Os grilhões da nova dependência
A célebre distinção estabelecida por Weber entre as vocações da ciência e da política nos alerta para a dificuldade de conciliar a atuação pessoal em dimensões que operam com lógicas de argumentação, critérios de validação, códigos de comportamento e linguagens diferenciados. Não é fácil transitar entre essas duas dimensões, combinando e/ou conciliando a preocupação acadêmica com o levantamento rigoroso e fundamentado de complexa realidade social com a necessidade política do diagnóstico conciso, para viabilizar uma ampla mobilização em torno da problemática enfocada. O trabalho apresentado pelo deputado federal Aldo Arantes neste livro – fruto da sua dissertação de mestrado no Departamento de Ciência Política da UnB – consegue reunir o que há de melhor nesses dois mundos. Na verdade, foi precisamente a sua capacidade de transitar entre o mundo acadêmico e político que tornou possível este trabalho singular.
Presidente de uma das gestões mais marcantes da UNE nos anos de 1961-1962; combatente e dirigente da resistência política ao regime militar instalado pouco tempo depois; prisioneiro político deste mesmo regime por sua atividade oposicionista; parlamentar de Goiás com larga tradição de atuação na Câmara dos Deputados após a redemocratização; Aldo Arantes se valeu de toda esta vivência política para iluminar o estudo acadêmico de um tema absolutamente crucial para a vida nacional: o dos novos grilhões da dependência materializados nos sucessivos acordos firmados pelo Brasil com FMI após a crise da dívida externa no início da década de 80. A partir do estudo detalhado dos acordos firmados nas duas últimas décadas – incluindo as cartas de intenção, os memorandos, as notas e os adendos – Aldo nos revela como as condicionalidades, impostas pelo Fundo nestes acordos, assumiram um perfil cada vez mais amplo e profundo, evoluindo de condicionalidades “restritas” para condicionalidades “ampliadas” até assumir o caráter de condicionalidades estruturantes da própria política macroeconômica brasileira nos marcos da agenda do chamado Consenso de Washington, implicando no desmonte das estruturas e instituições do estado desenvolvimentista nacional.
A vivência política de Aldo Arantes foi determinante para o sucesso de sua empreitada acadêmica. Foi a sua condição de Deputado Federal que viabilizou o acesso documental ao texto de acordos classificados como “secretos”, que seriam de difícil acesso para um pesquisador de vivência exclusivamente acadêmica. No levantamento destas fontes, Aldo se deparou com uma prova material espantosa da subalternidade que caracteriza as relações do Brasil com o FMI: o próprio Estado brasileiro não possuía cópias de acordos internacionais secretos que havia firmado, e os mesmos tiveram de ser solicitados ao Fundo para atender o requerimento feito pelo Deputado. O amplo relacionamento político do Aldo Arantes também lhe permitiu entrevistar as personalidades mais decisivas da gestão macro-econômica do Brasil no período estudado (entre os quais, Delfim Netto, Marcílio Marques Moreira e Luiz Carlos Bresser Pereira) e os seus principais críticos (como Celso Furtado e Maria da Conceição Tavares). Quem tem um mínimo de experiência de pesquisa e orientação sabe que seria praticamente impossível para um mestrando com perfil estritamente acadêmico reunir leque tão representativo de depoimentos em tão pouco tempo.
Enfim, a policia, e a ciência, marcaram um feliz encontro no trabalho de Aldo Arantes. O resultado foi um trabalho original que ajuda a iluminar dimensões e desafios cruciais para o desenvolvimento soberano do nosso país. Trata-se de contribuição fundamental para o debate político e acadêmico sobre a história recente e os rumos futuros do Brasil.
Luis Fernandes
EDIÇÃO 66, AGO/SET/OUT, 2002, PÁGINAS 80