A história de um partido político, já se disse, é o relato da história política de um país.(1) A história de um Partido Comunista vai além disso, e seu tema é a luta de classe, o desenvolvimento da classe operária e suas relações com as demais forças progressistas, e seu aprendizado com a experiência internacional do proletariado. Com o Partido Comunista do Brasil não foi diferente. Sua fundação, em 25 de março de 1922, resultou da conjunção desses fatores, que impôs a necessidade de organização de um partido revolucionário capaz de formular e defender um programa político classista voltado para a conquista do poder político e a formação de um novo Estado, um Estado socialista.

Foi essa necessidade histórica que moveu os pioneiros de 1922. Eram apenas nove dirigentes proletários: Astrojildo Pereira (jornalista), Cristiano Cordeiro (advogado), Joaquim Barbosa (alfaiate), Manuel Cendón (alfaiate), João da Costa Pimenta (gráfico), Luís Pérez (vassoureiro), Hemogêneo Fernandes da Silva (eletricista), Abílio de Nequete (barbeiro) e José Elias da Silva (pedreiro). Eles representavam 73 militantes de associações políticas de trabalhadores do Distrito Federal, e dos estados de Rio de Janeiro, São Paulo, Pernambuco, Minas Gerais e Rio Grande do Sul. Há notícias de que delegações de Santos (SP), Juiz de Fora (MG), Passo Fundo e Livramento (RS) não conseguiram ir a Niterói (RJ) para participar do Congresso onde nasceu esta experiência vitoriosa que, em 2002, completa 80 anos de atividade contínua. Aquele punhado de dirigentes operários fundou o primeiro partido político brasileiro que rompeu com os estreitos limites da política estadual, e teve âmbito nacional. Estava destinado também a ter a mais longa vida no Brasil. Não era apenas mais um partido político a nascer naquele Congresso tão exíguo, mas sim a organização revolucionária e de vanguarda do proletariado brasileiro – o Partido Comunista do Brasil, cuja trajetória foi marcada pela luta intransigente pelo socialismo, pela democracia e pelo progresso social. Três fatores O Partido Comunista não surgiu como um corpo estranho ou exótico à sociedade brasileira. Suas raízes são antigas, ligadas à longa história da luta de classes, e principalmente a seus desdobramentos a partir da segunda metade do século XIX, quando se acentuou a contradição entre o escravismo que fenecia, e o modo de produção capitalista que nascia. Com o capitalismo, surgia também a classe operária, que dava então seus primeiros passos organizativos e contestatórios. O aparecimento do Partido Comunista do Brasil responde, em primeiro lugar, ao desenvolvimento e amadurecimento relativo da classe operária. Embora tivesse ainda uma consciência de classe embrionária e rudimentar, o proletariado brasileiro participou dos principais movimentos da época, e lutou pelo fim da escravidão e pela República. O fim da escravidão e o início da República criaram condições para o fortalecimento do capitalismo industrial, moderno (e da burguesia industrial), embora sob o domínio da aliança entre a oligarquia latifundiária e mercantil e o capital estrangeiro, cuja presença se aprofundava no país. A classe operária cresceu nos grandes centros urbanos e, mesmo pequena, foi protagonista de confrontos notáveis contra o Estado oligárquico e contra a exploração capitalista.

Em 1906, realizou o Congresso Operário Brasileiro que, sob influência anarco-sindicalista, criou a Confederação Operária Brasileira (COB). A greve daquele ano confirmou a influência libertária e, reprimida à bala pela polícia, assistiu às primeiras assembléias de massa em movimentos grevistas.

O clímax da luta, naqueles anos, foi a grande greve de 1917, que marcou a estréia do operariado fabril na direção do proletariado e, pela primeira vez, teve um caráter claramente político; dirigida contra os patrões e também contra o Estado da oligarquia e da burguesia. Isso expôs o fracasso da orientação anarco-sindicalista frente às tarefas históricas que a nova etapa impunha: a organização política independente da classe operária; e o cumprimento de seu papel dirigente na luta revolucionária de todos os trabalhadores e forças progressistas da sociedade. O debate intenso entre a liderança proletária provocado por esse fracasso despertou a convicção da necessidade de superação daquele marco teórico (anarco-sindicalista) e organizativo, no momento em que o Partido Bolchevique e a Revolução Russa de 1917 indicavam, para muitos deles, o caminho a seguir. Esse foi outro fator decisivo – o aprendizado com a experiência internacional do proletariado. A Internacional Comunista foi criada em 1919 para inspirar em todo o mundo a organização de partidos comunistas. No Brasil, buscou contato com lideranças operárias de destaque e, em 1921, enviou um emissário – conhecido como “Cometa de Manchester” – que se encontrou com Astrojildo Pereira, a quem propôs a criação de um partido comunista no Brasil. Além disso, Abílio de Nequete, o delegado do Grupo Comunista de Porto Alegre, representou também, no Congresso de 1922, o Partido Comunista do Uruguai e a Internacional Comunista, da qual foi portador de uma saudação à fundação do Partido Comunista do Brasil: “a constituição do Partido Comunista, o concentrado da vanguarda, a agrupação, num único e disciplinado organismo revolucionário, das forças conscientes da casse trabalhadora” é “um dos atos mais transcendentes já realizados pelo proletariado em seu movimento de libertação”, dizia aquela mensagem. (2)

Além destes dois elementos que condicionaram sua fundação – o desenvolvimento da luta de classes e da classe operária, e a influência da Revolução Russa de 1917 – o Partido Comunista do Brasil atraiu também os setores democráticos e radicais da pequena burguesia. As ações que marcam sua luta por independência e autonomia perante os interesses oligárquicos dominantes cresceram desde meados do século XIX. A urbanização e o surgimento das primeiras empresas capitalistas fizeram crescer a pequena burguesia urbana formada por professores, advogados, médicos, engenheiros e funcionários; (3) depois da Guerra do Paraguai, jovens oficiais do Exército juntaram-se a ela. A vanguarda mais radical e avançada desses setores médios engajou-se e participou da direção da luta contra a escravidão e pela República, defendendo um programa democrático burguês, antioligárquico, nacionalista e industrialista. Esteio da propaganda republicana, seus dirigentes foram, porém, afastados pelos líderes moderados do levante militar de 15 de novembro de 1889, que depôs a monarquia e deu início à República. Republicanos radicais, como Silva Jardim, não conseguiram sequer participar da Assembléia Constituinte Republicana de 1891. Conhecidos nas primeiras décadas da República como “jacobinos”, estes setores radicais formaram a base da oposição antioligárquica da República Velha, cuja ação desembocou na década de 1920 na rebeldia militar conhecida como “tenentismo”. Bancada Comunista na Constituinte de 1946 Ilusões sectárias Durante toda a República Velha, a luta da pequena burguesia radicalizada, e sua vanguarda, a jovem oficialidade militar, polarizou o sentimento democrático brasileiro e a luta revolucionária contra a oligarquia latifundiária e mercantil e a dominação imperialista.

Em 5 de julho de 1922, essa luta tornou-se mais aguda, com o levante do Forte de Copacabana, que inaugurou a década revolucionária de 1920 exigindo eleições livres (e limpas) e voto secreto como panacéia universal para os males do país. (4) Isto é, defendiam o mesmo programa democrático burguês da oposição antioligárquica e antiimperialista desde o início da República. A luta tenentista acentuou-se com o levante militar de 1924 e, depois, com a Coluna Prestes (1925-1927) e a ação dos “tenentes”, vanguarda da pequena burguesia radical, teve forte impacto, polêmico, entre os dirigentes comunistas da época. Em seus II e III congressos (1925 e 1928-1929), o Partido Comunista do Brasil acatou e orientou-se pela tese de que o tenentismo era um movimento revolucionário de caráter democrático-pequeno-burguês, e pela convicção de que a terceira revolta que viria após os levantes de 1922 e 1924, teria um caráter proletário e seria dirigida pelo Partido. Essas teses levaram à decisão combatida por alguns dirigentes da busca da aliança com os “tenentes” exilados na Bolívia. E, entre eles, com o principal líder, o capitão Luís Carlos Prestes. O sectarismo e a espera da terceira revolta impediram que o Partido participasse do movimento de 1930, visto como mero acerto de contas entre facções oligárquico-burguesas e expressão da luta entre os imperialismos britânico e norte-americano. “O Partido não compreende então o processo político em curso, não descortina naqueles o movimento, ainda confuso, por transformações democrático-burguesas. Considera que o proletariado nada tem a ver com os fatos em desenvolvimento no país. Adota posições sectárias e se alheia da situação real.

Aplicando mecanicamente as teses da Internacional Comunista, defende a criação de um governo apoiado em sovietes de operários e camponeses. Desta forma, o Partido se afasta da realidade concreta”, não consegue ligar-se às grandes massas nem se tornar uma corrente política de projeção nacional, sendo somente um “pequeno grupo com atividade bastante reduzida”. (5) Depois da revolução liberal de 1930, o esforço de aproximação com o tenentismo se aprofundou, culminando com a filiação de Prestes ao Partido, para o qual ele trouxe seu enorme carisma e popularidade, mas também os métodos conspiratórios próprios da formação militar dos “tenentes”. Essa aproximação foi demorada – a filiação de Prestes só se confirmou em 1934, induzida pela direção da Internacional Comunista. Com ela, e com a incorporação dos setores mais avançados e radicalizados do tenentismo, o Partido Comunista do Brasil tornou-se finalmente herdeiro das duas linhas principais da luta pela democracia e pelo progresso social no Brasil – os lutadores do proletariado e da pequena burguesia. O Partido nascido em 1922 começava a superar o espírito de seita que marcou seus anos iniciais e o colocou à margem do leito principal da luta política no país, como ocorreu na revolução de 1930. Essa superação se revela na participação eleitoral e na maior inserção do Partido na luta de massas. Antes disso, houve alguma participação eleitoral, através do Bloco Operário (depois, Bloco Operário e Camponês), mas ela era limitada. E a luta de massas ficava restrita ao âmbito sindical, onde o Partido firmou-se nos anos 20 como a força de vanguarda do movimento operário. Embora mantendo ainda um ranço sectário e estreito, a participação comunista eleitoral efetiva ocorreu pela primeira vez em 1933, abrigado em outras legendas, pois o Tribunal Superior Eleitoral não aceitou o registro do Partido. Mesmo assim concorreram 642 candidatos comunistas ou seus aliados em todo o país, entre os quais 85 mulheres, e o Partido participou da eleição de Abel Chermont ao Senado e Abguar Bastos à Câmara Federal. O comunista Álvaro Ventura foi eleito para a Assembléia Constituinte como representante classista. (6)

A ação e a influência comunistas cresceram também na luta democrática de massas. Em 1934, o Partido liderou a resistência antifascista; promoveu a Conferência Nacional dos Estudantes Antifascistas e o I Congresso Nacional contra a Guerra, a Reação e o Fascismo, além de manifestações públicas no Rio de Janeiro e nas principais cidades brasileiras. O Partido aprofundou a construção de um caminho próprio para mobilizar as grandes massas e participar da luta política.

Organizou a Aliança Nacional Libertadora (ANL), em março de 1935, uma ampla aliança progressista e antifascista, com um programa democrático, antilatifundiário e antiimperialista. Em poucos meses, a ANL chegou a constituir 1.600 núcleos, com milhares de filiados. Posta na clandestinidade em julho daquele ano, a ANL continuou sua ação, sob direção comunista, e em novembro de 1935 dirigiu os levantes em Natal (RN), Recife (PE) e no Rio de Janeiro. Em menos de um ano, a ação aliancista indicou as virtudes e as ilusões da herança tenentista. A ação de massas, ampla e democrática, foi um enorme sucesso, galvanizando a opinião pública em torno de um programa democrático radical. Mas o militarismo conspiratório, que centrou sua ação nos quartéis e não na organização das massas para a insurreição, foi um desastre, embora heróico. Apesar da enorme simpatia popular, a organização da ANL era fraca nas cidades e nula no campo. “Embora seu programa fosse amplo, revelava sectarismo na atividade prática”. Após seu fechamento pela ditadura de Vargas, a ANL adotou uma tática política e insurrecional “impregnada de revolucionarismo pequeno-burguês, o que levou à precipitação da luta armada”. (7)

Havia profundas ilusões que chegaram mesmo a ser aceitas pela Internacional Comunista, que avaliava as situações nacionais, como a do Brasil, com base em informações esparsas e muitas vezes pouco realistas fornecidas pelos próprios partidos comunistas. Uma dessas ilusões era a do caráter insurrecional do cangaço do interior do Nordeste, apontado como prova da existência de guerrilhas rurais. Um exemplo da outra ilusão foi a atitude de Fernando de Lacerda e outro dirigente comunista durante a preparação de uma greve geral em 1932, em São Paulo: eles diziam que não era preciso fazer propaganda porque “a massa era revolucionária, e bastava lançar um grito que ela viria totalmente aos nossos braços”. (8)

A ditadura desmantela a direção nacional do Partido Comunista do Brasil Um dos eixos principais da intensa luta de classes daqueles anos era a disputa pelo controle da classe operária. O governo de Vargas tomou várias iniciativas para atrair os trabalhadores, iniciando a construção de sua imagem de “pai dos pobres”. Enquanto isso, a derrota do levante de 1935 colocou os comunistas na defensiva e provocou o início de uma profunda reavaliação da tática política do Partido, e uma luta interna acesa. Em 1937, a direção nacional do Partido iniciou contatos com candidatos à eleição presidencial marcada para 1938, em busca do compromisso com a anistia e com as liberdades democráticas. O intenso debate sobre o caráter da revolução brasileira opôs a direção nacional a um grupo de dirigentes comunistas de São Paulo contrários à política de aliança. Eles foram afastados e a direção nacional passou a apoiar a candidatura do escritor José Américo de Almeida. Quando aquele debate ocorreu, o Partido vivia um momento de descenso da luta de massas e sofria forte ataque repressivo. Em 1935, o governo de Vargas impôs a Lei de Segurança Nacional, para reprimir o movimento democrático. Em janeiro de 1936, foi criada a Comissão de Repressão ao Comunismo e, em setembro, o Tribunal de Segurança Nacional. Esta institucionalização da repressão era a contrapartida da perseguição policial implacável aos dirigentes e militantes comunistas e aos democratas e progressistas em geral. Prestes foi preso em março de 1936; o secretário geral do Partido, Antonio Maciel Bonfim, em junho daquele ano. A ditadura tornou-se aberta em 11 de novembro de 1937, que instituiu o Estado Novo, e o ataque final contra a direção nacional comunista ocorreu em abril de 1941, quando os últimos membros do Comitê Central foram presos em São Paulo. Nesse período conturbado, a existência de duas linhas dentro do Partido, uma proletária e outra pequeno-burguesa, não pôde se manifestar com clareza.

A tendência proletária se fortaleceu com o afastamento dos setores onde persistia o exclusivismo classista, contrário a alianças políticas mais amplas e que, fora e à margem do Partido, iriam fortalecer a corrente trotsquista que se formava no Brasil. Ao mesmo tempo, os principais líderes de origem “tenentista”, como Prestes e Agildo Barata, estavam presos, ou exilados. Mas era uma tendência proletária ainda débil ideologicamente, “obreirista”, e sensível ao revolucionarismo retórico e militarista da liderança tenentista. A reconstrução de 1943 A repressão policial não conseguiu liquidar o Partido, que sobrevivia em alguns núcleos estaduais, principalmente na Bahia. Em agosto de 1941, apoiados pela Internacional Comunista, dirigentes nordestinos tentaram rearticular a direção nacional e promoveram a Conferência do Nordeste do Partido Comunista do Brasil, defendendo a formação de uma frente única contra o fascismo.(9) Durou pouco, e em dezembro daquele ano a polícia prendeu todos os membros daquele secretariado. Esse esforço foi retomado em janeiro de 1943, no Rio de Janeiro, pela Comissão Nacional de Organização Provisória (CNOP) liderada, entre outros, por Amarílio Vasconcelos e Maurício Grabois, que convocou uma conferência para a reorganização do Partido. A CNOP era o grupo mais organizado de dirigentes comunistas e, por isso, sobrepôs-se aos demais, mesmo àquele organizado em torno de Fernando de Lacerda, e que pregava a dissolução do Partido. A CNOP articulou os principais núcleos comunistas que persistiam e conseguiu o apoio de Prestes (que estava preso). Assim, legitimou-se, perante os comunistas brasileiros e os demais partidos, no exterior, como a principal força capaz de reorganizar o Partido. A “Conferência da Mantiqueira”, em agosto de 1943, elegeu Prestes para a Secretaria Geral do Partido – cargo que, enquanto ele esteve preso, foi ocupado por José Medina e Álvaro Ventura. O programa então aprovado previa a união nacional em torno de Vargas contra o nazi-fascismo, a luta pela democracia, pela anistia, contra a carestia e pela legalidade do Partido. Naquela conferência, fortaleceu-se também o núcleo proletário, marxista-leninista que, com outros líderes que então emergiram, formariam o conjunto de dirigentes partidários das décadas seguintes. A conjuntura política acelerou-se desde então. O esforço antifascista, retomado pelo Partido em 1942, com grandes manifestações promovidas pela União Nacional dos Estudantes, cresceu, e os protestos populares exigindo a entrada do Brasil na guerra contra o eixo nazi-fascista multiplicaram-se pelo país. Apesar da repressão, a ação do Partido naqueles anos tornou-se cada vez mais aberta e pública.

Em 1944, por exemplo, os comunistas baianos lançaram o jornal legal O Momento, primeiro dos inúmeros diários que o Partido manteve em vários estados brasileiros. A luta pela democracia e pela libertação dos presos políticos culminou na lei de anistia de 18 de abril de 1945, que pôs em liberdade Prestes e os demais comunistas presos. Ao sair da prisão, Prestes assumiu seu lugar à frente do Partido e começou uma atividade política intensa na busca da superação democrática e nacionalista da ditadura do Estado Novo. Procurou também incorporar, à direção comunista, líderes que não haviam sido incluídos nela, por estarem presos ou no exílio, e cuja presença no Comitê Central do Partido foi ratificada pela III Conferência Nacional, de junho de 1946. Entre eles, veteranos da primeira direção comunista, como Astrojildo Pereira, Fernando de Lacerda e Octávio Brandão, e líderes tenentistas como Agliberto de Azevedo e David Capistrano. Muitos deles acompanhariam as posições de Prestes e engrossariam os setores da pequena burguesia radical alojados na direção partidária. Naquela época, duas influências ideológicas principais se manifestaram entre os quadros do Partido. A primeira delas, nefasta, foram as opiniões do dirigente do PC dos EUA, Earl Browder, que fundamentou o liquidacionismo de 1943 e, depois, a idéia de que, com a derrota do nazi-fascismo em 1945, o mundo havia entrado em uma fase de desenvolvimento pacífico, em que o imperialismo estava derrotado e a consolidação da democracia era inexorável. A outra influência ideológica pode ser considerada o embrião do nacional-reformismo que prevaleceu no Partido na segunda metade da década de 1950 – a defesa radical do desenvolvimento capitalista do Brasil como uma tarefa histórica que cabia à classe operária e à sua vanguarda. Ela se manifestou já em 23 de maio de 1944, num documento divulgado por Prestes, da cadeia onde estava preso: “Na situação atual do Brasil, podemos afirmar, como Lênin, que nada pode haver de mais reacionário do que pretender a salvação da classe operária em qualquer coisa que não seja o desenvolvimento ulterior do capitalismo”. Ele reproduziu também, concordando com ela, a defesa do desenvolvimento do mercado interno pelos diretores da S/A Reunidas F. Matarazzo: “A este problema estão ligados todos os outros e essencialmente aquele, estreitamente conexos com os interesses vitais de nossa sociedade [isto é, da S.A. IRFM] de um vigoroso e decidido passo em direção à produção em larga escala, como meio de barateamento dos custos”. (10) Prestes repetiu, aqui, o velho conteúdo democrático-burguês que os “tenentes” herdaram da luta contra a monarquia e que se acentuou depois da República. E que, nessa versão oportunista da década de 1940, subordinou a luta operária aos interesses dos industriais brasileiros, preconizando a colaboração de classes e colocando o proletariado sob direção da burguesia industrial. Mas a linha representada pela direção de Prestes, correspondia ao estágio de desenvolvimento da consciência de classe dos trabalhadores brasileiros, que era getulista. O populismo varguista conquistou-a ao promover profundas mudanças nas relações entre o capital e o trabalho, divulgadas amplamente pela propaganda do Estado Novo que difundiu-as como doação do ditador aos trabalhadores brasileiros.

Havia também pouca clareza sobre a articulação entre a luta antiimperialista, a busca de um desenvolvimento nacional autônomo e os interesses de classe do proletariado, dos camponeses e das amplas massas assalariadas, e da ligação íntima entre a defesa da soberania e independência nacionais e a luta pela superação do capitalismo. A consciência dessa articulação, que também envolve os demais setores progressistas e nacionalistas brasileiros, só poderia surgir décadas depois, quando o Partido adquiriu maior domínio da teoria marxista-leninista e maior conhecimento da realidade econômica, histórica e social de nosso país. Se prevalecia a orientação oportunista e direitista, contudo, a facção proletária da direção do Partido tomou iniciativas importantes para organizar os trabalhadores e impulsionar sua luta. Criou o Movimento de Unificação dos Trabalhadores (MUT), em abril de 1945, num encontro com a participação de 300 dirigentes sindicais de vários estados. As articulações então iniciadas levaram à convocação do Congresso Sindical dos Trabalhadores do Brasil, em 1946, onde foi criada a Confederação Geral dos Trabalhadores do Brasil (CGTB). As ilusões reformistas e o desarmamento do Partido Sob a influência do revisionismo e do nacional-reformismo prevaleceu no Partido a orientação de fundo oportunista que o desarmou frente à reação que se tornava cada vez mais violenta. (11) O anticomunismo crescia, principalmente depois dos êxitos eleitorais que transformaram o Partido na quarta força política mais importante do país. A atividade comunista atingiu então seu auge naquele período. O número de filiados, que alcançara um número entre mil e 1,5 mil no final da década de 1920, chegou a 180 mil no final de 1946. Na eleição de 1945, o Partido elegeu um senador, Luís Carlos Prestes, e 14 deputados, entre eles Maurício Grabois, João Amazonas e Pedro Pomar. Essa bancada teve papel destacado na Assembléia Constituinte de 1946, defendendo um programa democrático avançado, antiimperialista e antilatifundiário, impondo pela primeira vez, naquele ambiente dos representantes da burguesia, da oligarquia e do imperialismo, o debate de questões democráticas e nacionais, como a defesa da soberania do país, os direitos dos trabalhadores, a reforma agrária etc. (12) Nas eleições de 1946, o Partido obteve maioria de votos no Distrito Federal, São Paulo, Santos, Campinas e Sorocaba (SP), Recife e Olinda (PE), Natal (RN) e Aracaju (SE). Obteve também cerca de 10% dos votos, quase 600 mil, para seu candidato a presidente da República, Yeddo Fiuza. Repetiu esse êxito nas eleições de 1947 para governadores e deputados estaduais, quando foram comunistas 46 dos 855 deputados eleitos em todo o Brasil, além de 18 dos 50 vereadores na Câmara Municipal do Rio de Janeiro. Em novembro de 1947, teve desempenho semelhante, elegendo 17 vereadores em São Paulo, e alcançando a maioria nas Câmaras de Santos, Sorocaba e Santo André, em São Paulo, e Jaboatão, em Pernambuco. Mas o Partido não se preveniu contra o ultradireitismo que crescia na conjuntura política, reforçado pelo governo do marechal Eurico Gaspar Dutra e pelos remanescentes do fascismo estadonovista. A campanha anticomunista recrudesceu e levou, em 7 de maio de 1947, à cassação do registro legal do Partido e, em 10 de janeiro de 1948, à cassação dos mandatos de todos os seus parlamentares. O Partido foi pego indefeso e desarmado: a confiança na consolidação da democracia levou Prestes e – pelo peso de sua influência – a direção comunista, à convicção de que a reação não atacaria o Partido. Essa ilusão foi desfeita e, depois de um curto período de legalidade, de cerca de dois anos, os comunistas foram novamente jogados à clandestinidade. 10º Congresso (2001) No caminho da revolução Desde então, o Partido ficou sob rigorosa clandestinidade. Prestes deixou de participar das reuniões do Comitê Central, que eram gravadas para que ele tivesse conhecimento dos debates. Mas se reunia de dois em dois meses com a Comissão Política (ver, nesta edição, entrevista com João Amazonas).(13) A autocrítica da política do período legal foi feita, em 1948, no Manifesto de Janeiro, que caracterizou a orientação anterior como “sistemática contenção da luta das massas proletárias em nome da colaboração operário patronal”, descreveu o governo Dutra como “mero instrumento da reação e do imperialismo norte-americano”, e apontou a “influência de ideologia estranha ao proletariado, de tendências pequeno-burguesas tenentistas que se manifestam então no Partido, mesmo em sua direção”. (14) Essas posições foram reiteradas no Manifesto de Agosto, de 1950, que pregava a formação de uma Frente Democrática de Libertação Nacional e a formação de um governo democrático e popular, e ratificadas pelo IV Congresso do Partido, em 1954, o primeiro de sua história em que aprovou um programa onde definiu a revolução brasileira como “democrático-popular, de cunho antiimperialista, e agrária antifeudal”. (15)

Naqueles anos, o Partido afastou-se novamente do curso principal da luta política. Os setores proletários, que passaram a prevalecer na direção nacional, levaram o Partido a posições esquerdistas. Houve sectarismo, é certo – e o exemplo mais visível foi a recusa de participação nas eleições presidenciais de 1950, onde a orientação pró-imperialista, neoliberal diríamos hoje, de Dutra, foi derrotada com a eleição de Vargas, e no combate sistemático ao seu governo, que obtivera grande votação popular e representou, “em certo grau, setores progressistas da nação”. (16) Mas a crítica daquelas posições não pode impedir que se reconheça, nelas, a virtude de ter rompido com o reformismo que prevaleceu no período legal, e a busca de um caminho revolucionário, marxista-leninista. O que caracterizou a nova linha foi a luta pela democracia e pelas liberdades populares, entre elas a efetiva liberdade de organização sindical dos trabalhadores; defesa da soberania nacional, do desenvolvimento independente do país e da industrialização, e luta contra a dominação imperialista; defesa de melhores condições de vida para os trabalhadores; defesa dos direitos dos camponeses e da reforma agrária; necessidade de aproximação com as massas, principalmente os trabalhadores das grandes empresas industriais, e de sua organização independente. Além disso, a nova orientação enfatizou a necessidade do fortalecimento da organização partidária e do desenvolvimento teórico dos comunistas com a criação de cursos de formação; os famosos cursos Stálin e Lênin pelos quais passaram, e se formaram, as principais lideranças comunistas que estariam à frente do Partido nas décadas seguintes. Esses cursos foram promovidos pelo Comitê Central e por Comitês Estaduais, como ocorreu em São Paulo, Rio Grande do Sul, Distrito Federal, Minas Gerais, Rio de Janeiro, Pernambuco.

Esses grandes traços traduziram-se no forte crescimento da presença comunista na luta de classes naqueles anos, em múltiplas frentes. O Partido esteve à frente da luta pela paz e contra a ameaça atômica, organizando manifestações em todo o país desde 1950, e o Congresso dos Partidários da Paz, em 1951; na mobilização contra a participação do Brasil na guerra da Coréia (1951); na luta contra o Acordo Militar Brasil-Estados Unidos (1952); na direção da campanha “O Petróleo é Nosso”, que levou à criação da Petrobrás e à instituição do monopólio estatal da extração e refino do petróleo em 1953.

Promoveu a criação da Federação das Mulheres do Brasil, em 1949. Entre o proletariado, a orientação equivocada pela criação de sindicatos paralelos não impediu – aliás, impulsionou – a presença comunista no meio operário, fomentando a criação de comissões de empresas e, depois, dos primeiros ensaios, desde o MUT, em 1945/1947, da organização intersindical dos trabalhadores, como o Pacto de Ação Comum de 1953. Esse pacto teve origem na grande greve daquele ano – a greve dos “300 mil”, de 1953, em São Paulo, dirigida pelo Partido, que envolveu várias categorias (têxteis, metalúrgicos, marceneiros, pedreiros, gráficos etc) numa paralisação que durou quase todo o mês de março de 1953 e terminou vitoriosa. (17) Paralelamente, os comunistas impulsionaram a luta contra a carestia realizando em São Paulo a grande “Manifestação da Panela Vazia”, que levou mais de 100 mil trabalhadores às ruas em março de 1953. Entre os camponeses, a atuação comunista traduziu-se na organização e no apoio às lutas de Trombas e Formoso, Goiás (de 1946 a 1964), Porecatu, Paraná (1950), ou no Sudoeste do Paraná (1957). Em 1954, o Partido convocou a II Conferência Nacional dos Lavradores e Trabalhadores Agrícolas, ocorrida em São Paulo, onde foi criada a União dos Lavradores e Trabalhadores Agrícolas do Brasil (ULTAB). Proletariado em mudança Esse crescimento da luta de classes correspondeu às mudanças profundas ocorridas no proletariado brasileiro desde o final da II Guerra Mundial. Em 1950, o proletariado fabril era formado por mais de 1,27 milhão de trabalhadores.

Parte significativa deles (376 mil) trabalhava em estabelecimentos grandes, com mais de 500 empregados; 600 mil trabalhavam em estabelecimentos pequenos, com menos de 50 trabalhadores.

Sua luta crescia naqueles anos. Em 1947, as greves envolveram 150 mil trabalhadores; esse número cresceu lentamente até 1952, quando chegou a 410 mil e disparou: entre 800 mil e 1 milhão em 1953 e entre 1,2 milhão a 1,6 milhão em 1957. (18) A população urbana do país crescia mais rapidamente que a população rural que, em 1950, ainda era predominante, com cerca de dois terços do total (63,9%), mas começava a diminuir e, em 1960, era apenas 55%. Neste mesmo ano, o proletariado urbano (a soma dos operários fabris com os demais trabalhadores assalariados populares, como mineiros, trabalhadores da construção civil, dos transportes, empregados domésticos, etc.) era formado por 8 milhões de trabalhadores; as camadas médias urbanas, da qual faziam parte muitos pequenos assalariados do setor de serviços e do comércio, era formada por 4,5 milhões de trabalhadores. No campo, existiam 5 milhões de proletários rurais e 7 milhões de pequenos camponeses ou assalariados agrícolas. (19) Estes números indicam uma mudança significativa: nessa época, o conjunto dos trabalhadores assalariados urbanos, proletários ou não, já ultrapassava a soma dos trabalhadores rurais no país. Luta interna A ação do Partido, naqueles anos, correspondeu ao aprofundamento da luta de classes, ao desenvolvimento da identidade e consciência de classe do proletariado. Ela foi o fundamento da eclosão das “influências ideológicas estranhas ao proletariado” dentro da própria direção partidária na década de 1950. A repercussão do XX Congresso do Partido Comunista da URSS (PCUS) realizado em 1956, e do relatório de Kruschev contra Stálin foi intensa, e a confusão ideológica que teve início criou as condições para o conflito entre as linhas presentes no Partido desde a incorporação de setores radicais pequeno-burgueses, representados pelos “tenentistas”. Tornando seu antagonismo cada vez mais claro. Formaram-se três grupos – os abridistas ou renovadores, que reunia reformistas e revisionistas de todos os matizes partidários de uma reestruturação profunda da organização partidária, abandonando o programa revolucionário de classe e tornando o Partido semelhante aos da burguesia. Outro grupo, que alguns apelidaram de pântano e outros chamam de centro pragmático, defendia uma adaptação reformista ao revisionismo do XX Congresso do PCUS. Finalmente, alvo da crítica generalizada, estava o chamado núcleo dirigente, que tinha sob sua responsabilidade a manutenção da integridade organizativa e a defesa do pensamento marxista-leninista. O primeiro grupo era liderado por Agildo Barata, e incluía alguns membros do Comitê Central, intelectuais e jornalistas, como Aydano do Couto Ferraz, João Batista de Lima e Silva, editores da Voz Operária (o jornal do Partido), o escritor Osvaldo Peralva, e outros. Faziam parte do pântano, ou grupo baiano, Mário Alves, Giocondo Dias, Jacob Gorender, entre outros.

Finalmente, o núcleo dirigente era formado basicamente pela corrente proletária que, desde 1947, prevalecia na direção do Partido: Diógenes de Arruda Câmara, Maurício Grabois, João Amazonas, Pedro Pomar. No desenvolvimento da luta interna, dirigentes como Luís Carlos Prestes, Carlos Marighela e Apolônio de Carvalho aproximaram-se do pântano, ao qual se incorporaram. O debate das conseqüências do XX Congresso do PCUS, intenso na imprensa partidária, ameaçou fugir ao controle do Comitê Central e a crítica ao dogmatismo, aos métodos autoritários de direção e ao culto à personalidade logo se voltou também contra a própria organização e estrutura partidária e, a pretexto da defesa da democracia interna, voltou-se contra o centralismo democrático, o próprio Partido (que alguns passaram a ver como obsoleto e anacrônico), a URSS e a cooperação internacional entre os partidos comunistas. No primeiro momento, o núcleo dirigente e o pântano juntaram-se para manter o debate dentro de princípios ideológicos e teóricos, que servissem de baliza para o choque de opiniões sem comprometer a integridade do Partido. Prestes, em uma carta ao Comitê Central, lembrou que o Partido “não é um clube de debates”, que ele é regido pelo marxismo-leninismo, e que entre os comunistas não pode haver ataques à teoria do proletariado, veiculados na imprensa partidária; que eram inadmissíveis os ataques à URSS; que o “Partido deve constituir um bloco monolítico em que todos os seus membros estejam ligados por uma única vontade, pela unidade de ação e por uma disciplina férrea”, não sendo permitido em suas fileiras “o niilismo em matéria de organização e o anarquismo senhorial do intelectual burguês”. (20)

A coalizão entre o núcleo dirigente e o pântano durou apenas o tempo necessário para derrotar as posições reformistas e liquidacionistas dos abridistas, que foram expulsos do Partido. A partir daí, o pântano voltou-se contra o núcleo dirigente e apossou-se da direção do Partido em dois movimentos. Primeiro: após o afastamento de Agildo Barata e dos abridistas, Prestes aproximou-se daqueles que defendiam a flexão revisionista na política partidária, sob a influência do XX Congresso do PCUS.

Estava em minoria, contudo: na Comissão Executiva, só Carlos Marighella o apoiava, enquanto João Amazonas, Maurício Grabois e Diógenes de Arruda Câmara não aceitavam a orientação revisionista. Foi para impô-la que Prestes ligou-se ao pântano, que havia incorporado as teses reformistas, nacionalistas e moderadas do grupo de Agildo Barata, conservando, contudo, a aparência dos princípios marxistas-leninistas. Destituíram Arruda, João Amazonas, Grabois, Pomar e os demais marxistas-leninistas da Comissão Executiva do Partido em agosto de 1957, substituídos por Giocondo Dias, Ramiro Luchesi, Mario Alves e Calil Chade. Em seguida, Prestes tratou de oficializar a alteração na linha política do Partido. Constituiu uma comissão de redação formada por Giocondo Dias, Jacob Gorender, Mario Alves, Armênio Guedes e Alberto Passos Guimarães que, sem o conhecimento do Comitê Central ou da Comissão Executiva, redigiu o documento fixando a nova política. (22) Esta é a origem da declaração aprovada pelo Comitê Central em março de 1958 (com o voto contrário de João Amazonas), defendendo o caminho pacífico para o socialismo e a formação de uma frente única nacionalista e democrática. (21) A campanha caluniosa contra o núcleo proletário e marxista-leninista, no Brasil e no exterior, demonizou aqueles dirigentes, apontados como responsáveis pelo mandonismo na direção, pelo dogmatismo na teoria, pela ignorância da realidade histórica e social do país e pelo transplante mecânico de experiências revolucionárias estrangeiras, como a Revolução Russa de 1917. O exame da história, contudo, mostra que, em medida variável, estas práticas foram comuns ao conjunto da direção comunista naqueles anos, em todos os partidos comunistas, sendo típicas do período que se convencionou chamar de stalinista.

O mandonismo e o dogmatismo marcaram a direção comunista no Brasil naquela época; no caso de Luís Carlos Prestes, o principal dirigente, eram agravados pelo personalismo, pela auto-suficiência teórica e política e pelo alinhamento automático e acrítico com a direção soviética, qualquer que fosse ela. Após 1957, mudaram os homens na direção central do Partido, mas o mandonismo e o dogmatismo persistiram, agravados agora por estarem a serviço do revisionismo e do nacional-reformismo. As mudanças revisionistas da Declaração de Março de 1958 (22) simbolizaram uma grave inflexão na vida do Partido. Ela ratificou a tomada de assalto da direção pela corrente revisionista, sendo considerada pelo “Partido Comunista Brasileiro” como uma espécie de certidão de nascimento da “renovação” que promoveram. Reorganização As teses dessa declaração foram ratificadas pelo V Congresso, em 1960, onde o conflito entre as duas linhas assumiu contornos inconciliáveis (veja a entrevista de João Amazonas, nesta edição). Prestes e seus partidários tentaram aprovar, naquele congresso, as medidas para completar a mudança revisionista iniciada em 1957. Mas não tiveram ambiente favorável para isso no V Congresso, onde Prestes tentou responsabilizar, sem êxito, João Amazonas e outros dirigentes por erros cometidos no passado. “A maioria dos delegados e as demais pessoas presentes optaram pelas posições políticas defendidas pelo primeiro, mas sem endossar suas acusações contra João Amazonas. Julgaram inaceitável a tentativa de Prestes de procurar tirar de suas costas a maior responsabilidade pelos erros do Partido nos anos precedentes”. (23)

A pretensão do agrupamento revisionista de aprovar profundas mudanças no Estatuto, um novo programa e um novo nome para o Partido foi derrotada e os delegados só autorizaram o Comitê Central a fazer as alterações exigidas pela lei para o registro do Partido na Justiça Eleitoral, como a destinação do patrimônio do Partido em caso de dissolução, a designação de delegados junto a tribunais e juízes eleitorais, a afirmação de que os filiados do Partido não respondem pelas obrigações financeiras deste, etc. Em flagrante violação da legalidade partidária e de decisões do V Congresso, entretanto, em setembro de 1961 o grupo que atuava em torno de Prestes publicou novos programas e estatuto de um denominado Partido Comunista Brasileiro. Alegava que isso era necessário para seu registro eleitoral para descaracterizar sua filiação internacional. Além disso, amenizou as referências do programa à reforma agrária; trocou o objetivo final da luta partidária, que deixou de ser “o estabelecimento do socialismo e do comunismo”, para ser transformado na busca de um vago “socialismo”; nos Estatutos, abandonou qualquer referência ao marxismo-leninismo e ao internacionalismo proletário.

Imediatamente, um conjunto de dirigentes revolucionários, inconformados com a falsificação legalista e oportunista promovida pelo grupo de Prestes, articulou-se e redigiu um documento de protesto, dirigido à direção do Partido, onde reivindicava a convocação de um Congresso Extraordinário, única instância legal e legítima para a discussão e aprovação, ou rejeição, de mudanças daquele porte. Esse documento, intitulado Em defesa do Partido, e conhecido como Carta dos Cem, pelo número de dirigentes que a assinou, foi articulado por lideranças comunistas históricas como Maurício Grabois, João Amazonas, Pedro Pomar e outros. (24) A resposta da direção revisionista à Carta foi a tentativa de caracterizar como divisionista a ação em defesa do Partido e aprofundar a campanha de mentiras contra aqueles dirigentes. A convivência das duas correntes dentro de uma única organização partidária chegava, assim, ao fim. Baseados no prestígio que Prestes ainda mantinha, o agrupamento revisionista criou outro partido e procurou capitalizar para ele o patrimônio histórico e político acumulado em quatro décadas de lutas. A corrente proletária, marxista-leninista, contrária à liquidação do Partido, não vacilou e, enfrentando o peso da influência de Prestes e o prestígio internacional da URSS, convocou uma conferência extraordinária, realizada em São Paulo, em 18 de fevereiro de 1962, onde foi tomada a decisão de reorganizar e reconstruir o Partido Comunista do Brasil. Os principais organizadores dessa conferência foram João Amazonas, Maurício Grabois, Pedro Pomar, Carlos Danielli, Ângelo Arroyo, Lincoln Oest, Elza Monnerat, entre outros. Iniciava-se ali uma nova fase na vida do Partido. “O rompimento com os oportunistas seguidores de Kruschev – o primeiro verificado no mundo capitalista depois do surgimento do revisionismo contemporâneo – constitui um acontecimento de importância histórica para o movimento comunista brasileiro. As tentativas de privar o proletariado de seu Partido fracassaram. O marxismo-leninismo lançara raízes na classe operária e já podia enfrentar o oportunismo em sua expressão mais elevada, o liquidacionismo revisionista. A reorganização do Partido não representa uma simples continuidade da velha organização fundada em 1922. Incorpora a tradição de luta dos comunistas e elimina erros e deficiências do passado. Significa um salto qualitativo. Precedida de profunda luta ideológica, a reorganização dá-se numa base revolucionária, marxista-leninista, que imprime ao Partido uma fisionomia de autêntica vanguarda política do proletariado”. (25)

A avaliação feita no parágrafo anterior foi escrita por Maurício Grabois e João Amazonas no 50º aniversário do Partido, e 10º de sua reorganização, em 1972. A história dos quarenta anos seguintes confirma sua correção e é tema para outro artigo. A história recente também não é linear. Livre das oscilações entre o “esquerdismo” e o “direitismo”, buscando um caminho proletário e revolucionário conseqüente, nestas quatro últimas décadas o Partido adquiriu um maior domínio sobre o pensamento marxista-leninista e um conhecimento mais profundo da realidade histórica, social e política de nosso país. São ganhos inegáveis que se traduzem no papel que, hoje, o Partido desempenha na luta política e social, à frente do proletariado e dos setores progressistas brasileiros. Foi um caminho cheio de tropeços. O esforço pela constituição de uma direção comunista capaz de coordenar, em todo o país, a luta democrática e revolucionária sofreu golpes profundos sob a ditadura militar de 1964. Muitos quadros e dirigentes foram presos, torturados e assassinados; a repressão à Guerrilha do Araguaia (que, em 2002, completa 30 anos) foi marcada pela brutalidade e pelo sangue dos militantes mortos. O ataque à casa na Lapa, em São Paulo, em 1976, faz parte do quadro da repressão ao Araguaia, e abriu novos claros na direção nacional do Partido, pelo assassinato e prisão de membros do Comitê Central.

O Partido enfrentou todas essas vicissitudes em sua história; sobreviveu a elas. Depois da anistia de 1979, passou a viver um período de semilegalidade e, em 1985, iniciou o período mais longo de legalidade que jamais viveu; atuou, desde então, na vanguarda dos principais movimentos cívicos e sociais do país. Foi a mola propulsora da Campanha das Diretas, em 1984; teve atuação decisiva em defesa da votação em um candidato da oposição à presidência da República no Colégio Eleitoral, em 1985. Esteve à frente da luta sindical, do movimento estudantil, e organizou a luta das mulheres e dos negros. Foi uma força fundamental para impulsionar a Frente Brasil Popular, que disputou a eleição presidencial em 1989; desde então, destaca-se na luta contra o neoliberalismo, consolidado pelos mandatos sucessivos de Fernando Henrique Cardoso. Para enfrentar a ameaça à nação, à democracia, aos trabalhadores e ao povo brasileiro que ele representa, o PCdoB tem sido, nestes últimos anos, o campeão da luta pela unidade mais ampla de todas as forças progressistas, avançadas e nacionalistas como única forma de colocar o país em novo rumo de desenvolvimento.

Enfrentou no final da década de 1980, o vagalhão representado pela crise dos países do Leste Europeu e da URSS, reafirmando a teoria marxista-leninista e o compromisso com a revolução proletária, e também os desafios teóricos e organizativos decorrentes da nova fase de luta anticapitalista. O 8º Congresso, de 1992, confirmou este rumo e apontou a necessidade de desenvolvimento da teoria e do estudo da realidade histórica e social do nosso país, permitindo que o Partido, nos anos seguintes, se fortalecesse e consolidasse como força dirigente das lutas democráticas e progressistas. Hoje, o Partido é maior e mais influente do que nunca em sua história, presente em mais de mil municípios brasileiros, no movimento social, no Parlamento e no executivo de Estados e Municípios. Ele chega aos 80 anos politicamente maduro, à altura das enormes tarefas históricas que lhe cabem, tendo finalmente constituído um conjunto diversificado e multifacético de dirigentes comunistas e revolucionários que lhe permitem estar à frente das múltiplas tarefas impostas pelo desenvolvimento da luta de classes em nosso país e pelo avanço da consciência de classe do proletariado do qual ele é a vanguarda organizada. Sua história é prenhe de ensinamentos para o proletariado brasileiro, e é parte integrante da experiência internacional da classe operária. Deve ser registrada, com o rigor da ciência, para que possa ser compartilhada com aqueles que, em nosso país ou em outros rincões, fazem parte do imenso exército daqueles que lutam pelo futuro.

José Carlos Ruy é jornalista, membro da direção nacional do Partido Comunista do Brasil e coordenador da comissão específica de redação da história do Partido.

Notas

1) Antonio Gramsci, Maquiavel, a política e o Estado Moderno, RJ, Civilização Brasileira, 1980, p. 25. 2) Citado por Paulo Sérgio Pinheiro, Estratégias da ilusão – a revolução mundial e o Brasil, 1922-1935, SP, Cia das Letras, 1992. 3) “Graças à multiplicação de empresas e profissões liberais, formou-se uma camada menos comprometida com a escravidão e que irá servir de suporte à ação abolicionista”. Emília Viotti da Costa, Da senzala à colônia, SP, Brasiliense, 1989, p. 441. 4) Santa Rosa, Virgínio, Que foi o tenentismo? (2ª edição do livro O sentido do tenentismo), prefácio de Nelson Werneck Sodré, RJ, Civilização Brasileira, 1963. 5) Partido Comunista do Brasil, Cinqüenta anos de luta, Lisboa, Maria da Fonte, 1975, p. 38. 6) Vinhas, Moisés, O Partidão – a luta por um partido de massas, 1922/1974, SP, Hucitec, 1982, p. 68; Celso Martins, Os comunas – Álvaro Ventura e o PCB catarinense, Florianópolis, Paralelo 27 / Fundação Franklin Cascaes, 1995. 7) A avaliação baseia-se no documento Cinqüenta anos de luta, citado, p. 41. 8) Citado por Leôncio Basbaum, Uma vida em seis tempos (memórias), SP, Alfa-Omega, 1978, p. 120. 9) João Falcão, O Partido Comunista que eu conheci (20 anos de clandestinidade), RJ, Civilização Brasileira, 1988, p. 132. 10) Moraes, Dênis de, e Viana, Francisco, Prestes: lutas e autocríticas, Petrópolis, Vozes, 1982, p. 96/97. 11) Cinqüenta anos de luta, citado, p. 47/48. 12) Osny Duarte Pereira, O que é a Constituição? (Crítica à Carta de 1946 com vistas a Reformas de Base), RJ, Civilização Brasileira, 1964. 13) Jacob Gorender diz que a versão de Prestes para a clandestinidade pesada a que se submeteu (de que ela fora um “penosíssimo cárcere privado imposto pelos colegas do secretariado”) é “invencionismo”, e que ele isolou-se “porque quis, dominado pela crença no seu papel messiânico nas lutas revolucionárias iminentes”. Jacob Gorender, Combate nas trevas – a esquerda brasileira: das ilusões perdidas à luta armada, SP, Ática, 1987, p. 27 14) Partido Communista do Brasil, Manifesto de Janeiro, in Edgar Carone, O PCB (1943-1954), vol. II, São Paulo, Difel, 1982, p.72 15) Citado por Edgard Carone, O PCB (1943-1964), p. 126. 16) Cinqüenta anos de luta, citado, p. 49. 17) José Álvaro Moisés, Greve de massa e crise política (estudo da freve dos 300 mil em São Paulo – 1953/1954), SP, Polis, 1978. 18) Boris Koval, História do proletariado brasileiro, 1857/1967, SP, Alfa-Omega, 1982, p. 386. 19) Boris Koval, História do proletariado brasileiro, p. 405. 20) José Antonio Segatto, Reforma e revolução: as vicissitudes do PCB (1954/1964), RJ, Civilização Brasileira, 1995, p. 51 e 63. 21) Marco Antonio Tavares Coelho, Herança de um sonho – as memórias de um comunista, RJ, Record, 2000, p. 171. História semelhante é contada por Jacob Gorender: “Mário [Alves] e eu estávamos convencidos que já era inadmissível prosseguir com o Programa do Quarto Congresso. Ao invés de remendos e adaptações episódicos, fazia-se urgentes a elaboração de uma linha política nova nos aspectos essenciais. A questão estava em que era impensável tal mudança com Arruda, Amazonas e Grabois na Cominssão Executiva”. Jacob Gorender, Combate nas trevas, p.26 e 29. 22) A íntegra da “Declaração de Março de 1958”, e sua crítica feita por Maurício Grabois, estão no livro Em defesa dos trabalhadores e do povo brasileiro: documentos do PC do Brasil, de 1960 a 2000, SP, A. Garibaldi, 2000. 23) Marco Antonio Tavares Coelho, Herança de um sonho, p.212 24) A íntegra da “Carta dos 100” está no livro Em defesa dos trabalhadores e do povo brasileiro: documentos do PC do Brasil, p. 23. As informações deste parágrafo foram retiradas dela. 25) Cinqüenta anos de luta, citado, p. 55.

EDIÇÃO 64, FEV/MAR/ABR, 2002, PÁGINAS 22, 23, 24, 25, 26, 27, 28, 29, 30, 31, 32