A onda
Não acreditava em mais nada. Já tinha passado por tantas eleições, tantas coisas, que já não punha fé em coisa alguma.
Acordou aquela manhã como acordara em todas as outras. E como acordaria em outras quaisquer, até nunca mais acordar. Levantou-se, sacudiu os cacos de sonho da fronha úmida – essa cidade! Assim, a sinusite nunca sara mesmo! – pôs a água para ferver, abriu cortinas e venezianas, deu bom dia ao papagaio mudo e foi ao banheiro.
Dentes escovados, roupa trocada – a suja posta no cesto -, foi preparar o café. O pó estava no fim, mas dava. Garimpou uns cacos de bolacha no fundo da lata, tirou a margarina da geladeira para ir amolecendo, e foi cuidar do loro – limpar os caquinhos, trocar o jornal, reabastecer as sementes de girassol. Enquanto isso, o leite esquentava.
Bandeiras passavam por sua janela. Cantos eram entoados, evocando primaveras há muito contidas. Enquanto triturava bolachas para misturá-las ao café-com-leite, observava o movimento sem nenhum pensamento.
Comeu a papa de biscoito água-e-sal com a única colher de prata da casa. Olha a dona do 65 como tá contente. Eita!, que a mulher tá mais enfeitada que carro alegórico! É adesivo, é bandeirola, é fita, é camiseta, sacola. Olha lá! A velha doida tá entregando santinho! E pode? Bão, isso é lá com ela.
Terminado o café, fechou o gás, as janelas, suplementou os girassóis e saiu.
– Já tem candidato?
Olhou a menina com curiosidade. Quantos anos terá? Dezesseis? Bonitinha. Que brinco é esse? Ah, foice e martelo. Ela falava que agora era pra valer. Olhar ansioso, bochechas rosadas, de sua boca pequena saíam palavras como soberania, democracia e um monte de coisas terminadas em ia, al, ira, ista, que ela não pôde deixar de admirar o vocabulário da menina.
Pegou o santinho. A mocinha agradeceu. Dirigiu-se à seção eleitoral com uma atenção acurada. Cada passo seu era administrado. Seu olhar buscava cada detalhe com obsessão: o cão deambulando pela rua; seu Joca com cara de nojo; o garoto degolando formigas; o casal indo votar de mãos dadas – na cintura dela, um cordão vermelho; no bolso traseiro dele, um adesivo.
Apertou o santinho na mão. Algo acontecia. E ela, por alguma disfunção talvez, ou por contaminação, queria participar daquilo.
Com o coração suspenso, o rosto pálido, a garganta seca, chegou diante da urna eletrônica. Ia apertar o anula. Mas não pode mais. Começou a digitar pelo 65. Terminou no 13.