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    Comunicação

    Doída cantiga-de-ninar

    Daqui, abraço-te, Júlia. Abraço-te, nesta noite pós-chuva. Barro molhado, cheiro de grama encharcada. Aqui, um menino desce descalço a avenida. Passa um ônibus, passa um homem de bicicleta, tossindo.   Um cachorro sem dono fuça o tambor de lixo e sai, saltitando de alegria, com uma carcaça de frango. E uma velha rã papo-vermelho, perspicaz […]

    POR: Adalberto Monteiro

    3 min de leitura

    Daqui, abraço-te, Júlia.
    Abraço-te, nesta noite
    pós-chuva.
    Barro molhado,
    cheiro de grama encharcada.
    Aqui, um menino desce descalço
    a avenida.
    Passa um ônibus,
    passa um homem de bicicleta, tossindo.
     
    Um cachorro sem dono
    fuça o tambor de lixo
    e sai, saltitando de alegria,
    com uma carcaça de frango.
    E uma velha rã papo-vermelho,
    perspicaz caçadora,
    captura uma gorda muriçoca.

    No meu país:
    os vaqueiros não comem carne,
    sequer têm dentes.
    Os "bóias-frias"
    que colhem toneladas de algodão
    tremem de frio no inverno.
    Mas, hoje, de meu país só quero falar
    do que vejo na minha vila.

    Faz frio e volta a chover
    e isto é bastante bom,
    atiça o sexo da terra e das plantas.
    E quem ama e quem deseja,
    ama e deseja ainda mais
    nessas noites assim,
    que chove e faz frio.

    Mas, o frio atiça também a fome.
    E as crianças
    que moram nas margens do Capim-Puba
    não adquiriram a mesma destreza da rã,
    o mesmo faro do cão,
    e choram de fome.

    E um pai, bêbado e também faminto,
    bate, bate, até se cansar, na criança.
    E ela fica ali, faminta,
    soluçando.

    E a criança, com aquela força,
    que ela tem de amar e perdoar,
    fica perguntando
    por que aquele pai,
    que ela gosta tanto,
    bateu tanto
    bateu tanto nela e na mãe,
    quando a mãe a arrancou das garras do pai.

    Fica tingido neste papel
    que aquela noite, que choveu e fez frio
    terminou,
    com a força do sono
    chegando e anestesiando o casebre;
    e a criança, adormecendo,
    balbuciando estas perguntas,
    cantarolando
    esta doída cantiga-de-ninar.

    Os Sonhos e os Séculos – Adalberto Monteiro
    Círculo Azul Livros – Goiânia – 1991.

     Adalberto Monteiro, Jornalista e poeta. É da direção nacional do PCdoB. Presidente da Fundação Maurício Grabois. Editor da Revista Princípios. Publicou três livros de poemas: Os Sonhos e os Séculos(1991); Os Verbos do Amor &outros versos(1997) e As delícias do amargo & uma homenagem(2007).