A transição é um fenômeno dialético e, assim, reveste-se de importância teórica.
Ao trabalhar com os elementos do movimento em várias ocasiões, e através de muitos exemplos, Marx, Engels e Lênin tiveram o cuidado de evidenciar as particularidades deste aspecto do movimento.
Nas inter-relações entre as leis da dialética – unidade e luta dos contrários, das transformações quantitativas em qualitativas e a negação da negação – o processo evolutivo e transitório é destacado como parte do movimento.

No processo do movimento dos fenômenos, o nascimento do novo se dá do desgaste do velho, existindo um processo transitório de consolidação dos aspectos novos na medida em que se desgastam os elementos velhos e ultrapassados. Isto ocorre de maneira interdependente, ou seja, os elementos do novo, ao se fortalecerem, vão dando por desgastados os elementos do velho.
E já que a realidade é una, os aspectos do novo vão formando a realidade qualitativamente nova desgastando os elementos de uma velha realidade.

Nos Cadernos Filosóficos Lênin ao estudar o livro de Hegel Ciência da Lógica destaca uma citação cujo conteúdo se refere ao processo evolutivo etransitório:
“Mas o outro não é, essencialmente, o negativo vazio, o nada, aquilo que é tomado como resultado habitual da dialética, mas é o outro do primeiro, o negativo do imediato; portanto, ele está determinado como o imediato – contém, em geral, em si a determinação do primeiro. O primeiro é, assim, essencialmente conservado e mantido também no outro. Reter o positivo no seu negativo – o resultado da pressuposição –, no resultado, é isto o mais importante no conhecer racional; simultaneamente faz parte da mais simples reflexão convencer-se da absoluta verdade e necessidade desta exigência e, no que diz respeito aos exemplos para o demonstrar, a lógica toda é nisso que consiste”. (Lênin, Cadernos Filosóficos. In: Obras escolhidas. Tomo 6. Lisboa: Avante, 1989. p. 203)

Essa citação destacada por Lênin da compreensão do processo dialético revela, em primeiro lugar, que no processo de desenvolvimento existe uma base de continuidade sobre a qual se processa o novo, na realidade não existe um abismo, um hiato, entre os novos elementos que se fortalecem; e os velhos elementos que se desgastam, em segundo lugar, nos chama atenção para o fato de que convivem concomitantemente no processo em dados momentos o velho e o novo.
Lênin destaca em outra passagem as conclusões de Hegel sobre os elementos que compõem a análise dialética:

“1) A objetividade da observação (não exemplos, não desvios, mas a coisa em si própria).
2) Toda a soma das variações, relações desta coisa com as outras.
3) O desenvolvimento desta coisa (fenômeno respectivo), o seu próprio movimento, a sua própria vida.
4) As tendências (e aspectos) internamente contraditórias nesta coisa.
5) A coisa (o fenômeno, etc.) como soma e unidade dos contrários.
6) A luta respectiva ao desenvolvimento destes contrários, impulsos contraditórios, etc.
7) União da análise e da síntese – a decomposição em partes isoladas e a soma, a adição destas partes.
8) As relações de cada coisa (fenômeno, etc.) não só são variadas, mas gerais, universais. Cada coisa (fenômeno, processo, etc.) está ligada com todas as outras.
9) Não só unidade dos contrários, mas também a transição de cada determinação, qualidade, traço, aspecto, propriedade, para cada outro (para o seu contrário?).
10) O processo infinito de descoberta de novos aspectos, relações, etc.
11) O processo infinito de aprofundamento do conhecimento pelo homem da coisa, dos fenômenos, dos processos, etc., dos fenômenos à essência e de uma essência menos profunda a uma essência mais profunda.” (Idem, p.199)

Nessa citação destacada por Lênin, em seu estudo d’A ciência da lógica de Hegel, se destaca sua preocupação em determinar como o pensamento humano decifra o enigma do movimento e daí retira uma compreensão dialética do fenômeno.

Quais decorrências podem ser aferidas, então?

A primeira delas é que a análise do fenômeno ou processo tem sua base na objetividade, ou seja, o fenômeno possui suas particularidades e existência objetiva. No entanto, diferente da concepção metafísica, a dialética nos revela que os aspectos objetivos ultrapassam o que – na aparência – o fenômeno revela. Tais elementos por si só não dão conta da essência do fenômeno. É preciso entendê-lo nas suas múltiplas determinações como nos revela a lei da conexão universal entre os fenômenos, ou seja, nas relações necessárias que este fenômeno desenvolve com outros, os quais determinam também seu movimento interno e sua própria existência e processo.

O segundo aspecto é que os fenômenos ou processos são formados por tendências contraditórias, ou como diz Hegel, impulsos contraditórios, e que esta unidade de contrários se completa com a transição em movimento de transformação. O que determina as tendências de um determinado processo é o processo mesmo que contém dentro dele as suas próprias possibilidades; no entanto, estas possibilidades vão se tornando realidade na medida em que se efetivam.

Assim, necessidade na dialética representa a tendência contida na essência do fenômeno e que determina as suas possibilidades concretas e objetivas de transformação, sempre lembrando que as necessidades não operam na realidade de forma simples e direta – os fenômenos na sua inter-relação engendram novas necessidades e possibilidades.

È aqui que uma categoria da dialética se reveste de importância e nos ajuda a entender melhor os processos de transição, a categoria em questão é a que revela a relação entre realidade, possibilidade e necessidade.

Destaca Lênin, nos Cadernos Filosóficos: “O conjunto, a totalidade, dos momentos da realidade, que no seu desdobramento se mostra como a necessidade” (p.145) “(…) realidade, possibilidade e necessidade constituem os momentos formais do absoluto. A necessidade real é (…) ligação com o conteúdo. (…) Esta necessidade, porém, é simultaneamente relativa” (pp.144-145)
Sobre as possibilidades que um determinado fenômeno ou processo que a realidade possa conter, ele destaca no mesmo texto: “Se isto é possível ou impossível, depende do conteúdo, isto é da totalidade dos momentos da realidade, que no seu desdobramento se mostra como necessidade”. (p.145)

As categorias da dialética materialista traduzem aspectos das leis essenciais do desenvolvimento objetivo dos fenômenos e processos.

No curso de seu desenvolvimento, o que nasce não se afirma de um só golpe. Ao princípio não é mais do que uma possibilidade. A possibilidade de nascimento e desenvolvimento deste ou daquele fenômeno depende de uma série de condições. Se estas condições se concretizam, a possibilidade se transforma em realidade.

A possibilidade dos fenômenos e sua realidade se diferenciam pelo fato de que a possibilidade é, apenas, premissa necessária para o desenvolvimento dos fenômenos, ao passo que a realidade já é uma possibilidade realizada.

A categoria possibilidade fixa justamente o estado, o grau de desenvolvimento dos objetos e dos fenômenos, quando não são ainda realidade, mas apenas tendência possível do desenvolvimento. No entanto, é preciso distinguir a possibilidade formal, abstrata, da possibilidade real, concreta.
Do ponto de vista da possibilidade formal “tudo é possível”, porque a possibilidade formal ou abstrata não se baseia em condições concretas, reais, que tornem – baseadas na essência, ou conteúdo do fenômeno – sua transformação em realidade necessária.

Hegel ao levantar esse aspecto do movimento destacou que “é possível que esta noite, a Lua caia na Terra, uma vez que a Lua é um corpo separado da Terra e pode também, por isso, vir abaixo como uma pedra que se atira para o alto; é possível que o sultão da Turquia se faça Papa, uma vez que é homem e, como tal, pode converter-se à fé cristã, fazer-se frade católico, etc.”. (p. 35).

Como depreendemos dos exemplos de Hegel, as possibilidades formais são ocas, vazias e formalistas porque não possuem fundamento concreto algum na realidade.

Para que a possibilidade tenha conteúdo real, é necessário que possua raízes na própria realidade, que tenha existência objetiva, que todo o conjunto de condições a faça real.

Não se pode confundir a possibilidade com a realidade, uma vez que do ponto de vista metodológico isso leva a uma compreensão incorreta do momento e, por conseguinte, também à fixação incorreta de análise e das tarefas práticas.

A dialética materialista prescreve não apenas o comprovar tal ou qual processo, mas também compreender as condições necessárias para fazer dessa possibilidade uma realidade – ela acentua o papel imenso da prática, da luta que se desenrola no curso dessa transformação.
A possibilidade do novo, do progressivo, opõe-se à possibilidade de manutenção temporal do velho, de uma vitória passageira dos elementos retardatários.

A possibilidade do desenvolvimento do novo não pode jamais se converter em realidade sem a luta entre o novo e o velho, entre as possibilidades de real mudança e as possibilidades de manutenção do essencial contido no velho.

Essa categoria reforça a compreensão do processo de transição contido no movimento dos processos e fenômenos, e demonstra também que o materialismo dialético não tem nada em comum com o fatalismo, segundo o qual se deve esperar simplesmente que a tendência necessária do desenvolvimento se transforme ela mesma em realidade – já que as leis mais gerais, econômicas, sociais, políticas ou da natureza, determinam essa tendência. As leis objetivas criam uma possibilidade real, possibilidade que se trata de se transformar em realidade.

Este instrumental filosófico e metodológico da dialética é fundamental para a análise das possibilidades reais e formais, das possibilidades no campo da análise de todos os fenômenos, inclusive os políticos.

Transição atual

Vivemos, com a vitória de Lula, um intenso debate acerca do caráter do novo governo – seu conteúdo e suas possibilidades em realizar um projeto de desenvolvimento para o país que se baseie na defesa da soberania nacional, da democracia e do resgate dos direitos dos trabalhadores e do povo.
A eleição de Lula traz à cena política um intenso debate sobre o novo e as mudanças, já que sem dúvida representou o anseio das mudanças concretizado nas urnas.

Compreensões contraditórias acerca deste novo processo começam a aparecer no debate, tendo como objetivo imprimir idéias e determinar ações. Se não por outros motivos, nos defrontamos com um debate teórico de extrema importância.

Destaco aqui pelo menos duas visões idealistas e esquemáticas que já aparecem delimitadas. Uma primeira defende que no processo de mudanças o novo e progressista se instaura instantaneamente. Como se a realidade herdada perdesse imediatamente seu caráter objetivo, como se tivesse sido totalmente derrotada e o velho automaticamente se dissolvesse sem processo algum – e uma nova realidade nacional e internacional tivesse surgido e se completado objetiva e inteiramente. Aqui o novo já é realidade e, sem contradição ou empecilho, somente se fortalecerá – e se isso não ocorrer tal qual está determinado seria por mera falta de vontade subjetiva.

A segunda, um pouco mais tímida, mas também importante, é a que pretende imprimir ao processo de transição um caráter permanente e indefinido, como se isso fosse possível. Transforma a transição em objetivo e não a vê como um processo que, a depender de como se desenvolva, vai dando à realidade seus contornos. O perigo dessa concepção é ir se conformando com os aspectos da realidade que fortalecem o velho, impondo uma inoperância à ação prática.

No processo de transição, as tendências de construção do novo somente se fortalecem se, paulatinamente, com base nas possibilidades objetivas e não formais, se enfraqueçam as velhas tendências de permanência. Sem isso a construção do novo é apenas intenção anunciada, porém sem concretização na realidade.

O processo de transição é um processo complexo e contraditório, no qual as possibilidades vão sendo construídas e não são dadas totalmente a priori. A análise do conteúdo, da correlação de forças, das múltiplas determinações objetivas, que a realidade em seu desenvolvimento engendra, vai determinando as contraditórias possibilidades e caminhos da ação prática para a construção do novo no sentido progressista. Requer ação política dialética e materialista, negando o subjetivismo e o esquematismo.

Aqui se separam a correta compreensão dialética do movimento dos processos e dos fenômenos daquelas que, em nome das mudanças, emperram a sua concretização.
A transição exige análise permanente que determine, na complexidade da realidade e em seu movimento contraditório, os caminhos de ação consciente e vá abrindo e fortalecendo as possibilidades de construção de um novo projeto para o país, em meio a tendências contrárias a sua concretização. As análises do desgaste objetivo e subjetivo do projeto neoliberal demonstram que existem também as tendências subjetivas e objetivas para a concretização de um novo modelo de desenvolvimento que vá derrotando na prática o neoliberalismo e transformando a realidade do nosso país.

Madalena Guasco Peixoto é professora doutora da PUC-SP e membro do Comitê Central do PCdoB.

EDIÇÃO 67, NOV/DEZ/JAN, 2002-2003, PÁGINAS 51, 52, 53