Entretenimento disfarçado de denúncia
Muito se falou sobre Cidade de Deus. Mas a maioria dos textos, seja os poluídos de adjetivos pouco significativos ou os empenhados em propor um olhar analítico, foi escrita no calor da hora. Refletiram visões apressadas, superficiais, apenas ideológicas ou exclusivamente estéticas. Estruturavam-se sobre argumentações feitas com as entranhas, com palavras e idéias vomitadas, sem o necessário filtro do distanciamento crítico. Não se pode cobrar muito mais de resenhas publicadas na imprensa.
Paridas na velocidade exigida pelo jornalismo e limitadas por um espaço incompatível com análises elaboradas, os caminhos tomados por essas opiniões esbarram no inevitável impressionismo de primeira hora. No caso em questão, houve uma agravante. Tendeu-se a tomar partido contra ou a favor, na maioria das vezes de forma inflamada. Não estamos tratando de um caso qualquer. Raridade na produção recente do cinema brasileiro, Cidade de Deus teve o mérito de estimular um debate de alta temperatura. Saiu da tela e caiu na vida. Travou diálogo com a sociedade, foi visto e comentado por políticos, teve mais de dois milhões de espectadores e tornou-se parte do cenário nacional. Esse fenômeno andava em extinção no país. Produzidos com dinheiro público, via renúncia fiscal, os filmes daqui não geram eco social. Existem timidamente apenas nos círculos intelectuais, asfixiados que são pelo mercado, esse segmento mediado pela lei da oferta e da procura, onde só importa a capacidade de lucro do produto audiovisual, não seu valor artístico ou seu caráter de sintoma cultural.
Cidade de Deus rompeu essa barreira. Motivou conversas de bares, pizzarias, churrascarias, salas de estar, restaurantes japoneses, saguões de cinema e salas de aula. Alavancou ainda bate-papos sobre a situação de penúria de nossas periferias e a respeito da violência disseminada pelo tráfico de drogas. Estimulou os brasileiros a falar sobre as margens da sociedade de consumo e das grandes cidades. Chegou a ser a questão central de três dias de debates em São Paulo, intitulados Cosmética X Estética da Fome, nos quais, a partir de um livro em preparação da pesquisadora carioca Ivana Bentes, discutiu-se a traição de suas opções formais e de sua postura política aos ideais do Cinema Novo. No início de outubro, o inevitável: foi escolhido para ser o representante brasileiro a uma vaga entre os cinco finalistas do Oscar de produção estrangeira.
Passado o clima de Fla-Flu das críticas, a exposição midiática do diretor Fernando Meirelles e os flashes espocados nas pré-estréias, talvez seja a hora de retornar ao filme. Principalmente porque, para muita gente, trata-se de O Filme. Na melhor temporada do cinema brasileiro dos últimos 10 anos, que coincidiu com a acentuada retomada de sua vocação para retratar os trágicos efeitos de nossos contrastes sociais, Cidade de Deus foi considerado o lançamento do ano. Talvez seja mesmo. Menos por sua estatura cinematográfica – afetada pela tensão resultante da convivência entre opções formais e conteúdo – e mais pela projeção por ele obtida.
por que essa projeção? Em primeiro lugar, pelo tema escolhido. O painel sobre a instalação/crescimento do tráfico de drogas em um bairro específico da periferia carioca, que na verdade simboliza todas as periferias e favelas das grandes cidades do Brasil, calou alto em uma população vítima da violência urbana e/ou paranóica em relação à mesma. Um assunto, como está se tornando chavão dizer, “urgente”. Essa urgência também teria levado o filme a saltar das salas exibidoras e ganhar o status de uma questão nacional da ordem do dia. Tornou-se um “dever cívico”, como chegou a escrever, em mais de uma oportunidade, assistir a Cidade de Deus. Também se tornou uma obrigação legitimar sua importância. Quem não fechasse com o filme estava contra o Brasil. Ou quase isso.
Temos aí um problema a ser abordado. Nenhuma obra ou mercadoria, nada na vida, sejam governos, governantes ou governados, são à prova de contestação. Em um país empenhado em consolidar sua democracia, em dar espaço para vozes, votos e pensamentos diferentes, às vezes em oposição uns aos outros, é salutar o choque de interpretações e recortes. Ainda mais no meio intelectual, sempre o primeiro a, coerentemente, clamar pela liberdade de expressão. Daí o espanto diante da reação de alguns intelectuais que, na volúpia por valorizar as qualidades de Cidade de Deus, gastaram tantas linhas para desautorizar as críticas ao filme, como se seus elogios não se bastassem em si mesmos. Como o conceito platônico de verdade única parece ultrapassado, a partir da filosofia moderna, todas análises são especulativas e não julgamentos exatos. As verdades ali expostas são uma possibilidade. Não a única.
Tendo isso em mente, vamos ao filme. Cidade de Deus é notável por sua habilidade técnica. Salta aos olhos a competência com que sua estrutura fragmentada, com quebras da narrativa e do tempo cronológico, é alinhavada pela montagem para compor um tecido com os retalhos. A mesma montagem estabelece, a partir desses mesmos retalhos, um dinamismo quase alucinante. O filme não anda. Corre. Às vezes, voa. Mesmo em cenas sem muita ação sente-se o pé no acelerador. Os planos são curtos. Enquadrados em ângulos imperfeitos para os padrões do cinema clássico, mas cheios de estilo para os padrões do cinema moderno, servem a uma estética adrenalinada e estroboscópica para construir o clima de tensão. Características assim também são identificáveis em filmes independentes americanos e europeus. Rompem com as convenções da produção de Hollywood, que mantém a câmera fixa, os atores no quadro e a história dentro de uma unidade narrativa, mas se encaixam nas convenções do cinema alternativo rentável. Isso o torna menos brasileiro?
O crítico e professor Paulo Emílio Salles Gomes acredita que, quando usado o cinema estrangeiro como modelo a ser assimilado como diretriz, o cinema brasileiro revela sua incompetência para copiar. E a incompetência como cópia, no final das contas, tornava o resultado brasileiríssimo. O raciocínio de Paulo Emílio tinha um fundamento. Sendo este país fruto de uma soma de culturas e influências, tudo lhe é estrangeiro e ao mesmo tempo familiar. Sua vocação antropofágica para deglutir a referência de fora e reprocessá-la com cores e raízes locais seria um dos vários caminhos na afirmação de identidade. Cidade de Deus nos remete ao conceito de Paulo Emílio. Se há cópia, como dizem alguns críticos, que o acusam de ser norte-americanizado na forma, a cópia é bem-feita. E essa sensação de termos alcançado o Primeiro Mundo, seja pela proeza técnica e narrativa, seja pela opção por uma estrutura da moda, pode ajudar a explicar as rações boquiabertas de muita gente. Mostramos ser capazes de fazer algo tão bem quanto eles. Não diferente, mas igual. Ou até melhor.
Há um outro aspecto, talvez dos mais fundamentais para o êxito do filme, que pede algumas linhas. Até quem não teve a oportunidade de ver o filme, ou simplesmente não se interessou por ele, deve ter ouvido elogios aos atores. Garimpados em grupos de teatro amador de comunidades carentes, eles se expressam física e verbalmente como se nem estivessem interpretando. Parecem viver em vez de representar. Dão verdade às suas imagens e palavras. À primeira vista, lembram os procedimentos, com intérpretes sem experiências de interpretação, do neo-realismo italiano. Mas há uma diferença de intenção e processo. Os diretores italianos queriam a espontaneidade da não interpretação, da ausência da técnica e da falta de composição dos personagens para se aterem à imagem do povo.
Ficava claro que eram amadores (os atores). Em Cidade de Deus, ao contrário, persegue-se a verossimilhança. Busca-se a competência da atuação para se chegar à uma sensação de espontaneidade gerada por artifícios de interpretação. E o efeito obtido pelo elenco é soberbo.
Estaríamos então assinando embaixo de quem considera esse filme tão comentado uma obra-prima?
Nada disso. Apenas é necessário ressaltar as qualidades de Cidade de Deus para diferenciar seus méritos como produto, cujo trabalho especificamente técnico é primoroso, de sua estreiteza política e de seu equívoco estético. Porque aqui estamos diante de um filme cujo erro está exatamente em querer se mostrar quase o tempo todo como muito bom. Tanto o ritmo acelerado quanto as firulas da montagem são inibidores de uma relação racional e reflexiva com os fatos projetados na tela e incentivadores de uma entrega acrítica a cada uma daquelas imagens. Alienam em vez de conscientizar. Entretêm em vez de promover confronto. Reproduz a histeria da sociedade industrial, com sua ameaça ao pensamento, minado pela idéia de ação permanente.
Essa sensação de estarmos sendo seqüestrados para um passeio, e não convidados a acompanhar um percurso, é ressaltada pela recorrência de situações anedóticas, seja por meio da narração em off ou dos diálogos. Truques para distração. Panos quentes para a tragédia.
Também é questionável, para dizer o mínimo, o recorte proposto. O misto de favela e conjunto habitacional, cenário do painel sobre o recrudescimento do tráfico esboçado pelo roteiro baseado em livro de Paulo Lins, deixa coisa em excesso de fora da tela. Não se vê as famílias, a batalha épica do cotidiano de quem não cai no crime, as dificuldades de se morar naquela geografia, o papel das mulheres na comunidade para além de namoradinhas dos traficantes e a vida daquelas pessoas fora dali. Em Cidade dos Homens, a minissérie em quatro capítulos exibida pela Globo, essas distorções foram, ao menos parcialmente, corrigidas pelos roteiros. A favela torna-se, no produto da TV, uma personagem. Tem sua vida, revela seu odor, mostra-se no dia-a-dia. Sublinha dessa forma a humanidade dos personagens. Eles não são bandidos ou vilões. São gente na batalha da sobrevivência.
Em Cidade de Deus, ao contrário, o olhar é maniqueísta. Criminosos já nascem com o sangue ruim, como se carregassem o gene do mal, desvinculados de razões pessoais e de contexto. Não existem como personagens, com pensamentos e conflitos, mas apenas em função das atitudes. Assim, soltas. Sendo um panorama sobre o aumento de poder do tráfico na Cidade de Deus, iniciado nos anos 60 e encerrado nos 80, sente-se ausência de alguma amplitude histórica. Estamos nos tempos da ditadura e do milagre econômico, justamente o período no qual o Estado, então dedicado a prender, torturar e matar comunistas, abriu as portas para as periferias serem governadas pelo crime e pelas drogas. O filme ignora isso. Poderia se passar, como está na tela, em qualquer época. Pois sem esses compromissos, o mínimo de rigor com o mundo onde se situa e ao qual pretende retratar, vemos apenas entretenimento. E muito eficiente nesse sentido.
Cléber Eduardo é crítico de cinema e prepara livro sobre a inclusão dos excluídos no cinema brasileiro.
EDIÇÃO 67, NOV/DEZ/JAN, 2002-2003, PÁGINAS 77, 78, 79