Haveria muito o que falar do velho João. Homem que tem o maior rio do mundo no nome; rio brasileiro. E que, além de Amazonas, é João, nome por todos os modos e elocuções simples e brasileiramente cristão. Nome de profeta e de apóstolo. Nome de músico; de escritor. Estava mesmo faltando um grande marxista com esse nome. Tava mesmo faltando um grande político com esse nome de João.

      Amazonas gostava de citar uns versos de Gonçalves Dias. São de um poema que traduzia a ele mesmo, João: "a vida é luta renhida. Viver é lutar". Chegou mesmo a declarar que queria ser lembrado como um homem lutador – o que, de resto e segundo ele mesmo, caracteriza qualquer brasileiro.

      Era mesmo um homem de luta esse João. Era mesmo um lutador. Palmilhou selva, combateu exércitos, curtiu a saudade no exílio (Olhaí Gonçalves Dias de novo!), viveu metade de sua vida clandestino, perseguido, proscrito.

      Miúdo de corpo, combateu gigantes. Enfrentou o chefe supremo do PCUS, Nikita Kruschev, e lhe disse na taba das ventas que era um traidor. Peitou Mao, grande líder chinês, e o acusou de tergiversar com sua teoria dos três mundos. Não se deixou intimidar por Prestes e seu prestígio de Cavaleiro da Esperança, e lhe lançou às faces o epípeto de liquidacionista.

      Atrevido esse João. Soube dizer-se errado quando assim se pilhava. Ousou renovar-se quando assim a vida o exigia. Soube interpretar o rumo dos ventos, o marulho das folhas, a marcha das formigas – no âmago do silêncio ou no olho das tormentas.

      A primeira vez que vi João, ele tomava café. Encostado a uma mesa, segurava numa mão o pires e, na outra, a xícara que lhe embebia o bigode. Com meus dezesseis anos, passei por ele solene, cheio de formalidades. Lancei-lhe um boa tarde abafado e sério. Ele me respondeu um ôpa jovial e à vontade. Confundi-me. Senti um misto de vergonha e dúvida.

      A última vez que o vi foi no Congresso do Partido no Rio. Ele tomou a palavra para dizer que o PCdoB ia muito bem, obrigado – crescendo e aumentando sua força política e influência. E, homem de partido que era, pediu ao plenário do Congresso que o dispensasse, por favor, da tarefa que lhe foi confiada em 1962: a de presidir a esperança. Segundo ele, a cabeça queria continuar, mas o corpo de 90 anos não permitia. A militância atendeu em parte a seu pedido. Ele saiu da presidência para ocupar a presidência de honra.

      João morreu neste maio como anunciou em dezembro: "Em meu posto de combate; em minha bancada de trabalho". Suas cinzas vão misturar-se ao solo araguaio que mapeou em seus e em nossos afetos. Vão beijar as faces dos guerrilheiros tombados e nunca mortos na memória. Vão reencontrar seu amigo Maurício e reeditar sua saga e suas trilhas de sonhos. 

      Nunca mais verei João. Não mais poderei perguntar “João, pra onde?”.