Psicologia Social e Marxismo
O evento foi organizado pelo núcleo da Associação Brasileira de Psicologia Social e teve como objetivos analisar a atualidade da teoria marxiana na sociedade contemporânea; refletir sobre o método materialista histórico dialético e a correspondente metodologia de pesquisa em Psicologia; criar espaço para o debate sobre a Psicologia Social Comunitária no mundo contemporâneo; discutir as possibilidades de atuação do psicólogo envolvido com a comunidade; e possibilitar o relato de experiências dos profissionais de Psicologia que utilizam o método materialista histórico dialético. O próximo encontro acontecerá em agosto de 2002 e terá como tema central a transformação – transformar o que, para quem e como. Ele reunirá membros de movimentos sociais e teóricos de diversas áreas de conhecimento.
No início da década de 70, a Psicologia Social na América Latina passa pelo que chamamos de “crise de relevância”, tanto em relação a seus aspectos teóricos como metodológicos. As ditaduras militares e conseqüentes opressões e injustiças sociais em que vivia o povo latino-americano serviam de base para o questionamento do papel da pesquisa em Psicologia Social.
Silvia Lane (1995) comenta: "Ela (psicologia social), que se apresentava na década de 50 como o ramo da Psicologia que contribuiria para resolver os grandes problemas da humanidade, parecia a nós, neste período, que apenas subsidiava a opressão, a manipulação política, a manutenção do status quo" (p. 68).
Nesse momento, questionava-se como a Psicologia Social poderia dar subsídios à transformação social; e buscava-se novas metodologias de pesquisa que compreendessem o indivíduo em sua totalidade, situado historicamente e, dessa forma, multideterminado.
Essa preocupação estava presente em diversos países da América Latina e, na década de 80, a Psicologia Social se colocava o desafio da indissociabilidade entre teoria e prática, ou seja, deveria avançar na sistematização teórica e, “conseqüentemente, produzir efeitos práticos ou então se desenvolver numa prática que redundaria numa sistematização teórica”. (Lane, 1995, p.71)
A questão da prática e do compromisso político, voltados a uma atuação transformadora, permeava as experiências em Psicologia Comunitária. Mas uma sistematização teórica ainda estava por se fazer.
No final da década de 70 e início da década de 80, os psicólogos sociais latino-americanos depararam-se com as obras de Lev Vigotski e seus continuadores Alexis Leontiev, Alexander Luria e todo um grupo de psicólogos soviéticos que haviam sofrido a repressão stalinista.
Esses autores que viveram na ex-URSS do começo do século XX, partem da teoria marxista para a construção de uma nova psicologia. As mudanças econômicas e políticas provocadas pela revolução russa de 1917 influenciaram em muito a obra desse grupo em que Vigotski destacava-se como líder intelectual. Sua formação ampla (filosofia, história, literatura, estética, semiologia, direito, lingüística, medicina, pedagogia e psicologia) e seu profundo conhecimento sobre a história da Psicologia, não só da antiga Rússia, mas também do mundo, permitiram-lhe a compreensão e a síntese do panorama da ciência psicológica no final do século XIX.
Vigotski identificou e buscou compreender o que chamou de crise da Psicologia. O autor, ao vislumbrar as diversas tentativas reducionistas de explicação do fenômeno psicológico e a incapacidade destas de formular uma Psicologia Geral, defendeu a tese “de que a crise da Psicologia caracterizava-se, fundamentalmente, por uma crise metodológica que só poderia ser superada por meio de uma metodologia científica com embasamento na história” (Molon, 1999, p. 45). Para ele, tanto as concepções idealistas como as mecanicistas não davam conta de explicar o fenômeno psicológico em sua totalidade.
Luria (1988) faz uma referência a esse período de grande efervescência cultural e intelectual: “Nosso propósito, superambicioso como tudo na época, era criar um novo modo, mais abrangente, de estudar os processos psicológicos humanos” (p. 22).
Vigotski buscou resolver os problemas epistemológicos e metodológicos propondo uma Psicologia de base marxista. “Para Vigotski, a apropriação legítima do marxismo pela Psicologia não se dava de forma direta, mas mediada. Por meio do conhecimento do método de Marx, Vigotski construiu uma ciência psicológica, entretanto jamais buscou a Psicologia no marxismo ou na aderência de marxismo e Psicologia” (Molon, 1999, p. 49).
Deve-se ter claro que o sistema categorial e o caráter do conhecimento na filosofia e na ciência são diferentes. Assim, não é viável e nem suficiente sobrepor os postulados filosóficos aos dados científicos (Shuare, 1990); e, portanto, não sendo possível simplesmente apropriar-se dos conceitos marxistas e usá-los diretamente na ciência psicológica.
Dessa forma, Shuare (1990) analisa as principais contribuições da filosofia materialista dialética à psicologia sócio-histórica (também conhecida como psicologia soviética, psicologia histórico-cultural ou psicologia histórico-crítica) e nos aponta alguns elementos:
o a concepção materialista da dialética: em vista da complexidade dos fenômenos estudados pela Psicologia, o método materialista dialético tem uma aplicação fundamental no entendimento dos fenômenos humanos. A investigação psicológica deve recorrer a princípios da dialética, tais como vinculação e interdependência dos fenômenos, origem multideterminada e constante luta de contrários;
o a teoria do reflexo, que não pode ser confundida com a teoria dos reflexos condicionados de Pavlov, é o pressuposto básico da teoria do conhecimento e postula dois princípios fundamentais: a subjetivação do objetivo e a objetivação do subjetivo.
É a partir da interação ativa com o mundo que os homens constroem sua subjetividade;
o a categoria da atividade: a atividade prática sensível, a práxis como atividade produtora intencional é o que fundamentalmente nos distingue dos animais e pode-se caracterizar enquanto determinante da essência humana, já que possibilita o desenvolvimento da cultura;
o a natureza social do homem, “cujo reconhecimento implica tomar o homem como produto e produtor das relações sociais historicamente construídas pela humanidade (…).” (Tanamachi, 1997, p. 75).
Neste sentido, o materialismo histórico dialético e os pressupostos explicitados, aqui, serviram de guia epistemológico para a psicologia de Vigotski; e, na década de 80, essa psicologia aponta alguns caminhos à psicologia social, que se apropria do método materialista histórico dialético, pois este vai ao encontro de duas grandes questões que os psicólogos colocavam à sua ciência: a necessidade de indissociabilidade entre teoria e prática e o compromisso político que deveria permear as atuações profissionais.
Como a psicologia proposta por Vigotski não é uma mera sobreposição da teoria marxista à psicologia, e sim a construção de uma nova psicologia, faremos uma breve conceituação da psicologia sócio-histórica.
A Psicologia proposta por Vigotski
A partir da concepção marxista de Homem e de mundo, Vigotski, e seus companheiros Luria e Leontiev, buscam redefinir o método de compreensão do fenômeno humano a ser pesquisado pela psicologia.
“A tarefa diante da qual colocavam-se estes estudiosos soviéticos era a criação de um novo sistema, que fizesse a síntese dos trabalhos anteriormente citados e os superasse (…)” (Tanamachi, 1997, p.
92).
Essas preocupações os levaram a pesquisar as formas superiores de comportamento, tais como linguagem, memória, atenção, pensamento, e a entendê-las a partir das relações sociais que o indivíduo estabelece com o mundo. “Segundo sua proposta, o objetivo da Psicologia é, portanto, a investigação da origem e do curso do desenvolvimento do comportamento e da consciência” (Tanamachi, 1997, p. 92).
Vigotski buscou compreender os fenômenos psicológicos enquanto “mediações entre a história social e a vida concreta dos indivíduos” (Meira, 2000, p. 50). Essas mediações ocorrem através da atividade prática humana, pois ao produzir suas formas de subsistência, indiretamente o Homem se autoproduz.
Os produtos da atividade humana são sempre coletivos na medida em que só adquirem um significado a partir da vivência social, que é mediada pela linguagem. Por isso não é possível falar de natureza humana como algo a priori, universal e abstrato. É na realidade concreta que nossas subjetividades são constituídas e, portanto, o que existe, em oposição à idéia de essência humana é a condição humana.
A transmissão e assimilação da cultura são pontos essenciais da psicologia sócio-histórica. Os produtos da atividade humana transformam-se em patrimônio da humanidade na forma de cultura. “Assim, a aprendizagem é alçada à posição de extrema importância, já que é o processo de apropriação da experiência acumulada pelo gênero humano no decurso da história social que permite a cada homem a aquisição das qualidades, capacidades e características humanas formadas historicamente e a criação contínua de novas aptidões e funções psíquicas” (Meira, 2000, p. 51).
Ao introduzir a questão da atividade prática na constituição da subjetividade humana, a Psicologia sócio-histórica pôde compreender o homem enquanto ser ativo, social e histórico. Entendendo o Homem em sua totalidade sócio-histórica e o papel da atividade humana na constituição de subjetividade, a Psicologia crítica enfatiza as possibilidades de transformação por meio da ação dos indivíduos.
A preocupação em construir uma nova abordagem científica levou os psicólogos soviéticos a criarem novos métodos de investigação e análise. Para Vigotski, “o desenvolvimento psicológico dos homens é parte do desenvolvimento histórico geral de nossa espécie e assim deve ser entendido. A aceitação dessa proposição significa termos que encontrar uma nova metodologia para a experimentação psicológica” (1988b, p. 69).
A partir das leis da dialética, Vigotski (1988b) propõe alguns princípios necessários à investigação das funções psicológicas superiores:
o Analisar processos e não objetos: os processos psicológicos, em virtude de sua complexidade, sofrem constantes mudanças. Cabe ao pesquisador investigar e compreender como determinado fenômeno desenvolveu-se na história do indivíduo.
o Explicação versus descrição: ao invés de descrever um fenômeno, como as ciências positivistas o fazem, a psicologia histórico-cultural procura compreendê-lo em sua essência, em sua totalidade.
O problema do “comportamento fossilizado”: são os comportamentos automatizados ou mecanizados, que no decorrer da vida perderam sua origem e sua aparência externa, nada nos dizem sobre sua natureza interna. Para que possamos compreender esses comportamentos é necessário pesquisar como eles foram construídos, ou seja, fazer um levantamento da história do comportamento. Para tanto, deve-se estudar os processos em mudança.
A partir desses princípios, Vigotski e seus companheiros estudaram:
o A relação pensamento/linguagem e o problema da comunicação. A linguagem enquanto função psíquica superior é primeiramente social, resultado da relação entre as pessoas (criança e os outros), para depois ser interiorizada, como resultado da ação do próprio indivíduo, transformando-se em um instrumento regulador do comportamento. A ação do indivíduo passa a ser mediatizada pela linguagem.
o A relação entre aprendizagem e desenvolvimento. Para Vigotski o desenvolvimento é um processo dinâmico em que se alternam estágios de relativa estabilidade e períodos de mudanças radicais – as crises, entendidas como positivas, já que modificam velhas relações e abrem espaço para a criação de novas possibilidades.
Entendendo o desenvolvimento enquanto processo dinâmico pode-se compreender o conceito de Zona de desenvolvimento proximal. Para Vigotski (1988a) existe o nível de desenvolvimento real ou efetivo e a Zona de desenvolvimento proximal correspondente àquelas atividades que a criança ainda não consegue realizar sozinha, mas consegue com a ajuda de outra pessoa. Citando Vigotski (1988a): “O que a criança pode fazer hoje com o auxílio dos adultos poderá fazê-lo amanhã por si só. A área de desenvolvimento potencial permite-nos, pois, determinar os futuros passos da criança e a dinâmica do seu desenvolvimento e examinar não só o que o desenvolvimento já produziu, mas também o que produzirá no processo de maturação.” (p. 113)
A consciência e as emoções. Para Vigotski a consciência humana deve ser estudada como função, o que contraria algumas tendências da psicologia tradicional que a considera substância, princípio explicativo.
A atividade humana é o plano que dá origem à consciência. A linguagem tem papel essencial na formação da consciência, já que é através dela que o homem pode transmitir suas representações de uma geração a outra, pode refletir sobre o mundo que o cria e, ao criá-lo, pode estruturar sua consciência.
Flávia Asbahr é psicóloga e membro do grupo Marxismo mais Brasil (marxismomaisbrasil@grupos.com.br)
Referências bibliográficas
Evangelista, J.E. Crise do marxismo e irracionalismo pós-moderno. São Paulo: Cortez, 1997.
GONÇALVES, M. G. M. O método de pesquisa materialista histórico dialético. In: ANAIS do V Encontro de Psicologia Social Comunitária – ABRAPSO/Bauru. Agosto, 2001.
LANE, S. Avanços da Psicologia Social na América Latina. In: SAWAIA, B.B. (orgs.). Novas veredas da Psicologia Social. São Paulo: EDUC/Brasiliense, 1995, p. 67-81.
LURIA, A.R. VIGOTSKI. In: VIGOTSKI, L.S.; LURIA, A.R.; LEONTIEV, A.N. Linguagem, Desenvolvimento e Aprendizagem. São Paulo, Ed. Cone, 1988a, p. 21-37.
MEIRA, M.E.M. Psicologia Escolar: Pensamento crítico e práticas profissionais. In: TANAMACHI, E.; PROENÇA, M.; ROCHA, M (orgs.) Psicologia e Educação. São Paulo, Ed. Casa do Psicólogo, 2000, p. 34-71.
MOLON, S. Subjetividade e constituição do sujeito em Vigotski. São Paulo: EDUC, 1999.
SHUARE, M. La Psicologia Soviética como yo la vejo. Moscu: Editorial Progresso, 1990.
TANAMACHI, E. R. Visão crítica de Educação e de Psicologia: elementos para a construção de uma visão crítica de Psicologia Escolar. Marília, 1997. Tese de doutorado.
VIGOTSKI, L. S. Aprendizagem e desenvolvimento intelectual na idade escolar. In: VIGOTSKI, L.S.; LURIA, A.R.; LEONTIEV, A.N. Linguagem, Desenvolvimento e Aprendizagem. São Paulo, Ed. Cone, 1988a, p. 103-117.
VIGOTSKI, L.S. Formação social da mente. São Paulo: Ed. Martins Fontes, 1988b
EDIÇÃO 65, MAI/JUN/JUL, 2002, PÁGINAS 76, 77, 78, 79