Poderosas são as cartas:
ora nos anunciam que um filho nasceu;
ora nos comunicam que aquele irmão,
que morava distante,
o perdemos quando atravessava uma avenida.

Uma "carta"
quando as canetas eram a tinteiro
toda enlameada de azul
em virtude de uma chuva nos olhos.
(Lembra-te naquela tarde escaldante,
num bar a cerveja mornando num copo,
distante numa praça
o rumor de crianças brincando,
ela estendeu-te uma "carta".
Leste, letra a letra
como quem em si
vai enfiando alfinetes
ao final em desespero e desencanto,
murmuraste:
– "Que desgraça é o alfabeto!")

Uma "carta"
ao lado do que se matou:
nela os fatos que foram a fonte
da força de no peito
enterrar a bala.

No chão imundo de estação rodoviária
um saco de algodão
da Companhia de Correios e Telégrafos.
São lágrimas, risos, esperanças,
câncer e crianças:
uma mistura de tudo.
Um corrupto em códigos:
– "As coisas estão fáceis".
Um lavrador em prantos:
– "O sol e o banco roubaram-me tudo".
Um estudante dizendo "que passou".
Um nordestino dizendo
"que venceu em São Paulo".
Uma mulher:
– "Sou professora, solteira, virgem
e tenho 35 anos de fome feminina acumulada
para você que se casar comigo".

II

Tão Poderosas são as cartas
que os tiranos as violavam,
tornavam-nas adúlteras.
Mas, tal na natureza
determinados bichos
em virtude de muito perseguidos
mudam de cor e nome
assim também fizeram as cartas
podendo, cumprir sua sina, seu ideal:
de combater com palavras, mensagens,
a solidão
e a tirania das distâncias.

III

Poderosas são as cartas,
entretanto, frágeis.
– "Olho no mapa,
e como tua cidade é distante!
Quanto cerrado quanta serra,
quanto agreste, quanto sertão
terá está carta que vencer.
Talvez já bem próxima
venha se extraviar.
O carteiro com tantos avisos de cobrança
tantas felicitações de aniversário dos demagogos
aos seus eleitores,
venha deixá-la cair e, então,
em vez dela sentir os teus olhos
e os teus lábios levemente úmidos,
ela seja sorvida
pela água salobra dos mangues".


Os Sonhos e os Séculos – Adalberto Monteiro
Círculo Azul Livros – Goiânia – 1991.

 Adalberto Monteiro, Jornalista e poeta. É da direção nacional do PCdoB. Presidente da Fundação Maurício Grabois. Editor da Revista Princípios. Publicou três livros de poemas: Os Sonhos e os Séculos(1991); Os Verbos do Amor &outros versos(1997) e As delícias do amargo & uma homenagem(2007).