Desafios para um novo Brasil sob o governo Lula
A análise que realizamos tem por base o pensamento político elaborado pelo PCdoB. Persistimos na compreensão de que devemos compor uma frente política visando alcançar nossos objetivos, frente que será mais ou menos ampla, conforme a conjuntura do momento – a essência da tática é a correlação de forças, mantendo os princípios e tendo flexibilidade na sua aplicação. A tática não pode ser radicalizada se não tiver uma base política ampla. Esta é a sua dialética: ampliar para radicalizar. Nosso desafio, portanto é construir a nova tática política para o novo cenário.
Luiz Inácio Lula da Silva foi eleito para mudar. Este foi o sentido principal da votação vitoriosa que recebeu. Em seu primeiro pronunciamento após o resultado eleitoral, Lula assumiu o “compromisso com a mudança” e reconheceu que “está nascendo um novo país” – isto é fundamental. Desde o 10º Congresso, em dezembro de 2001, o PCdoB concluía que o país estava vivendo o fim de um ciclo econômico, com repercussão social e política, e indicava a necessidade de um novo rumo para o país. O desfecho eleitoral confirma as conclusões e indicações do 10º Congresso.
A década de 90 representou para o Brasil um malogro maior do que a de 1980. Houve o agravamento de impasses históricos, como a vulnerabilidade externa, a crise persistente (que aparece como crise cambial), a economia estagnada, o aprofundamento da situação de desigualdade social. O final do ciclo também indica a falência do modelo neoliberal. A própria classe dominante se dividiu e se fragmentou. Com tal situação, novas forças sociais e políticas chegam ao governo central em um país com as dimensões e a importância do Brasil. Esse desfecho representou a maior derrota da agenda neoliberal no atual momento. Está aberta a possibilidade de um novo ciclo histórico para o país. Um novo projeto político e econômico, de caráter nacional, democrático e popular desenvolvimentista poderá ser implementado.
A fisionomia dos vitoriosos não foi de esquerda, mas teve caráter de centro-esquerda. Ocorreu em aliança com setores da classe dominante. Além disso, deu-se nos marcos institucionais vigentes, com a Constituição de 1988 modificada no que representou avanços dos direitos sociais e defesa da soberania nacional. O país vem sendo submetido a uma estruturação liberalizante, com regras impostas pelo grande capital financeiro. No cenário internacional, há um sistema de poder imperial norte-americano, hegemonista, belicista, unipolar, e as economias centrais diminuem seu ritmo de crescimento. O mercado externo não está favorável para o aumento de exportações e a obtenção dos superávits exigidos pelo Fundo Monetário Internacional.
Nestas condições, como aplicar o projeto nacional, democrático, popular desenvolvimentista? Será necessário um período de transição. Período que será caracterizado pela luta entre os que querem a manutenção do modelo atual e os que buscam o novo – as forças vitoriosas do processo eleitoral. Não está definido de antemão o resultado positivo para esta transição. Formam-se, desde já, dois blocos – um de apoio ao novo governo e outro de oposição. Terão que ser enfrentadas forças poderosas, que mantêm parcelas importantes do poder político, inclusive em estados como São Paulo e com significativa bancada no Congresso, e que concentram poder econômico de vulto nas mãos.
O PSDB está no centro das articulações das forças políticas conservadoras, opositoras; é o núcleo estruturante do bloco oposicionista ao governo Lula. O partido de Fernando Henrique Cardoso e José Serra foi o responsável pela estruturação da política neoliberal no país a partir dos anos 1990 e está interessado na manutenção do status quo e decorrente fracasso do novo governo. Pretende que o governo Lula seja superficial e medíocre, visando inclusive derrotá-lo nas próximas eleições.
No governo, a principal força dirigente é o PT, partido de Lula que se tornou a maior bancada da Câmara Federal e dobrou sua participação no Senado. O presidente do partido, José Dirceu, anunciou que a frente que apóia Lula já soma 211 deputados federais. A articulação governista é de centro-esquerda e deve ser ainda mais ampliada, constituindo um governo de frente e recompondo a aliança de esquerda para construir uma nova maioria política e garantir que seja levado adiante o programa de mudança.
O PCdoB é partícipe e construtor da política vitoriosa e é, portanto, parte integrante do governo. Nesta situação, não se coloca como “alternativa de esquerda” e nem fará o jogo da oposição de direita. Mas ser parte integrante não significa se fundir com o governo. Os comunistas manterão sua autonomia, assim como as organizações populares também devem contribuir para consolidar o novo governo, mas mantendo sua autonomia. Nosso papel é impulsionar as tendências mudancistas no novo governo.
Triunfo inicial do novo projeto
A vitória de Lula representa a evolução do processo histórico brasileiro, com a combinação de mudança e continuidade. A nova orientação tática para esta fase está em construção, está em desenvolvimento. Devemos ter por base a perspectiva de mudança para o novo modelo, com nitidez do objetivo a ser alcançado, flexibilidade e persistência na ação política. Por ser parte integrante do governo, o Partido é responsável pela construção e consolidação do projeto alternativo, de caráter nacional, democrático e popular desenvolvimentista. Esta perspectiva é realista, visa consolidar a vitória eleitoral alcançada e lutar pela mudança necessária – é o significado que tem a afirmação de Lula de que “não podemos errar”.
Precisamos deixar claro para a população o significado da herança perversa deixada por Fernando Henrique Cardoso para o novo governo. O país parte de uma situação de desmantelo, em profunda crise e perigo de insolvência. Grandes dificuldades se apresentam, com impasses estruturais e graves problemas conjunturais que exigem solução imediata.
Nosso objetivo é montar e construir um governo de reconstrução nacional. O principal desafio colocado hoje é retomar um novo ciclo de crescimento com bases novas e tomar iniciativas de caráter distributivo de renda. A questão do crescimento é nodal. O país deve retomar o desenvolvimento em novas bases, com crescimento sustentado. Para isso serão necessárias reformas políticas e econômicas democráticas, que abram caminho para o novo modelo. No aspecto político, as reformas devem ter por meta a ampliação da democracia e o fortalecimento das organizações partidárias e populares com a mais ampla liberdade. No que tange às reformas econômicas, elas devem definir novas fontes de investimento, baseadas no capital interno, na moeda nacional, estabelecendo novas prioridades que levem a uma política industrial de crescimento, de valorização das exportações e substituição das importações. As reformas tributária, previdenciária, etc. devem estar dentro desses eixos – da liberdade política e do crescimento com distribuição de renda.
Como atuar para garantir o novo caminho? A proposta mudancista pode ter a dinâmica de manter compromissos e contratos, como já foi assumido por Lula, mas questionando-os e preparando a nova alternativa. Precisamos estabelecer e manter o diálogo com os segmentos envolvidos no novo projeto para o país e, ao mesmo tempo, garantir a mobilização popular em defesa das conquistas econômicas, sociais e democráticas. Estes dois movimentos estão relacionados – sem a mobilização popular, o curso político pode se tornar adverso! Esta realidade vai exigir muito mais de nós. Está em jogo a construção de um novo projeto para o país, com expressiva participação popular.
Por onde começar? O país está vulnerável, com restrições internacionais importantes devido à ameaça de guerra e à tendência recessiva na economia mundial. O desenrolar dessa conjuntura determinará a necessidade de medidas mais ou menos intensas. Mas desde já está colocada a necessidade de baixar os juros, definir um nível mínimo para as reservas cambiais e negociar os índices de superávit primário assumidos com o FMI. Os juros básicos da economia estão em 21% ao ano, o que dá taxa de juro real aproximada de 13%. Respeitar os acordos, questionando seu conteúdo e preparando o terreno para implementar o novo projeto é um caminho que se apresenta viável no momento presente.
Estas posturas não significam rompimento de contrato. Até mesmo a Folha de S. Paulo, em editorial do dia 9 de novembro, apontou que “o ideal é alcançar, o quanto antes, outra política econômica mais propícia ao desenvolvimento do país”, diferente da receita do governo FHC de manter os juros elevados, o arrocho fiscal e a trajetória recessiva.
Comunistas no governo
O triunfo inicial do projeto nacional, democrático e popular desenvolvimentista é um evento marcante para o Brasil. Ele se insere entre os outros momentos significativos da nossa história política, tendo em conta as particularidades de cada período, que abriram caminho para uma nova época de progresso social, como a Independência, a Abolição da escravatura, a Proclamação da República e a revolução de 1930.
O PCdoB teve atuação marcante na realização deste momento. Foi um elaborador destacado do pensamento político vitorioso. O conteúdo deste pensamento é advogado pelo PCdoB há vários anos: a união das bandeiras da soberania nacional, democracia e direitos sociais – representados pela defesa da geração de empregos e valorização do trabalho –, colocando no centro da batalha a questão nacional. Desde o fim da ditadura militar o PCdoB peleja por essas bandeiras.
Outro aspecto saliente: a compreensão de que a vitória dessas bandeiras só se tornaria possível com a formação de uma ampla frente, de centro esquerda, apoiada por um movimento cívico e expressa numa candidatura que unisse a maioria dos brasileiros. Quem frisou e se bateu por essa concepção foi o PCdoB.
Os resultados de outubro também foram particularmente favoráveis aos comunistas. Mais de 9 milhões de eleitores votaram no número 65, os candidatos e a legenda do PCdoB, quando a grande onda era o voto no 13, do PT. Elegemos 12 deputados federais e 17 deputados estaduais, além do vice-governador do Piauí.
Ultrapassamos os 2% dos votos nacionais. São votos conscientes, pois o voto no 65 era mais difícil, menos divulgado – esta questão deve ser discutida nas futuras batalhas e relacionada com a reforma política que se pretende adotar no país.
É natural que uma participação tão expressiva na vitória se reflita e tenha sua conseqüência na formação do novo governo. É o que o próprio povo espera: que o PCdoB tenha um papel central, e não secundário, na aplicação do novo projeto, do novo rumo para o país.
Desafios partidários
A nova situação exige do Partido enfrentar novos e maiores desafios. Sua construção tem que levar em conta a orientação política adotada, as definições estratégicas, o desenvolvimento da luta ideológica e a ampliação de sua ligação com as massas.
A conjuntura política é qualitativamente diferente, e exige do PCdoB o cumprimento de novas tarefas. Estamos para construir um projeto nunca aplicado no Brasil, um projeto desafiador, mas possível, e uma luta ideológica está sendo travada. Trata-se de um projeto para o avanço do país, com desenvolvimento econômico e justiça social – e não “um passo atrás”, como tentam apresentar os ideólogos do neoliberalismo. Tal enfrentamento coloca a necessidade de uma ainda maior ligação dos comunistas com o povo, uma atuação voltada para a construção e fortalecimento da unidade popular para apoiar o governo e desenvolver seu novo projeto.
Quadros e militantes, melhor preparados e em maior número; crescimento da militância – as possibilidades de filiação e recrutamento são ainda maiores e a situação mais vantajosa após a vitória de outubro –; e presença mais atuante do Partido no movimento social são tarefas determinantes do atual momento. O Partido é um instrumento imprescindível para que o novo governo tenha sucesso e realize o novo projeto de um Brasil soberano, progressista, com desenvolvimento e justiça social.
Renato Rabelo é presidente do Partido Comunista do Brasil, PCdoB.
EDIÇÃO 67, NOV/DEZ/JAN, 2002-2003, PÁGINAS 6, 7, 8, 9