Em Busca de Novo Modelo
O tema da nação, sua construção em um mundo desde o começo internacionalizado, nossa capacidade de nos afirmarmos sem recusar a modernidade, constitui o “leitmotiv” de sua obra, reapresentado nesta nova contribuição. Sua preocupação maior – tal como na época em que ajudou a forjar, junto com Raúl Prebisch (a quem é dedicado o 6º capítulo do livro), o conceito de subdesenvolvimento e a travar as batalhas contra a teoria tradicional do comércio internacional, a âncora ricardiana maior da teoria do crescimento econômico – é rejeitar o “pensamento único”, hoje expresso na tese que apresenta a globalização como inevitabilidade. Tal como ontem, cabe construir nossa especificidade que, na teoria, deve corresponder e sustentar a luta da cidadania pelo seu lugar na nação, e desta no mundo. A atualidade desse esforço teórico não precisa ser exagerada.
Por meio de comparação com a Índia – cujas dimensões continentais, de pobreza, de desigualdade, cuja industrialização e diversificação produtiva notáveis autorizam o paralelo conosco –, Furtado procede a uma dissecação das causas da pobreza e da desigualdade no Brasil. Encontra-as na baixa taxa de poupança e sua combinação com a elevadíssima propensão a consumir das elites e classes médias enriquecidas, donde resulta que, se o nível de pobreza é mais contundente na Índia, as desigualdades são maiores no Brasil.
Furtado volta a explorar um tema que lhe é muito caro, especialmente tratado nas obras dos anos 70, ou seja, a denúncia do consumo supérfluo e obscenamente (o termo é meu) ostentatório das elites brasileiras, que esteriliza a já baixa poupança nacional. Talvez ele pudesse ter posto um acento mais grave na nova contradição entre o persistente aumento da produtividade do trabalho no Brasil, os baixos coeficientes de investimento e o alargamento das desigualdades. Mas isso está implícito todo o tempo: assim é a globalização na periferia.
O segundo capítulo, “Que Futuro Nos Aguarda?”, é um mergulho vertiginoso – talvez um dos mais completos e complexos do livro – nos dilemas e perplexidades, contradições e oportunidades de afirmar a nação em um mundo crescentemente mundializado, ainda que esta seja a característica central da expansão capitalista desde a época das grandes navegações e, subseqüentemente, do colonialismo moderno. Repassando as descobertas e invenções teóricas de que foi co-autor junto com a Cepal
(Comissão Econômica das Nações Unidas para a América Latina e Caribe) e com Raúl Prebisch, vale dizer, a oposição à onipresente e onisciente teoria do comércio internacional e sua filha fraca, a teoria do desenvolvimento, Furtado introduz uma crítica quase frankfurtiana, e certamente devedora do marxismo, ao modo autoritário e passivo (teria freqüentado Gramsci agora?) da industrialização brasileira.
Há, até mesmo, ecos de Walter Benjamin: “Que é o nosso subdesenvolvimento senão o resultado de repetidos soçobros na decadência?”. E põe o acento, para tentar corrigir essa espécie de atavismo do capitalismo na periferia (ele, que é reconhecido como o grande economista brasileiro de todos os tempos), na… política. O que pode parecer estranho à maioria de seus leitores e seguidores, mas não é nada surpreendente nesse discípulo de Max Weber – um dos maiores entre nós, junto com Sérgio Buarque de Holanda e Raymundo Faoro. A elaboração de uma interpretação do Brasil – em que história e teoria se dão as mãos –, aparece aqui como sua grande vantagem sobre os antigos liberais (“ma non troppo”), Eugênio Gudin e Roberto Campos, e os novos neoliberais, que nem sequer merecem menção – minha, não da parte de Furtado, que continua sendo muito elegante –, pois não têm estatura teórica nem cívica para medir-se com ele.
“As Raízes da Globalização” é um intermezzo para anunciar um ensaio de maior fôlego. Aqui, nosso autor repassa brevemente não o processo histórico em termos das ondas da mundialização, mas as tendências mais profundas da dinâmica capitalista, a saber, a secularização da idéia religiosa de progresso. Com mestria, reúne keynesianismo, suas leituras de Marx e de Weber e, o que não é tão novo nele – vale rever o seu “O Mito do Desenvolvimento Econômico” –, um tom adorniano de crítica à ilusão iluminista do progresso.
“As Duas Vertentes da Civilização Industrial” talvez seja o capítulo mais luminoso deste livro tão luminoso. Como um mestre flamengo, Furtado mistura em sua palheta contribuições de clássicos já consagrados com novos clássicos (Habermas, entre eles), a fim de decifrar o código da civilização industrial capitalista. A chave-mestra é, sem dúvida, weberiana.
Trata-se de estabelecer como a modernidade é grávida de racionalidade substantiva e racionalidade instrumental, e de como esta, se apossando da produção e reprodução do sistema, termina se impondo sobre a primeira. De como a acumulação de capital abarca e subordina os valores culturais e os transforma em bens culturais. De novo, uma sugestão bem próxima dos frankfurtianos, a velha dialética entre fins e meios. Destaque dado à periferia, onde a subordinação colonial e posteriormente imperialista – o termo é meu – sufocou a criatividade política, que se reproduz como mimetismo das elites e mandonismo local.
Em “A Responsabilidade do Economista”, Furtado revê seus próprios passos, desde os tempos do doutoramento na França, no imediato pós-guerra (na qual esteve como tenente voluntário da FEB; voluntário, aqui aparece outra vez uma das faces de sua profissão de fé republicana) até sua entrada na Cepal. É quase uma etnografia da formação de um economista na periferia: de como inicialmente uma suspeita, um desconforto com a inadequação dos modelos clássicos e neoclássicos frente ao presente da América Latina, se transforma na produção de uma teoria forjada pela união com a história, esteio de uma original contribuição à economia política de nosso tempo, a teoria do subdesenvolvimento.
Se ainda há jovens – que são insistentemente presentificados pela indústria cultural e tornam-se descartáveis em sua juventude – e se ainda há jovens que querem ser economistas, e mais, cidadãos,
aqui está a lição para o futuro.
“O Centenário de Raúl Prebisch” é nostalgicamente benjaminiano. Furtado rende homenagem àquele que exerceu provavelmente a maior influência em sua vida. Mas discretamente, como é de seu feitio, quase escondendo a emoção. Revê os dias iniciais da Cepal, em Santiago do Chile, onde se localizaria até o golpe militar que derrubou Salvador Allende, à época da empreitada política mais audaciosa da América Latina, juntamente com Cuba, forjando uma efervescência cultural que iluminou todo o continente. Naquela Santiago suave, aos pés do monumento dos Andes, onde o futuro parecia se desenhar, um pequeno grupo – todo o staff da Cepal, em 1948, não passava de dez funcionários – lutava contra o já poderoso império norte-americano, legitimado pela vitória na Segunda Guerra Mundial. A liderança brasileira, com Vargas, foi decisiva para evitar o sufocamento da Cepal, em seus dias iniciais, pelos EUA, que já controlavam a Organização dos Estados Americanos, verdadeiro “ministério das colônias” norte-americano. Lição que o novo presidente ou os ainda presidenciáveis devem aprender.
O economista argentino aparece com a aura de um refinado cavalheiro, aristocrático – tinha uma das maiores adegas de Santiago do Chile, num país produtor de excelentes vinhos –, heterodoxo, rebelde e… republicano. Permito-me reproduzir a lição de ética de Raúl Prebisch, citada por Furtado como resposta à sua indagação sobre por que não conseguira um bom emprego depois de sua demissão da direção do Banco Central argentino: “Que emprego? Eu havia sido durante anos diretor-presidente do Banco Central, conhecia a carteira de todos os bancos, pois havia ajudado a saneá-los, a ponto de poder administrar o redesconto pelo telefone. Quando me demitiram, muitos grandes bancos me ofereceram altas posições, mas como podia colocar meus conhecimentos a serviço de um se estava ao corrente dos segredos de todos? Preferi reduzir meu padrão de vida ao de um professor, o que não era muito”.
Essa também é a ética de Furtado. Ninguém nunca o viu oferecendo seu conhecimento das entranhas do Estado brasileiro ao setor privado, tendo sido ministro de Estado por duas vezes, diretor do BNDE e superintendente da Sudene. Que diferença com a promiscuidade de hoje, a venda de informações, o mapa da mina das privatizações, a formação de fortunas repentinas, a geração de novos banqueiros ex-funcionários!
O último capítulo seja talvez o mais inesperado. “O Que Devemos a Euclides da Cunha” – celebra o centenário do livro que Furtado considera a mais importante contribuição para o conhecimento do Brasil –, revela um autor dominando uma vasta paisagem que inclui o melhor da literatura brasileira. O que ajuda a responder a uma indagação, que correu mundo quando Furtado foi ministro da Cultura no governo Sarney: por que aceitara aquela função? Por sobre o anacronismo do estilo euclidiano, vazado num cientificismo positivista e numa antropologia de fatura colonialista, Furtado recupera o que houve de inovador na abordagem euclidiana: nasce uma interpretação, anti-racista, que aposta nas “raças tristes” como portadoras de futuro. Essa virada fará escola com os “demiurgos” da geração de 30, Gilberto Freyre, Caio Prado Jr. e Sérgio Buarque de Holanda. Seu próprio itinerário é euclidiano: do meio da escória da teoria do comércio internacional de extração ricardiana, e malbaratamento neoclássico, Furtado faz sair uma interpretação original, em que se combinam história e teoria.
Resumir este pequeno grande livro teria a desvantagem da mera repetição que não pode competir com o original. Tratei apenas de apontar aos leitores seus principais pontos. Não há, propriamente, nada de novo no livro de Furtado. O que ele mais provoca é espanto, com sua atualidade e com a atualização do autor, que incorpora novos autores que não estavam em seus textos clássicos, ampliando seu horizonte de observações e elaborações, trabalhando com mestria as conexões de sentido entre campos aparentemente tão distintos. Quando esta resenha for publicada, os candidatos ao segundo turno já estarão se preparando para enfrentar um novo e definitivo julgamento das urnas. Mas é então que será preciso ler este livro. A cidadania e a democracia brasileira precisam dele.
(publicado originalmente na Folha de S. Paulo, 12/10/02)
EDIÇÃO 67, NOV/DEZ/JAN, 2002-2003, PÁGINAS 80, 81