Memorial
Do fundo de sua mágoa, ele olhava o horizonte. Tantos anos vividos e agora aquilo: uma cadeira de balanço e muita amolação. Crianças correndo pela casa, mulheres decidindo sobre sua higiene, homens determinando aonde ir, quando ir, o que fazer.
Não havia vivido para aquilo. Não senhor. Muitas coisas tinha visto nesta vida desgraçada. Muita coisa. O céu coalhado de pára-quedistas, os companheiros tombados, as ruas cheias de medo, mas grávidas de esperança. Não, meu amigo, não morreria naquilo.
— Dinalva, me trás café.
— O senhor não pode com café, seu Quim. Dona Emília já falou.
— Quero que Emília vá pro diabo. Quero café.
A negra fez que não ouviu. Saiu com toda a cor para a cozinha e deixou seu rastro de perfume e trabalho. Ele lembrou de Dina – suave, guerreira, feita de liberdade. Lembrou de Lúcia – solar, cansada, solícita. E de Helenira, assustada, culta e bela.
Lembrou do amigo. A essa hora já seria cinzas. Não pôde ir ao velório. Não pôde a última despedida. Ficou sabendo que fora ovacionado. O caixão, sobre o carro de bombeiros, cruzou veloz a cidade rumo à zona leste da cidade.
Imaginou então o corpo franzino, quieto, livre de toda agitação, encaixotado. Lembrou da casa na Lapa, do cárcere, da febre curtida sem médico. Lembrou das balas para sempre perdidas e revividas na memória. E lembrou do tempo menino nas ruas de Belém: mangas caindo às dúzias nas calçadas; a chuva marcando o meio da tarde, qual um relógio; ela surgindo nua diante de seus olhos virgens. A castanha, o açaí, os primos. A caldeirada. A primeira bandeira pendurada na sede. A polícia. A fuga. A cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro se oferecendo na Praça Onze. O Largo da Carioca e o ponto que caiu. A tortura. O terror e o exílio.
— Se dona Emília sabe…
O café, entregue na porcelana há muito guardada, cheirava forte. Do jeito que ele gostava. Com um olhar duro e agradecido, olhou para Dina, enquanto sorvia a bebida quente. O calor, a partir dos lábios, comunicou-se-lhe por todo o corpo.
Levantou-se. Passos inseguros, tomou da bengala. Do cabideiro, livrou o chapéu. Enrolou no pescoço o cachecol ganho no último aniversário; vestiu o casaco. Já na rua, fitou o horizonte, agora mais largo. Tomou o caminho no rumo da zona leste, que é de onde vem o sol e sua inseparável alvorada.