Daqui, abraço-te, Júlia.
Abraço-te, nesta noite
pós-chuva.
Barro molhado,
cheiro de grama encharcada.
Aqui, um menino desce descalço
a avenida.
Passa um ônibus,
passa um homem de bicicleta, tossindo.
 
Um cachorro sem dono
fuça o tambor de lixo
e sai, saltitando de alegria,
com uma carcaça de frango.
E uma velha rã papo-vermelho,
perspicaz caçadora,
captura uma gorda muriçoca.

No meu país:
os vaqueiros não comem carne,
sequer têm dentes.
Os "bóias-frias"
que colhem toneladas de algodão
tremem de frio no inverno.
Mas, hoje, de meu país só quero falar
do que vejo na minha vila.

Faz frio e volta a chover
e isto é bastante bom,
atiça o sexo da terra e das plantas.
E quem ama e quem deseja,
ama e deseja ainda mais
nessas noites assim,
que chove e faz frio.

Mas, o frio atiça também a fome.
E as crianças
que moram nas margens do Capim-Puba
não adquiriram a mesma destreza da rã,
o mesmo faro do cão,
e choram de fome.

E um pai, bêbado e também faminto,
bate, bate, até se cansar, na criança.
E ela fica ali, faminta,
soluçando.

E a criança, com aquela força,
que ela tem de amar e perdoar,
fica perguntando
por que aquele pai,
que ela gosta tanto,
bateu tanto
bateu tanto nela e na mãe,
quando a mãe a arrancou das garras do pai.

Fica tingido neste papel
que aquela noite, que choveu e fez frio
terminou,
com a força do sono
chegando e anestesiando o casebre;
e a criança, adormecendo,
balbuciando estas perguntas,
cantarolando
esta doída cantiga-de-ninar.

Os Sonhos e os Séculos – Adalberto Monteiro
Círculo Azul Livros – Goiânia – 1991.

 Adalberto Monteiro, Jornalista e poeta. É da direção nacional do PCdoB. Presidente da Fundação Maurício Grabois. Editor da Revista Princípios. Publicou três livros de poemas: Os Sonhos e os Séculos(1991); Os Verbos do Amor &outros versos(1997) e As delícias do amargo & uma homenagem(2007).