As classes sociais são seres históricos. Possuem uma inserção determinada, e relativamente estável, no processo da produção e distribuição das riquezas, e na luta que daí deriva. Mas têm também sua trajetória, que inclui nascimento, vida e morte, avanços e retrocessos, crises, e transcorre simultaneamente nas esferas da objetividade e da subjetividade, da “classe em si” e da “classe para si”.

Tomemos a burguesia: o Manifesto Comunista descreve sua trajetória: a origem remota nos burgos medievais, as Grandes Navegações, a fase das manufaturas e sua superação pela grande indústria, o nascimento do mercado mundial. “Vemos portanto que a própria burguesia é o produto de um longo processo de desenvolvimento, de toda uma série de revoluções nos modos de produção e de troca.
Cada etapa da evolução percorrida pela burguesia era acompanhada de um progresso político correspondente.”

Temos portanto uma classe única – a burguesia – mas em incessante metamorfose. Os personagens típicos que encarnaram cada fase desse processo diferem bastante entre si: O modesto burguês da Idade Média, recém-saído da servidão, amealhando seu pecúlio à sombra do castelo senhorial, e só sonhando em ser fidalgo, como na atilada caricatura feita por Moliêre. O burguês mercantil do Renascimento, protagonista da epopéia das Navegações primeiro grande passo adiante na senda da mundialização. O burguês manufatureiro pré-industrial, pioneiro da socialização do trabalho. O burguês da Revolução Industrial (1780-1840), quando o capitalismo afinal se afirma como sistema hegemônico, e a burguesia impõe sua dominação de classe, econômica e política. O grande burguês financeiro da virada para o século 20, já na época do imperialismo, à frente de seu grupo monopolista que combina bancos e indústrias, atuando em escala planetária. Ou ainda o burguês-especulador finaceiro dos nossos dias, versão exacerbada do precedente, aplicando dinheiro on line pelo planeta afora, de preferência no mercado de futuros, tão completamente divorciado do mundo do trabalho que muitas vezes nem será capaz de dizer qual processo produtivo real alimenta a alucinada acumulação de seu capital.

Vista assim, a vôo de pássaro, a epopéia multissecular da burguesia aparece como uma longa marcha que divorcia sempre mais a propriedade do trabalho.

A historicidade se manifesta tanto no tempo como no espaço. A mesma classe burguesa assume em cada lugar suas características próprias, seu jeito de ser nacional, ou mesmo local, ditado pelas circunstâncias que a história lhe impôs.

E, por fim, a mesma historicidade que marca a “classe em si” condiciona – e, em última instância, determina – a trajetória da classe “para si”, sua subjetividade, sua consciência, suas organizações, seu comportamento nas diversas esferas da luta de classes.

A saga histórica do proletariado

O Manifesto não descreve senão tangencialmente o desenvolvimento histórico do proletariado. No entanto, ele mereceu repetidamente as atenções de Marx e Engels, desde A situação da classe operária na Inglaterra (1845). Uma reconstituição sistemática dessa saga, do século 18 ao 21, ajudaria imensamente a jogar luz sobre os problemas que nos ocupam hoje.

Ela decerto identificaria nos primeiros passos da classe, pari passu com a Revolução Industrial na Inglaterra, uma prolongada e dolorosa fase crítica que poderíamos batizar de crise original do proletariado. Os artesãos arruinados, os camponeses arrancados da terra pelos inclosures, os pobres livres de diversos tipos onde se recrutou a nova classe tardaram a dar-se conta de sua nova identidade.

Perto de duas gerações transcorreram entre as primeiras fábricas, nos anos 1780, e os primeiros sindicatos, quatro décadas depois. Duas gerações de perplexidade e atonia, prostituição e alcoolismo, suicídios, infanticídios, seitas esotéricas, entidades dedicadas à temperança, à educação ou à caridade, desagregação de formas de organização multisseculares como os grêmios corporativos, desesperadas tentativas de retornar ao antigo status, como as dos luddistas que viam nos teares mecânicos os causadores das suas desgraças.

A introdução do padrão produtivo taylorista-fordista (às vezes referida como uma “Segunda Revolução Industrial”) também abriu uma fase crítica, embora de duração e profundidade menores. O gênio de Charles Chaplin retratou-a em Tempos modernos. O próprio Henry Ford não encontrou trabalhadores para operar suas linhas de montagem, até que decidiu dobrar o salário-hora do mercado. Quando o novo padrão se impôs, o sindicalismo acusou o golpe de um sistema que o hostilizava abertamente (“Na administração científica do trabalho – (escrevia Taylor) – não há lugar para o sindicato ou qualquer outro organismo de mediação coletiva”). Nos EUA dos anos 1910-1920, entidades de peso como a United Mine Workers (dos mineiros) e a lnternational Ladies Gardient Workers (dos têxteis) quase desapareceram. Em 1932, o presidente da American Economic Association, patronal, profetizava: “A influência do sindicato na América está sendo lenta mas inexoravelmente circunscrita por mudanças que destroem os próprios alicerces sobre os quais o sindicato se apóia. Não há razão para supor que este processo se inverterá na próxima década”.

Porém a vida acabou refutando esse agouro e tantos outros semelhantes. A classe dos assalariados que produzem o capital superou tanto uma como outra crise, impulsionada por processos que derivam da lógica inerente à reprodução capitalista. E quando usamos o termo crise, empregamo-lo no seu sentido original e mais abrangente, que não tem necessariamente conotação negativa, indicando os estados de acentuada instabilidade que em geral acompanham as mudanças de qualidade, sejam elas regressivas ou progressivas.

A atual crise da classe

Pois bem: nossa classe, ao fim de perto de dois séculos de existência (o que não é muito aos olhos da história), vive, mais uma vez, um desses momentos cruciais. A crise atual deriva de uma síndrome de causas, que se catalizou no último quartel do século 20 e ainda perdura.

Entre esses fatores entrelaçados, destacam-se: 1) Uma notável virada na revolução produtiva burguesa (também chamada “Terceira Revolução Industrial”), que reconfigura a base técnica-material e a organização da produção, as forças produtivas, as relações técnicas de trabalho e até aspectos das relações sociais de produção do capitalismo. 2) Uma prolongada fase – 28 anos, a contar de 1973 – de relativa estagnação da produção capitalista mundial, que coexiste e conflita, crescentemente, com o vertiginoso salto adiante da tecnologia e da produtividade; 3) Já no plano superestrutural, a derrota da experiência socialista soviética e das democracias populares leste-européias, a imposição da “nova ordem” norte-americana e a ofensiva neoliberal; 4) E, por fim mas não por último, as vicissitudes do pensamento marxista, que se encontra atrasado no exame desta realidade nova.

Do ponto de vista da classe dos modernos trabalhadores assalariados explorados pela burguesia, esta síndrome tem efeitos contraditórios. Os mais evidentes, porém, atingem duramente o proletariado:

1) Em primeiríssimo lugar, a onda mundial e estrutural de demissões e a dimensão inédita do exército de reserva dos desempregados.

2) Crescimento do trabalho terceirizado, parcial e precário, e da legião dos chamados “excluídos” (termo de duvidoso rigor teórico).

3) Mudanças de vulto no perfil da classe, nos seus diversos segmentos e nos mais diferentes aspectos, desde o gênero (feminização), a composição etária (juvenescimento), a instrução (intelectualização), a qualificação (“polivalência”), o componente étnico (presença crescente da mão-de-obra imigrante nas metrópoles capitalistas), as relações técnicas de trabalho (drásticas mudanças no ranking das categorias profissionais, com a desaparição de muitas e o surgimento de outras tantas).

4) Uma aparente diferenciação, fragmentação e em certos casos pulverização da classe, também em diferentes órbitas – espacial, profissional, de vínculo empregatício, etc.

5) A ofensiva patronal contra os direitos trabalhistas conquistados ao longo do século 20 (mais especialmente nas três décadas pós-II Guerra, fase de relativa prosperidade capitalista e ascenso das lutas dos trabalhadores): flexibilização, desregulamentação e desproteção das relações trabalhistas; degradação e pauperização (relativas e em muitos casos absolutas) das condições de existência da classe.

6) Ensurdecedora e ardilosa campanha ideológica patronal – essencialmente mentirosa, mas tirando partido de elementos reais –, tendo por base o pensamento único neoliberal e por discurso a “parceria”, a “competitividade”, a “modernidade” e a “globalização”. Contestação – à direita e à “esquerda” – da centralidade do trabalho, do proletariado, de seu papel social e seu projeto histórico.

7) Refluxo, prolongado e generalizado, embora desigual, da luta de classe do trabalho contra o capital, a partir de sua manifestação mais básica e encontradiça sob o capitalismo, o movimento grevista.

8) Refluxo do nível de consciência da classe.

9) Refluxo, ainda, do nível de organização da classe, em especial das suas formas basilares, o sindicato e o partido. Guinadas à direita ou fortalecimento das tendências de direita em não poucas dessas organizações. Queda das taxas de sindicalização. Ascensão de outras formas – movimentos, ong’s –, freqüentemente tomadas como alternativas e até rivais.

Essas manifestações configuram a presente crise do proletariado. Seu fulcro é o oitavo dos itens elencados acima. Trata-se essencialmente de uma crise de consciência, ou, para sermos mais precisos, uma crise de autoconsciência, de identidade. Nossa classe encontra dificuldades em reconhecer-se. É como a adolescente que se olha no espelho mas não se identifica com o que vê: a subversão hormonal é vertiginosa demais, perturbadora demais; ela não enxerga no seu reflexo a linda mulher que desabrocha, mas apenas as espinhas que lhe enfeiam a epiderme.

O próprio fato de usarmos neste debate uma designação – proletariado – de uso corrente no século 19 mas hoje aposentada no linguajar coloquial, não deixa de ser um sintoma colateral das dificuldades que defrontamos. Uma classe que não se reconhece tampouco se designa.

A crise afeta com especial virulência o operariado fabril clássico, núcleo fundador e estruturador da
classe. é ele que arca com o peso principal dos sintomas listados acima. Não por acaso alguns, inclusive à esquerda, designam nossa época como “pós-industrial”. Por diversas razões, que incluem considerações sociais e políticas, o capitalismo contemporâneo caminha no sentido contrário das gigantescas unidades fabris que no passado referenciavam a existência e a luta da classe, como a Usina Putílov, com 40 mil operários, na São Petesburgo de 1917, ou a Volks-São Bernardo, com 46 mil, na Grande São Paulo de 1980. Hoje, a produção da Volkswagen do Brasil se dá em cinco unidades industriais, espalhadas inclusive fora do Estado de São Paulo; a unidade de São Bernardo opera com perto de 20 mil trabalhadores, incluindo-se os terceirizados, e o plano da empresa é reduzi-los à metade.

Ora, é fato historicamente comprovável que uma mesma classe social pode assistir a deslocamentos do seu núcleo central. A própria burguesia teve por centro dinâmico inicialmente o segmento mercantil; mais tarde o industrial e em seguida o financeiro. A escravaria brasileira esteve nucleada sucessivamente nos canaviais nordestinos (séculos 16-17) nas lavras das Minas Gerais (século 18) e nos cafezais fluminenses e paulistas (século 19).

Este exame e este debate requerem, porém, como pressuposto, uma análise mais detida do que vem ocorrendo de fato com a classe no seu conjunto. Nossa hipótese de trabalho é que ela desmentiria não poucas “evidências” aparentes e nos brindaria com gratas surpresas.

Um proletariado expandido

Na época dos fundadores do marxismo, o proletariado praticamente se confundia com o operariado fabril. Marx e Engels, e, depois deles, Lênin, empregaram correntemente os termos “proletariado” e “classe operária” como sinônimos.

Contudo, já então essa identidade convivia com exceções. A classe incluía segmentos não fabris, como os assalariados agrícolas, mineiros, ferroviários, marítimos, portuários, trabalhadores da construção civil. E Marx, se não nos deixou uma definição de proletariado, indicou (n’O Capital e sobretudo nas anotações para O Capital, que não chegou a ver publicados) que este não se cinge às fábricas, ou à produção de bens materiais, mas sim à produção de mais-valia, à reprodução do capital.

Naqueles idos do século retrasado, e ainda hoje, o paradigma dessa relação social tinha e tem por cenário a indústria de transformação, a fábrica. Porém, o conteúdo definidor da relação capitalista e da condição de classe da dualidade burguesia-proletariado não se prende a este cenário. Daí o emprego por Marx de exemplos de trabalhadores produtivos de mais-valia que ainda hoje horrorizam os adeptos de certa leitura tacanha do marxismo: o escritor, o professor, a cantora de ópera.

O que assistimos, cada vez mais, é a generalização do paradigma industrial, um fenômeno que bem poderia ser designado industrialização. Sob o império do mercado, industrializam-se a agricultura e toda uma imensa gama de serviços produtivos de capital (fenômeno que se reflete e se entrelaça, com conteúdo distinto, nos processos de trabalho não produtivo de mais-valia, especialmente os da esfera da circulação de mercadorias e de capital). Na órbita dessa industrialização, o assalariamento – compra de força de trabalho pelo capital – continua a se expandir na totalidade do mundo capitalista. E o mesmo conteúdo básico de classe contagia outras formas de relação capital-trabalho (como, entre tantas outras, os contratos de “prestação de serviços” decorrentes da terceirização) que constituem em essência relações de salariato camuflado.

Este é também um processo histórico: as tendências do futuro se entrelaçam com os resquícios do passado; e a realidade dos fatos coexiste com sua percepção, sempre imperfeita, diferenciada, contraditória, na consciência social. Os médicos, para tomarmos um exemplo entre muitos, duas gerações atrás eram de fato, via de regra, profissionais liberais. Hoje, renderam-se em massa ao assalariamento, explícito ou camuflado, ainda que este seja um processo inconcluso na sua objetividade e mais ainda na imagem que a categoria projeta de si própria.

A diferenciação, fragmentação, em certos casos pulverização da classe dos asssalariados produtivos de capital, é outro fenômeno que reclama exame mais profundo. Também aqui, a tendência dominante na superfície convive com seu contrário que impera nos subterrâneos da ordem econômico-social. Na superfície dos espaços geográficos, a classe efetivamente se desconcentra – e isso de fato acarreta não poucos desafios para sua ação social e política imediata. Porém, o que ocorre nas profundezas das relações de propriedade e de trabalho? O capital se concentra, e se rearranja em uma rígida hierarquia de subordinações intracapitalistas. A força de trabalho que ele contrata pode estar espalhada por incontáveis estabelecimentos, empresas, cidades e países, submetida a relações contratuais muito distintas, mas nem por isso deixa de formar, no fundo, uma classe única e crescentemente coesionada no conteúdo de sua condição de antípoda da burguesia. Nesta esfera, nem sempre evidente, mas em última instância, decisiva, a tendência à polarização crescente da sociedade burguesa, apontada no Manifesto Comunista, mantém integral atualidade.

Vistas as coisas assim – no seu conteúdo e na sua tendência – podemos distinguir, em meio às vicissitudes deste começo de século, uma espécie de proletariado expandido. Seus contornos ainda não estão inteiramente dados. A própria velocidade da expansão, assim como as vitórias da burguesia no apagar das luzes do século passado, contribuem para retardar o amadurecimento da sua identidade de classe. No entanto, se o ser social determina a consciência social, mais dia menos dia esta identidade mais há de emergir da prática social contemporânea. E neste particular decisivo – nunca é demais sublinhar – o protagonismo cabe à subjetividade, à ação consciente da classe, de seus líderes e pensadores, de suas organizações e partidos.

Bernardo Joffily é jornalista

EDIÇÃO 64, FEV/MAR/ABR, 2002, PÁGINAS 66, 67, 68, 69