Passava um pouco das dezenove horas do dia 8 de julho de 2002. Acabara de entrar na sala de aula quando a voz amiga da professora Izolda Cela, por telefone, avisou-me: Patativa do Assaré morreu agora há pouco. Naquele momento, desabou sobre mim uma certeza: estamos mais pobres, acabamos de perder um dos gigantes da poesia brasileira em todos os tempos.

Talvez agora, como costuma acontecer, nos seja revelada enfim a verdadeira dimensão deste homem e de sua obra, a verdadeira grandeza deste agricultor semi-analfabeto que construiu uma poesia capaz de colocá-lo, em pé de igualdade, ao lado dos maiores nomes da nossa literatura.

Patativa nasceu Antônio Gonçalves da Silva, agricultor, filho, neto e bisneto de agricultores, numa esturricada Serra de Santana do sertão de Assaré, cidadezinha perdida nos cafundós do judas do Ceará. Viveu por noventa e três anos – desde o 5 de março de 1909, quando nasceu; e até depois dos setenta anos lavrou a terra, tirando dela o seu sustento. Nasceu, viveu e morreu pobre, como os agricultores nordestinos cantados por ele em seus versos.

Mas esse agricultor, que teve seus dias de repentista de feira, de cantador de viola, vagando pelos sertões do Ceará para fazer suas cantorias de pé de parede, virou doutor. E doutor importante, Doutor Honoris Causa, título concedido pela Universidade Federal do Ceará, pela Universidade Estadual do Ceará e pela Universidade Regional do Cariri. Poeta estudado pela famosa Universidade de Sorbonne, na França. Entre as cantorias de viola e o reconhecimento da Academia, entretanto, um longo caminho percorrido.

O menino Antônio Gonçalves da Silva, que virou “Sinhozinho” para a família e transformou-se em Patativa para o mundo, perdeu a visão de um dos olhos ainda criança. Segundo o próprio poeta, “perdi a vista direita, no período da dentição, em conseqüência da moléstia vulgarmente conhecida por Dor-d’olhos”.

Se Patativa perdeu um olho, isso não diminuiu em nada a sua sensibilidade poética e o seu humor. Pelo contrário, brincava sempre com a tragédia que o acometera ainda na infância, tragédia à qual se juntaria aos oito anos a perda do pai.

Nasci dentro da pobreza
Sinto um prazer com isto
Por ver que fui com certeza
Colega de Jesus Cristo
Perdi meu olho direito
Ficando mesmo imperfeito
Sem ver os velhos clarões, Mas logo me conformei
Por saber que assim fiquei
Parecido com Camões.

Patativa começou, como já dito, como violeiro, aos dezesseis anos de idade, e por um bom tempo assim permaneceu. Foi como violeiro que ganhou o apelido que iria acompanhá-lo pelo resto de sua vida. Aos vinte anos, em viagem ao estado do Pará, o escritor cearense José Carvalho de Brito, ao vê-lo cantar, batizou-o de Patativa. O próprio poeta explicava que o “do Assaré” veio depois, para diferenciá-lo de outras patativas que estavam surgindo. Nem seria necessário, já que o poeta tornou-se único, inigualável. Cantando e recitando na Rádio Araripe, no Crato, o poeta foi ouvido por José Arraes de Alencar, que se propôs a buscar a edição do primeiro livro, ditado por Patativa e datilografado pelo bancário Moacir Mota, filho de Leonardo Mota, o velho Leota que tão profundamente conhecia e defendia a cultura nordestina. Assim saiu o livro Inspiração Nordestina, em 1956, pela Borsoi Editora, do Rio de Janeiro.

Patativa teve sua voz amplificada pela música, no dizer do professor Gilmar de Carvalho, cuidadoso pesquisador e estudioso da obra do poeta. Especialmente por Luiz Gonzaga, com a gravação de “Triste Partida”, verdadeiro canto épico contando a saga do migrante nordestino em busca da felicidade nas terras do sul. Aliás, a vida do agricultor nordestino, sua miséria, a opressão a que é submetido e suas dores, mas também suas lutas e suas esperanças, formam o componente central da poesia de Patativa do Assaré.

Há algumas discussões sobre Patativa e sua obra que tentam enquadrá-lo em certos esquemas mais ou menos dogmáticos. A primeira dessas discussões é sobre a característica popular de sua poesia. É claro que Patativa era um poeta popular! Mas popular no sentido de que era um poeta do povo, falando a voz do povo para esse mesmo povo. Ele foi a própria manifestação oral da cultura desse povo; foi, em muitos sentidos, a voz da consciência coletiva dos sertanejos oprimidos, inconformados e rebelados contra a miséria secular e a opressão do latifúndio. Jamais, entretanto, se poderia cunhá-lo com o termo popular para tentar reduzir a sua poesia, em falsa oposição à literatura chamada de erudita. Patativa foi um clássico da poesia, e como clássico está acima dos termos erudito ou popular.

Deixemos que ele mesmo fale, que ele mesmo explique como se sentia:
Eu conheço a versificação com todas as suas tônicas, as suas sílabas predominantes, com a medida certa, eu versejo é com a medida certa, tal qual a medida de soneto de Guimarães Passos, de um Olavo Bilac, etc… Mas, no entanto, esses poemas, que iriam nascer em forma literária, como tem muitos aí no meu livro, são só para mostrar a muitos ignorantes que falam por aí que eu só sei fazer poesia matuta, pensando eles que a poesia matuta é fácil de fazer. É muito mais difícil que a poesia em forma literária. Até tenho um soneto, ouça bem esse aqui, este soneto “O Peixe”. Esse soneto é decassílabo, obedecendo à tônica, a sua sílaba predominante, como qualquer um soneto de Guimarães Passos ou de qualquer outro poeta clássico daquele passado, viu?

Tendo por berço o lago cristalino,
Folga o peixe, a nadar todo
[inocente,
Medo ou receio do porvir não
[sente,
Pois vive incauto do fatal destino.
Se na ponta de um fio longo e fino
A isca avista, ferra-a incons-ciente,
Ficando o pobre peixe, de repente,
Preso ao anzol do pescador ladino.
O camponês também do nosso
[Estado
Ante a campanha eleitoral, coitado,
Daquele peixe tem a mesma sorte.
Antes do pleito, festa, riso e gosto,
Depois do pleito, imposto e mais
[imposto,
Pobre matuto do sertão do norte.

Depois dessa fala do próprio poeta, em entrevista concedida ao cineasta Rosemberg Cariry, fica difícil para os “classificadores” tentarem enquadrar a poesia de Patativa do Assaré em popular ou erudita. Se não for argumentação suficiente, que ouçam novamente o poeta:

“Ao mesmo tempo eu faço esta poesiazinha aqui, já diferente: Nesta vida aperreada/ pra me livrá das furada/ destes teus óios redondo/ caboca, onde eu me coloco?/ caboca, onde é que eu me soco?/ caboca, onde é que eu me escondo? Mas veja bem, eu sei também fazer poesia em forma literária, mas não vou desvirtuar a minha lira, somente cantando isso. Eu nunca deixei de olhar para o caboclo e nem de falar da poesia dele, a poesia sertaneja, que tem o cheiro da poeira do sertão.”

Patativa, apesar de ter passado somente poucos meses em uma “escola muito atrasada”, como ele mesmo falava, aprendeu nela os rudimentos da leitura e da escrita, e foi com esses rudimentos que começou a ler a literatura de cordel e a fazer seus primeiros improvisos. Foi a partir daí também que conheceu clássicos da poesia como os já citados Guimarães Passos e Olavo Bilac, dos quais leu o famoso Tratado de Versificação, mas também Camões e Castro Alves. Com este último o poeta dizia ter uma identificação muito grande, já que ambos cantavam em defesa dos oprimidos.

A segunda discussão que ainda hoje alguns insistem em travar é sobre o caráter conservador ou progressista da poesia de Patativa. Ora, enquadrar Patativa dentro dessa ótica é exercício de intelectual diletante. Patativa foi um poeta comprometido com seu tempo e com seu povo, e isso está atestado suficientemente pela sua obra, sem necessidade de mergulhos sociológicos de espécie alguma. Neste sentido, Patativa foi um poeta militante, um poeta que militou em defesa dos direitos dos agricultores, que militou contra a opressão e contra as injustiças, um poeta rebelado contra a situação de miséria imposta aos nordestinos e aos brasileiros pobres.

Alguns têm dificuldade em se dar conta que esse caráter militante só engrandece a obra de Patativa, só dignifica a obra de Patativa, em nada diminuindo sua grandeza e sua superior qualidade, que colocam o poeta ombro a ombro com os maiores nomes da literatura do século XX, no Brasil e fora dele. Mesmo um pesquisador sério como o professor Gilmar de Carvalho, da Universidade Federal do Ceará, confessa sua dificuldade inicial com este caráter militante da obra de Patativa: “(…) ganhei o Cante Lá Que Eu Canto Cá, em 1978. Achei muito interessante, mas me faltava sensibilidade pra compreender. (…) Confesso que tinha uma certa dificuldade para gostar. Depois acompanhei aquela movimentação toda de Anistia, Patativa muito apropriado pelas esquerdas, e também me incomodava esse poeta militante demais, esse Pablo Neruda da caatinga, sabe?”

Não precisamos sequer recorrer à obra de Patativa para saber se ele foi conservador ou progressista. Basta reler ou rever os seus depoimentos, as suas poesias, as suas falas. Como o seu falar indignado, inconformado, em edição preparada pela TV Verdes Mares, de Fortaleza, para o programa Nordeste Rural. Nele, Patativa fala sobre a reforma agrária, com profunda indignação porque, segundo ele, não compreende que num país tão rico como o Brasil ainda haja algum agricultor que não tenha sequer um pedacinho de terra para erguer sua casa e botar a sua rocinha. É o depoimento sincero de um brasileiro que sonhou, e expressou isso em sua poesia, com um Brasil novo, justo e feliz.

Este poeta clássico e comprometido com o seu povo e com seu tempo é a expressão maior de uma cultura forjada num amálgama de outras culturas; é a expressão máxima de uma cultura riquíssima exatamente porque bebeu em fontes as mais diversas. Como bem dito em editorial pelo jornal O Povo, de Fortaleza, Patativa do Assaré é:

“Um exuberante poeta, que fazia da existência a matéria-prima de seus cantos, e das mazelas do mundo um acicate à injustiça e à omissão. Sorveu cada gota da existência com um senso gustativo simples e nem por isso menos apurado. Transudava verdade por todos os poros e por isso entrar em contato com ele era uma salutar maneira de sacudir a poeira das lentes embaçadas pelo conformismo.
Patativa do Assaré passou a ser o símbolo mais emblemático da alma sertaneja, herdeira do cruzamento de culturas que se perdem na noite dos tempos. Uma boca através da qual se expressa uma cadeia de oralidade que transpõe fronteiras raciais e latitudes geográficas. É uma voz que ressoa do fundo dos séculos, transmitindo verdades e sentimentos universais, tanto mais consistentes quanto mais aparentemente enfronhados na realidade circundante. O turbante, a cimitarra, a cruz heráldica, o grito de El Cid Campeador, o alarido da marujada da nau capitânea, alvíssaras mi capitan, mi capitan general, o rei D. Sebastião, os Doze Pares de França – um desfilar imenso que se perde nos desvãos da história. Nele, se pode enxergar o mesmo vulto que amealha o solo, curvado sobre as terras enegrecidas da margem do Nilo, no delta do Eufrates, no sopé das montanhas helênicas, no Vale do Tibre, nos esturricados aludes do Jaguaribe. Todos estão lá, ainda quando nunca evocados. Lá estão porque, como Patativa do Assaré, moram no sertão.”

Ao cair da noite do dia 8 de julho de 2002 a avezinha do Assaré, no sertão do Ceará, fez seu vôo derradeiro. Seu canto, entretanto, se já era canto imemorial, ouvido de séculos passados, passa a ser agora canto imortal, herança para eras futuras. Da cacimba cavada pelo poeta na sua Serra de Santana, da sua “fonte patativana”, continuaremos bebendo todos nós, olhos postos no futuro quando o sofrimento, a dor e a opressão cantados por Patativa, possam ser apenas uma vaga lembrança na nesga aberta de nossas memórias.

Joan Edessom de Oliveira é professor da Universidade Estadual Vale do Acaraú, em Sobral/CE.

Referências
ASSARÉ, Patativa do. Cante lá que eu canto cá. 6ª ed. Vozes: Petrópolis. 1986.
_____. Aqui tem coisa. 2ª ed. UECE: Fortaleza. 1995.
_____. Inspiração Nordestina. Edição Comemorativa do 90° Aniversário de Patativa do Assaré. UECE: Fortaleza. 1999.
CARIRY, Rosemberg & BARROSO, Oswald. Cultura insubmissa: estudos e reportagens. Nação Cariri Editora: Fortaleza. 1982.
O POVO. “Editorial”. 9 de julho de 2002.
O POVO. Entrevista com o Professor Gilmar de Carvalho. 10 de julho de 2002.

EDIÇÃO 66, AGO/SET/OUT, 2002, PÁGINAS 74, 75, 76