e as cenas da chacina de abril de 96: “não são mera coincidência”.

Curió permaneceu como oficial de ligação entre o Exército e seus ex-guias. Depois da Guerrilha, foi construído no quilômetro 8 da Transamazônica, bem perto da OP-3, o quartel que hoje é dividido pela 23ª Brigada de Infantaria da Selva e o 52º Batalhão de Infantaria da Selva, na época com cerca de 200 soldados – o ponto de partida de Curió, que manteve uma rede de informantes à entrada da OP-3 para descobrir a movimentação de estranhos. A cada 15 dias pelo menos, ele passou a percorrer os lotes com um pequeno grupo, distribuindo remédios, assistência médico-dentária, dinheiro, financiamentos para lavouras, organização de festas religiosas e forrós, escolas e muita pregação cívica, gênero “corrente pra frente” e “Brasil grande”, sobretudo conversando com os moradores sobre problemas da região, prevenindo ações políticas de esquerda. As pessoas foram proibidas de revender seus lotes e de manter contatos com os padres da região que, segundo ele, seriam comunistas (Jornal da Tarde, 20/1/79).

Todo o Médio e o Baixo Araguaia permaneceram como área de grande interesse para a “comunidade”. Segundo um general que desempenhou importante papel no combate à FORGA, isto se explica: o extermínio dos focos armados que surgiram na primeira metade da década não eliminou o ‘potencial de conflito’ existente no campo, especialmente na Amazônia, fazendo com que a questão agrária continuasse a preocupar o Conselho de Segurança Nacional e a ocupar o Exército em funções alheias a suas tarefas específicas – o que considerou “traumático”.

Nessa doutrina, a Igreja e mesmo fazendeiros continuaram com lugar reservado. Curió admitiu ao JB a autoria de vários relatórios que acusavam religiosos de ajudar guerrilheiros e incitar posseiros: “Bispos, padres e agentes de pastoral trabalhavam abertamente em favor dos guerrilheiros do PCdoB, garantindo estadia e proteção”. Na época, o bispo Estevão Cardoso Avelar chegou a ser detido, outros religiosos foram presos e torturados, uma freira enlouqueceu. O fazendeiro Evandro Azevedo foi perseguido como suspeito de prestar apoio logístico para guerrilheiros, pois suas terras ficavam numa área de fuga dos “funis” armados pelo Exército. Outro fazendeiro, conhecido como Noleto, acusado de auxiliar os guerrilheiros e de emprestar um avião a Dina e Osvaldão, não sobreviveu para reclamar: mantido durante vários dias com a metade do corpo mergulhado na água dentro de um fosso coberto por arames farpados, morreu pouco tempo depois em conseqüência das torturas (Zero Hora, 10/9/95).

Ainda hoje, um duelo judicial está em pleno curso, colocando em xeque o Estado brasileiro: de um lado o Ministério Público Federal (MPF) e de outro a face oculta do Estado. O título “Exibição de papéis do Araguaia é suspensa” (Folha de S. Paulo, 12/12/2001) indica que o tema permanecerá em pauta indefinidamente. Nessa notícia, o MPF sofria uma derrota com a suspensão da decisão judicial que obrigava o Exército a exibir, em audiência reservada, todos os documentos secretos relativos a operações militares da Guerrilha do Araguaia. O objetivo da audiência, que seria realizada na Justiça Federal de Marabá (PA), era permitir que o MFP buscasse informações para a localização dos restos mortais de 62 desaparecidos na guerrilha. A decisão suspensa, proferida por um juiz federal de Marabá, também impedia que as Forças Armadas e a Agência Brasileira de Inteligência (ABIN) promovessem atividades de inteligência e de assistência social beneficiando ex-guias do Exército durante a guerrilha – ações que se mantêm até hoje.

Mas, hoje, surgem indícios de que essas ações podem ser substituídas por outras, mais nobres e mais amplas, dando origem a uma outra doutrina. São aspectos registrados por Miguel Urbano Rodrigues num artigo (“Militares brasileiros treinam guerrilha. Nova opção do Exército: EUA inimigo potencial”) publicado na Revista Avante. Ele constatou, após a leitura de um artigo de Márcio Moreira Alves publicado no Globo e não contestado pelo Exército, que os militares estão treinando soldados na floresta amazônica, próximo à fronteira com a Colômbia, prevendo uma guerra considerada inimaginável há poucos anos: “Desta vez não se trata de um projeto antiguerrilha. A tropa é preparada para uma eventual guerra de guerrilhas contra um invasor potencial. O inimigo seria o aliado tradicional: os Estados Unidos”. Urbano ressalta que a criação em Manaus do Centro de Treinamento de Guerra na Selva, hoje considerado um dos melhores do mundo, foi uma iniciativa mal recebida em Washington, nomeadamente no Pentágono.

Em seu artigo, Márcio Alves informou, após uma visita ao Centro, que “os soldados e os oficiais aprendem, com duros exercícios, a sobreviver na floresta, bebendo água das plantas e comendo o que podem apanhar, cobras inclusive. Nas aulas teóricas lêem os trabalhos de Ho Chi Minh, do general Giap, de Che Guevara. As ações sociais que desenvolvem são parte da preparação militar. É o povo quem sustenta uma guerrilha, como os norte-americanos descobriram no Vietnã, quando uma divisão vietcongue completa, com artilharia e tudo o mais, brotou da terra em Saigon, na ofensiva do Tet, que acabou de desmoralizar as mentiras do Pentágono sobre a ‘boa condução da guerra’”.

O oficial ouvido por Urbano confirmou o fundamental: “Nós, na hipótese de uma intervenção militar na Colômbia que tenha como complemento a instalação de tropas norte-americanas em território da Amazônia, o que seria uma forma de intervenção indireta, temos de estar preparados para o pior. Sou realista. Se as nossas relações com os EUA assumissem uma feição conflituosa não disporíamos de força suficiente para derrotar uma tropa de ocupação norte-americana. Mas é também uma atitude realista reconhecer que, hoje, o inimigo potencial do Brasil são (sic) os EUA. Numa guerra travada na selva seríamos melhores do que eles”.

As Forças Armadas, na busca de um perfil respeitado pelo nosso povo, efetivamente precisam descobrir o inimigo real, romper com a tradição simbolizada pelas cabeças cortadas dos lutadores brasileiros e enterrar definitivamente a herança de guerras sujas que as desonram, nas quais militares, compulsivamente, prendem vivos, torturam, executam, ocultam os mortos e queimam os corpos do “inimigo” (que elogia) no mais extremado desvio. São, essas, “guerras” nas quais não recebem medalhas pelos feitos em combate – porque vergonhosos – ou não podem exibi-las, não resultam sequer em promoção, que nem a Justiça Militar é capaz de admitir-lhes a simples existência, que obriga ao silêncio milhares de pessoas que omitem da História a seiva do seu engrandecimento.

Somente assim será virada uma página obscura – explicável apenas pela manutenção do sigilo como obediência cega a decisões que remontam à época do governo Médici e mantida pelos sucessivos ministros do Exército responsáveis, naquela época, pelas operações no Araguaia, como declarou um militar que esteve em Xambioá e defende os esclarecimentos (OESP, 10/10/82). Ou como propôs o general da reserva Tasso Vilar de Aquino (O Globo, 06/04/98) que aos 86 anos defendeu a abertura irrestrita dos arquivos secretos das Forças Armadas, afirmando que “os excessos foram praticados somente pelo DOI-CODI, os responsáveis pelo órgão deveriam assumi-los publicamente”. Para o general, a instituição não tem do que se envergonhar.

Ocorre que, os excessos foram crimes de guerra que acarretaram duras conseqüências para o Brasil, pois implicavam numa sinistra tentativa de destruição do pensamento nacional. Os responsáveis pelo CIEx (ou pelo DOI-CODI) não a completaram porque não se destrói a memória de um povo. Porque seus heróis, como disse o poeta, presos vivos, escapam, mesmo mortos. O Brasil perdeu velhos e jovens combatentes de vulto, pensadores e homens de ação que, vivos, seriam expoentes da nação, na sociedade, no Parlamento, na busca de um destino glorioso, homens e mulheres fundamentais na senda das nossas lutas patrióticas. Mas, com este exemplo e experiência, contará sempre com a convicção que nos legaram, que servirá em qualquer luta contra as pretensões forâneas na Amazônia e no País – de que nem a mais brutal das chacinas é capaz de derrotar nosso espírito de resistência e de luta. Como disse João Amazonas em depoimento na Câmara dos Deputados, o PCdoB não faz proselitismo em torno da Guerrilha do Araguaia, mas afirma a convicção de que, onde quer que a liberdade seja ameaçada, aí estarão os comunistas para restaurá-la, erguendo alto a defesa da soberania e de seu povo, com o sacrifício de suas vidas – se assim for necessário.

E a semente brotou

Hoje, a simples menção a algum herói tombado faz despontar um jeito curioso, um sorriso largo ou um olhar triste no morador anônimo do Araguaia, personagem de muitas contendas. Numa dessas – bem atual –, o Incra, numa cobertura oficial para a “comunidade” na Guerrilha, achou por bem vetar os nomes de João Carlos Haas e Dina, da Guerrilha, para dois assentamentos, e substituí-los por “Brasil-Espanha” e “Oito Barracas”, contestando a vontade dos camponeses. Estes, no entanto, assentados na região de São Domingos, mantêm o livre batismo.

Também é fato: nenhuma força bruta impediu que o município de São Domingos das Latas se transformasse em São Domingos do Araguaia e que uma revista (Manchete) anunciasse em sua edição nº 2.131 (6/2/1993): “O presidente da Câmara de Vereadores, Abdias Soares da Cruz, orgulha-se de ter incorporado ao escudo do município as armas dos guerrilheiros como reconhecimento histórico da luta”. Sentida homenagem: juntamente com o povoado de Palestina, São Domingos teve quase toda a sua população presa (em um só dia, 150 pessoas, presas por meses).

Ou que, mais recentemente, no dia 14 de novembro de 2001, a Assembléia Legislativa do Pará realizasse Sessão Solene para oferecer os títulos de “Cidadãos do Pará” (Post Mortem) aos comunistas Osvaldo Orlando Costa, um dos comandantes da Guerrilha, e Expedito Ribeiro, presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Rio Maria. Os projetos que concederam os títulos são da deputada Sandra Batista, do PCdoB, e foram entregues a Cristina Costa, sobrinha de Osvaldão, e Antônia Ribeiro, filha de Expedito.

Reunidas num ato, no dia 25 de outubro de 2001, transbordando de gente, uma escola (São Judas Tadeu), no resgate de sua saga histórica, todas as autoridades de Xambioá – prefeito e secretários municipais, presidente da Câmara e vereadores, juiz, promotor – se juntaram a empresários, jornalistas da grande imprensa do sudeste e do Pará, professores, estudantes e trabalhadores, para um debate sobre o ocorrido na região.

O encontro desdobrou, 21 anos depois, as lembranças de um outro dia 25 – na caravana de outubro de 1980 –, quando quase 200 pessoas esperavam na região os familiares dos guerrilheiros mortos. Vitória Lavínia Grabois (filha de Maurício Grabois, irmã de André Grabois e esposa de Gilberto Olímpio Maria), não se conteve e caiu em pranto convulsivo. Abraçada ao advogado Paulo Fontelles, e à dona Cirene Barroso (mãe de Jana Moroni Barroso), balbuciou entre soluços: “obrigada, obrigada, meu pai é que deveria ter visto isso”. No almoço servido pela população aos familiares dos guerrilheiros um posseiro toma a palavra e diz: a semente que eles plantaram nós estamos colhendo, continuando a luta que eles iniciaram.

Sem medo, comemorou-se os 43 anos de Xambioá no dia 14 de novembro de 2001. Centenas de moradores – jovens de oito colégios na maioria – montaram um palco na avenida Beira-Rio e encenaram a luta, a perseguição, a bravura e o martírio dos guerrilheiros. Depois, em caminhada pelo aclive da igreja de Xambioá alcançaram a praça, onde uma equipe de jurados escolhia quem era capaz de identificar com maior facilidade os guerrilheiros nas fotos dos desaparecidos do Araguaia. Unidos, confraternizaram com os moradores de São Geraldo que, cruzando o grande rio, foram à festa sonhada, pelo “povo da mata” em sua gloriosa jornada de luta.

Os 30 anos do início da Guerrilha foram brindados no Brasil por uma agenda que incluiu iniciativas como uma sessão solene na Câmara dos Deputados e uma caravana da juventude à região. Xambioá, o cenário que acantonou as forças militares oficiais naquele período, preparou-se para o lançamento da pedra fundamental do Memorial do Araguaia, em Xambioá, que incluirá uma amostra e um mausoléu. Em cada gesto, o povo promove seu definitivo reencontro com a História.

Luiz Carlos Antero é jornalista, assessor da bancada do PCdoB na Câmara Federal e integrante da Comitiva Oficial que visitou a região do Araguaia.

EDIÇÃO 64, FEV/MAR/ABR, 2002, PÁGINAS 40, 41, 42, 43, 44, 45, 46