Conseqüências da “privatização” na herança que nos entregam
Parte básica da herança perversa que recebemos dos oito desastrosos anos do governo de FHC advém da chamada “privatização”. Esta começou antes do período de FHC à frente do Estado brasileiro, e representava um dos ícones da cartilha neoliberal do Consenso de Washington, mas se desenvolveu sobremaneira durante os dois governos de Fernando Henrique.
A “privatização” deixou-nos um legado variado e sinistro. Uma de suas partes pode ser aferida pelo número e qualidade das estatais vendidas, diversas das quais, empresas estratégicas. A forma como essas alienações ocorreram também desperta perplexidade, já pelos preços aviltados das empresas vendidas, já pelos ágios manipulados, já pelo monumental tráfico de influência ocorrido. Em certos casos, houve verdadeiras doações.
Vender empresa estratégica, entregar setores econômicos inteiros ao estrangeiro é comportamento que priva o Estado de instrumentos vitais ao desenvolvimento do país, significa alienar a soberania nacional; contudo, é apenas um dos aspectos do problema, de forma alguma o único.
Diversas esferas da atividade estatal foram negativamente contaminadas pela “privatização” brasileira. Seus tentáculos destruidores atingiram práticas antigas e consolidadas, desestruturando-as e redefinindo-as. Suas raízes malignas destruíram tanto o organismo estatal que a “privatização” pode ser vista como o movimento básico que precipitou o desmonte e reconfiguração do Estado brasileiro.
Ao avaliarmos a herança desastrosa que recebemos do período de FHC, consideraremos a “privatização” do ponto de vista das mudanças que provocou em alguns aspectos importantes do funcionamento do Estado. Veremos, assim, que a sua contribuição foi absolutamente funesta.
A “privatização” como fator de desnacionalização da economia brasileira
A Intervenção Especial apresentada no 10º Congresso do PCdoB (dezembro de 2001) “Sobre a Desnacionalização da Economia” mostrou como a “privatização” efetuada no Brasil, especialmente sob os governos de FHC, transferiu setores-chave da economia brasileira ao controle estrangeiro.(1) A conclusão a que ali se chegou, e que guarda toda atualidade, foi a de que a “privatização” no Brasil foi uma desnacionalização. Estudos posteriores, como o de Octávio Ianni (ver entrevista ao Jornal da Unicamp, junho 2002); o Relatório da Universidade de Campinas sobre “a privatização no setor financeiro e a política de concentração bancária” (2002); e outros, confirmam e enriquecem essa conclusão.
Característico da “privatização” no Brasil foi o capital estrangeiro ter passado a ser predominante na economia brasileira sem criar basicamente nada de novo no país, sem implantar nenhuma planta produtiva nova, apenas comprando o que já existia e, ainda mais, através de espantosas negociatas.
Comprar parques fabris já existentes não era a forma predominante de agir do capital estrangeiro no Brasil. Em 1994, por exemplo, para a compra de empresas já instaladas, empregou apenas 0,38% dos US$ 2,1 bilhões do dinheiro que para cá trouxe. Depois, entre 1998 e 1999, destinou 74,1% dos US$ 28,7 bilhões que trouxe de fora para comprar empresas em funcionamento. Quer dizer: em cerca de dois anos, multinacionais “investiram” no Brasil US$ 21,3 bilhões apenas para que empresas em pleno funcionamento passassem a ter donos estrangeiros. (2)
Evidentemente, esse movimento foi precedido de gestos absolutamente subalternos do Governo brasileiro, promovendo importantes modificações na Constituição – todas para beneficiar o capital estrangeiro, enquanto escorchava o capital nacional com juros dos maiores do mundo.
Assim, o capital estrangeiro inicia o novo século XXI controlando, no Brasil, 90% do setor eletro-eletrônico; 89% do setor automotivo; 86% do setor de higiene, limpeza e cosméticos; 77% da tecnologia da computação; 74% das telecomunicações; 74% do farmacêutico; 68% da indústria mecânica; 58% do setor de alimentos; e 54% do setor de plásticos e borracha. Em setores onde o capital forâneo não tinha qualquer presença, ou a tinha inexpressiva, a situação se modificou. É o caso da siderurgia e metalurgia, onde, entre 1994 e 1999, o capital estrangeiro elevou sua participação de zero por cento para 34%. (3) Também no comércio varejista a participação estrangeira, em 1994, era de apenas 7,1% e hoje está em mais de 60%. (4) As grandes empresas varejistas que atuavam no Brasil eram brasileiras e hoje já não são. No setor elétrico, até recentemente quase todo nacional, houve um retorno à situação que prevalecia antes da Revolução de 1930, quando a maioria das energéticas era estrangeira. A Escelsa (ES) virou portuguesa; a Eletrosul (RS) ficou belga; a Cerj (RJ), chilena; a Coelce (CE), espanhola; a Coelba (BA), espanhola; a Celpe (PE), espanhola; a COSERN (RN), espanhola; a Cesp-Bandeirante (SP), portuguesa; a CEE-NNE (Norte e Nordeste do RS), norte-americana; a CEE-CO (Centro-Oeste do RS), norte-americana; a Eletropaulo, norte-americana; a Elektro, norte-americana; e a Cesp-Paranapanema (SP), norte-americana. E tudo vendido com financiamento do BNDES, via Fundo de Amparo ao Trabalhador.
Chama a atenção a rapidez com que foi desnacionalizado o setor bancário. Em 1994, quando FHC tornou-se Presidente, a parcela dos estrangeiros nesse setor girava em torno dos 10%. Hoje essa participação vai além dos 50%. Nos últimos cinco anos, o número de bancos estrangeiros saltou de 2% para 17% do total das agências existentes. Enquanto em 1994 a especulação com títulos públicos correspondia a 4% das receitas dos bancos, no final de 1998 essa especulação chegava a 43%. Um estudo de Fábio Comparato mostra que o avanço do sistema financeiro foi tal que a indústria no Brasil, “pela primeira vez desde 1930, no período de 1989 a 1998 (nove anos), perdeu 5,3% de sua importância na formação do PIB brasileiro”. (5)
A Federaminas (Federação das Associações Comerciais, Industriais, Agropecuárias e de Serviços de Minas Gerais) revelou que nos últimos cinco anos 835 empresas brasileiras passaram às mãos de estrangeiros. O capital estrangeiro respondia por 36% do faturamento dos 350 maiores grupos do país em 91. No final de 99 essa participação chegava a 53,5%.
Assim, no que diz respeito à “privatização” no Brasil, o que sobrou para o povo dos oito anos de FHC foi isto: uma economia desnacionalizada, onde seus setores hegemônicos – o financeiro e o industrial –, estão sob controle estrangeiro. A capacidade da Nação em tomar decisões soberanas foi gravemente afetada.
A “privatização” como fator de estagnação
O Brasil já conheceu quase meio século de desenvolvimento à elevada taxa média de 6% ao ano. Durante trinta anos do pós-guerra, este país que há 20 anos não cresce, cresceu mais que o Japão. Naquele período havia um determinado projeto de desenvolvimento nacional e implantou-se um modelo desenvolvimentista. Esse modelo, criado a partir da Revolução de 30, e que funcionou razoavelmente bem até o final da década de 70, fundava-se em alguns importantes pilares: 1) a construção de um Estado dotado de instrumentos de intervenção no país e que investia em áreas estratégicas, organizando estatais em setores básicos, promovendo formação de pessoal, criando institutos de pesquisa, órgãos de planejamento e bancos de fomento ao desenvolvimento; 2) uma política de substituição de importações que privilegiava o produtor interno, incentivava seus investimentos e garantia-lhe o mercado interno; e 3) a formação de uma poupança interna centralizada, baseada em tributos estipulados para a exportação de produtos, especialmente o café. Nessa base o país chegou a ser a oitava economia do mundo.
As elites que dirigiram o país nesse período estavam animadas de um ideal desenvolvimentista, procuravam ser hegemônicas na economia brasileira e, para tanto, preservaram o papel insubstituível do Estado nacional.
Lamentavelmente, essas mesmas elites não perceberam a necessidade de alicerçar esse desenvolvimento com a formação de um vigoroso mercado interno. Não realizaram uma reforma agrária para dinamizar o vasto interior do país e não distribuíram a renda nacional, mas, ao contrário, concentraram-na. O desenvolvimento, ao invés de chegar a ser auto-sustentado, ficou auto-limitado.
Com Fernando Collor e, sobretudo, Fernando Henrique, esse modelo foi abandonado, depreciado e ridicularizado, para realce do novo código “salvador”, “moderno”, “global” – o modelo neoliberal. A elite capitulou frente ao discurso do capital estrangeiro e abriu-mão do instrumento decisivo para seu projeto de poder, o Estado nacional. Perdeu força e transformou-se em apêndice do capital forâneo. Demonstrou, ao acatar a “privatização” desnacionalizante posta em prática, sua incapacidade para manter e disputar a hegemonia da economia em seu próprio país.
Portanto, o desenvolvimento que o Brasil conheceu jamais foi espontâneo, jamais decorrente da “vontade” do mercado. Foi algo consciente, premeditado, planejado e executado com denodo. Quem o alavancou foi o Estado nacional, e quem o financiou, inicialmente, foi o Banco do Brasil e, depois de 1952, o BNDE, transformado em seguida em Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico, o BNDES.
A função do BNDES, de banco de fomento do desenvolvimento, foi definida no artigo 23 da lei 4.595, que o criou, e que o situava expressamente como “principal instrumento de execução de política de investimento do governo federal”. De resto, essa função foi fundamentalmente respeitada por aproximadamente quarenta anos.
A política de “privatização”, notadamente a partir de 1995, no primeiro governo de FHC, cometeu grave atentado ao país, com a drástica e absurda alteração da função do BNDES: de órgão principal de fomento do desenvolvimento do Brasil ele foi transformado em órgão principal de financiamento de multinacionais desejosas de comprar empresas estatais ou privadas brasileiras. Saliente-se que não se tratava de financiamento de multinacionais para investimentos no Brasil – o que já seria discutível. Não. Era financiamento, e em condições altamente vantajosas, para grupos estrangeiros comprarem, a preços vis, empresas brasileiras já existentes.
Sob o prisma do desenvolvimento duas conseqüências ocorreram: 1) o crescimento avassalador das empresas estrangeiras em nosso país trouxe, em contrapartida, o crescimento avassalador das remessas de lucros e dividendos para o exterior, ameaçando cada vez mais o fechamento das nossas contas externas e retirando dinheiro de investimentos novos, vitais para o desenvolvimento; e 2) a mudança do papel do BNDES privou o empresariado nacional de um efetivo banco de fomento, que passou a usar seu capital, inclusive a parte vinda do Fundo de Amparo ao Trabalhador, para financiar multinacionais.
Assim, a “privatização” no Brasil transformou-se em um inibidor do desenvolvimento do país – na prática, em um fator de estagnação. Sua contribuição foi importante para transformar o Brasil de oitava economia do mundo em décima quarta.
A “privatização” como fator de corrupção
A “privatização” ocorrida no Brasil esteve mancomunada o tempo todo com algumas das piores mazelas do mundo dos negócios, como tráfico de influência, avaliações fraudulentas, leilões manipulados, propinas milionárias, uso do aparelho de Estado para beneficiar amigos, trânsito promíscuo entre dirigentes que ora ocupavam cargos públicos, ora se instalavam em postos-chave das instituições “privatizadas”. A “privatização” no Brasil desenvolveu-se de braços dados com a corrupção e a impunidade.
Já na “privatização” da primeira das grandes empresas alienadas, a Companhia Vale do Rio Doce, ocorreram irregularidades clamorosas, ainda hoje sob investigação do Ministério Público. O Consórcio vencedor, encabeçado por um grupo têxtil decadente e sem nenhuma experiência no ramo da mineração, foi montado nos gabinetes do governo e, não por coincidência, teve como seu principal dirigente o empresário Benjamin Steinbruch, do grupo têxtil Vicunha – à época, amigo dileto e empregador do filho do presidente da República, o senhor Paulo Henrique Cardoso. O principal arquiteto do consórcio que terminou abocanhando a maior mineradora do mundo por ridículos R$ 3,3 bilhões foi Ricardo Sérgio de Oliveira, conhecido caixa das campanhas de José Serra e Fernando Henrique Cardoso, que manipulou os fundos de pensão como a PREVI para viabilizar o Consórcio e assegurar o controle da Vale para o grupo escolhido pelo governo.
O banco encarregado de organizar o leilão da Vale foi o Bradesco que, embora impedido pelas cláusulas do contrato de figurar como comprador da empresa, terminou assegurando para si cerca de 10% do seu controle acionário.
Mais tarde, ameaçado pelos sócios de ser afastado do controle da Vale do Rio Doce e insatisfeito com a falta de apoio do governo, Benjamin Steinbruch denunciou a dois ministros de Estado que ele, Steinbruch, havia sido chantageado por Ricardo Sérgio de Oliveira, que lhe exigia o pagamento da propina de R$ 50 milhões acertada quando da montagem do consórcio. O presidente da República, cientificado do crime por seus ministros, preferiu o silêncio e ainda manteve Ricardo Sérgio no cargo de
Diretor da Carteira de Comércio Exterior do Banco do Brasil…
Na privatização da Telebrás, a “maior privatização do mundo”, segundo a propaganda oficial, grampos telefônicos instalados no BNDES flagraram o presidente da instituição, André Lara Resende, o então ministro das Telecomunicações, Mendonça de Barros e o próprio presidente Fernando Henrique Cardoso acertando o uso do nome do presidente da República para assegurar o controle da Telemar (fatia da Telebrás que incluía a telefonia fixa do Rio de Janeiro, Minas e Espírito Santo, além de todo o Nordeste e Norte do país) pelo consórcio liderado pelo grupo Opportunity, controlado por Daniel Dantas e Pérsio Arida. Ricardo Sérgio de Oliveira, que trabalhava nos bastidores em favor de outro consórcio, pressionado por Lara Resende e Mendonça de Barros, chegou a dizer que na manipulação do leilão estavam “agindo no limite da irresponsabilidade”.
No final do processo, o consórcio liderado pelos grupos La Fonte, Inepar e Andrade Gutierrez figurou como único candidato no leilão da Telemar e levou a empresa pelo preço mínimo. Detalhe importante é que nessa época, Paulo Henrique Cardoso, filho de FHC, trabalhava junto ao grupo Inepar, que pagava inclusive seu luxuoso apartamento no mais caro bairro do Rio de Janeiro. Outro detalhe surgiu posteriormente, quando Ricardo Sérgio de Oliveira – ele, de novo –, foi acusado de cobrar propina de US$ 90 milhões pela “ajuda” dada aos vencedores do leilão da Telemar e de ter recebido a propina por meio de uma reorganização societária que envolveu a troca de ações da empresa controladora da Telemar.
A promiscuidade entre os interesses públicos e privados sempre esteve presente nos dois mandatos de FHC, seja no setor financeiro, onde dirigentes do Banco Central e de outros bancos públicos transitavam com suspeita desenvoltura, seja na “privatização”, onde determinadas figuras ora estavam do lado vendedor, em cargos-chave do BNDES, ora do lado oposto, nas diretorias dos grupos compradores.
Exemplo marcante dessa promiscuidade é o da Sra. Elena Landau que ocupou durante anos a Diretoria de Privatizações do BNDES, de onde conduziu dezenas das privatizações, inclusive aquelas em que o beneficiário maior foi o Grupo Opportunity, controlado por Pérsio Arida, coincidentemente marido da Sra. Elena Landau. Esta, tão logo deixou o BNDES, virou diretora do Opportunity e hoje representa o grupo no conselho de Administração da CEMIG.
O grupo Opportunity, de Pérsio Arida e Daniel Dantas, foi um gigante nas privatizações ocorridas no Brasil. Fundado em 1997, conseguiu a proeza de, em pouco mais de um ano, transformar-se num dos principais compradores das estatais brasileiras. Participa do controle acionário da ESCELSA (Empresa de energia elétrica do Espírito Santo), da CEMIG (Centrais Elétricas de Minas Gerais), da Vale do Rio Doce (Pérsio Arida integra o Conselho de Administração da CVRD), da Telemig Celular, da Tele Centro Sul, da Tele Norte Celular, da AMERICEL (Telefonia Celular do Centro-Oeste), e do Metrô do Rio de Janeiro.
Pérsio Arida foi diretor e Presidente do Banco Central e presidiu também o BNDES. As informações privilegiadas que tinha se transformaram em grande fonte de lucro dos seus negócios. Arida foi ainda diretor do Unibanco, junto com André Lara Rezende, e presidiu o Banco Central na mesma época em que tanto Lara Rezende quanto Mendonça de Barros eram diretores da mesma instituição. Suas relações de amizade e de parceria com Lara Rezende e Mendonça de Barros, seu casamento com Elena Landau e sua passagem pela presidência do BNDES levantam sérias suspeitas sobre seu sucesso nas “privatizações”.
Os exemplos citados mostram como a “privatização” no Brasil esteve contaminada pela corrupção aberta e como o interesse público foi golpeado para assegurar benefícios a grupos privados, em geral estrangeiros. O BNDES, que teve sua função precípua inteiramente subvertida, terminou se transformando num covil de onde eram arquitetados, e financiados, assaltos terríveis contra o patrimônio público.
Assim, a “privatização” no Brasil foi instrumento por onde se desenvolveu em nível alarmante a corrupção. Os veementes e abundantes indícios das bandalheiras que surgiam nunca foram apurados porque FHC sempre se insurgia contra toda tentativa séria de averiguação dos escândalos.
Haroldo Lima é membro do Comitê Central do PCdoB e exerce seu quinto mandato como deputado federal da Bahia.
Notas
(1) A Intervenção Especial referida
pode ser encontrada nos portais
vermelho.org.br e haroldolima.com.br
(2) V. “Triplica a remessa de lucros ao exterior”, Folha de S. Paulo, 3/10/99.
(3) Dados da Intervenção citada na nota 1.
(4) Idem.
(5) “A desnacionalização da economia brasileira e suas conseqüências políticas”, Fábio Konder Comparato, portal do Instituto dos Advogados do Brasil.
EDIÇÃO 66, AGO/SET/OUT, 2002, PÁGINAS 27, 28, 29, 30, 31