Albuquerque gostava de ferramentas. Colecionava todas. Tinha desde o trivial – martelo, serrote, plaina, chaves de fenda, grifo – até furadeiras elétricas, bancada, profusão de parafusos, pregos, arruelas, porcas e tudo o que se podia imaginar.

      Não emprestava nada. Um vizinho vinha solicitar e ele era taxativo: não empresto.

      A mulher reclamava. Tudo bem não querer emprestar, mas precisa dizer assim "não empresto!"?

      – Você quer que eu diga o quê?

      – Sei lá. Inventa uma desculpa.

      – Não empresto.

      Um dia, para espanto geral da nação, Albuquerque emprestou.

      Carminha havia descido sorrateiramente à garagem em busca do martelo (planejava fixar, à revelia do marido, uma folhinha na parede). Abriu, com todo o cuidado de um epimeteu, a caixa de ferramentas e, nossa! Cadê o martelo?!

      Foi um alvoroço. As crianças foram interrogadas debaixo de ameaças terríveis. Dora Flora, sogra de Albuquerque, foi mobilizada. Viraram a casa inteira e nada do martelo.

      Seis da tarde, Albuquerque chegou. Todo contente, cumprimentou filhos e esposa. Fingindo satisfação, disse um "a senhora por aqui, dona Flora?".

      Todos olhavam-no apreensivos.

      – O que foi, gente? Quem morreu?

      – Albuquerque – começou temerosa Carminha -, senta aqui.

      – Desembucha logo, Carminha. Qué que aconteceu?

      – Sabe, eu tenho uma coisa triste pra te contar. É sobre seu martelo.

      – …?

      – É… bem… ele sumiu.

      De onde todos aguardavam uma trovoada, ouviram um "sumiu, não. Eu emprestei". E nunca se viram olhos tão arregalados e bocas tão abertas. Carminha só pode perguntar "emprestou pra quem" depois de uma não pouco demorada perplexidade.

      – Pra vizinha.

      – Que vizinha?

      – A vizinha nova. Cê não viu o movimento nesse final de semana? Teve mudança aí do lado.

      Carminha olhou para a mãe. A velha, com as mãos no colo, já tinha matado toda a charada e, do fundo de suas cataratas, comunicava à filha. Albuquerque, desviando-se do olhar da filha de dona Flora – que também já tinha manjado tudo -, levantou-se e disse:

      – Bom, vou tomar meu banho. Tem comida?

      – Não. – disse Carminha, seca e rápida.

      – Tudo bem, nêga. A gente faz um lanche.

      Revolta surda, mas geral. Desde quando não se armava fuzarca naquela casa por causa de janta atrasada? Ah, cachorro…

      – Calma, minha filha – era dona Flora, do alto de cinqüenta anos de chifres plantados por seu Nelson.

      – Isso não fica assim, mãe. Não fica assim – falava Carminha num choro contigo de revolta e amor ferido – Quer dizer que pro seu Joca ele não empresta, mas pra primeira sirigaita que aparece ele dá até o martelo.

      – Fala baixo, minha filha.

      – Que fala baixo o quê, mãe! Esse…

      Bateram na porta. Era a vizinha. Vinha devolver o martelo e agradecer ao "seu 'Quérque" – com érre carioca e tudo.

      Foi a conta. Carminha tomou o martelo da mão da loura e saiu quebrando toda a casa. Albuquerque saiu enrolado na toalha que, no primeiro embate com a mulher, foi ao chão, revelando barriga, ferramenta e as pernas finas. Os filhos refugiaram-se no quarto. Dona Flora tentava por deus e por tudo conter a filha. A loura, pasma, quedou-se estatuada na entrada da sala. A vizinhança juntou para ver o espetáculo.

      Dias depois, de cabeça enfaixada, Albuquerque ligou, da casa do Freitas, um amigo, para seu advogado:

      – É que, na partilha dos bens, Carminha quer porque quer ficar com as ferramentas, doutor!