A vitória de Luís Inácio Lula da Silva para a presidência da República recoloca o país, de certa forma, em uma situação semelhante à da eleição de 1962. A comparação entre as duas eleições é lícita porque, apesar das enormes transformações vividas pela sociedade brasileira nestas quatro décadas, os resultados de ambas sinalizam a exigência de mudanças e permitem a criação das condições institucionais capazes de viabilizá-las. Mudanças que ainda estão por fazer, como as reformas agrária e urbana, ou que foram feitas pela direita, de um ponto de vista conservador, aprofundando a dependência e a presença e o domínio do capital estrangeiro e da oligarquia.

AQUELA foi uma eleição parlamentar e para governadores estaduais – a última realizada antes do golpe militar de 1964, e cujos resultados também demonstraram o desejo de mudanças do eleitorado. O presidente era João Goulart, do Partido Trabalhista Brasileiro, um político progressista, mas limitado, ligado aos sindicatos e aos trabalhadores, eleito em 1960 como vice de Jânio Quadros e que assumiu o governo após a renúncia do presidente, em 1961. Goulart, que governava sob o regime parlamentarista imposto pelos militares depois da renúncia de Jânio, simbolizava para muita gente a possibilidade de reformas de base para colocar o país na senda do desenvolvimento autônomo e soberano. Era uma pauta extensa de reformas vistas como necessárias para a modernização do país.

Entre elas, destacava-se a reforma agrária, num conjunto que incluía a renegociação da dívida externa, o controle da remessa de lucros das empresas estrangeiras e regulamentação do ingresso do capital estrangeiro no país, as reformas urbana, administrativa, bancária, da previdência social, da educação, a regulamentação do direito de greve, a nacionalização das concessionárias de serviços públicos, etc.

Na eleição de outubro de 1962, pela primeira vez o Partido Trabalhista Brasileiro ameaçou o domínio dos partidos da oligarquia, a União Democrática Nacional (UDN) e o Partido Social Democrático (PSD) ao alcançar expressiva votação e eleger uma bancada federal de porte semelhante ao das agremiações conservadoras. Entre os 409 deputados eleitorais, o PSD elegeu 122, o PTB chegou em segundo lugar com 97, e a UDN elegeu 96. Para o Senado, o resultado foi semelhante: o PSD elegeu 23 senadores, o PTB 18 e a UDN 17. Além disso, as forças progressistas elegeram um de seus principais líderes, o prefeito de Recife, Miguel Arraes, para o governo de Pernambuco, que tradicionalmente era dominado por uma oligarquia atrasada com raízes fincadas no passado colonial.

Os resultados de 1962 mostraram, também, uma tendência à queda na votação dos partidos tradicionais, e no aumento da preferência do eleitorado pelo PTB e pelos blocos interpartidários, apontando para o enfraquecimento dos partidos até então dominantes. A queda destes, de 1945 a 1962, foi acentuada. Em 1945, o PSD teve 42% dos votos, contra 26% da UDN e 10% do PTB; em 1962, a votação destes partidos equiparou-se à do PTB: o PSD teve 15% dos votos, a UDN, 11% e o PTB 12%. Juntos, os três maiores partidos tiveram apenas 38% dos votos (contra 78% em 1945), enquanto as coligações interpartidárias (a direitista Ação Democrática Parlamentar, ADP, e a progressista Frente Nacional Parlamentarista, FPN) tiveram, somadas, 41% dos votos.

Os conservadores encararam o resultado daquela eleição como uma senha. O então coronel Golbery do Couto e Silva, um dos principais articuladores da frente de direita que levou ao golpe militar de 1964, assinalou que aqueles resultados indicavam uma tendência esquerdista no eleitorado contra a qual – de seu ponto de vista – não havia saída eleitoral.

Em 2002, como havia em 1962, há a esperança de que o controle do governo federal – naquela época sob João Goulart, hoje sob Lula – seja a garantia de que serão tomadas iniciativas para mudanças democráticas, políticas, econômicas e sociais; garantia ampliada pelo crescimento das bancadas comprometidas com as mudanças. Mas hoje a situação das forças progressistas é melhor, como mostram as diferenças significativas entre as duas épocas. Se, em 1962, o Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), que era o partido de Goulart e ligado aos sindicatos e aos trabalhadores, chegou em segundo lugar, e isso foi visto como ameaça por analistas da direita, hoje quem chega em primeiro lugar é a Frente Lula Presidente que elegeu o presidente da República e fez o maior número de deputados federais: o PT elegeu 91 que, somados aos eleitos por seus aliados (26 do PL, 12 do PCdoB e um do PMN), compõem uma bancada de 130 parlamentares na Câmara Federal – isto é, a quarta parte entre aqueles mandatários.

Outra diferença: esta eleição leva à presidência da República, em aliança com o PCdoB, o PL, o PMN e o PCB, o líder sindical que emergiu das greves de 1978/1980 e do movimento social que se formou em torno delas e gerou seu partido, o PT. Esta mudança de qualidade faz a singularidade da vitória de Lula: agora, pela primeira vez na história de nosso país, o governo federal será exercido por uma liderança operária, por um dirigente sindical que se formou nas lutas contra as classes dominantes e contra o modelo de desenvolvimento que favorece seus interesses e privilégios. Um governo no qual as forças populares, democráticas e nacionais não serão meras coadjuvantes, mas sim as principais protagonistas.

A eleição de 1962 foi uma espécie de estopim para a santa aliança da alta burguesia industrial e financeira, agentes do imperialismo (inclusive com a participação direta da CIA, o serviço de espionagem dos EUA), latifundiários, oficiais militares, e alto clero, reacionários, intelectuais antidemocráticos, entre outros setores conservadores. Ela foi, assim, um momento importante que ativou a conspiração direitista cujo resultado foi o golpe militar de 1964. A encruzilhada histórica que o Brasil vivia então foi ultrapassada pela direita, com a instauração da ditadura militar e o início de um período que, muito justamente, ficou conhecido como "anos de chumbo".

Ao assumirem o controle completo do governo e do Estado, aquelas forças conservadoras, cujo declínio eleitoral havia sido sinalizado em 1962, impuseram graves perdas aos trabalhadores, destruíram a democracia e aprofundaram a aplicação do modelo de desenvolvimento dependente e deformado do país.

Mas seu regime não foi tranqüilo. Ele foi marcado pela resistência popular e por contradições entre as classes dominantes, e entre os próprios chefes militares, e só persistiu por 20 anos à custa de prisões, perseguições políticas contra os adversários, torturas e assassinatos de democratas, patriotas e progressistas que passaram a ser encarados como "inimigos internos". A ditadura entrou em crise em meados da década de 1970, sendo finalmente derrotada depois da campanha das Diretas Já e com a eleição de Tancredo Neves, em 1984.

Para os trabalhadores, democratas e nacionalistas, esta transição se completa agora, com a eleição de Lula. Uma transição que tem a marca das grandes jornadas de massa iniciadas com o renascimento do movimento estudantil, em 1977; das greves operárias de 1978, 1979 e principalmente 1980, que golpeou duramente o projeto de abertura controlada dos generais; da explosão cívica representada pela campanha das Diretas Já.

Mas a transição democrática deu-se em ritmo lento – pactuada com as forças então dominantes -, onde qualquer pequeno avanço era alcançado duramente, depois de muita luta. E que teve avanços e recuos. Nela, as forças sociais conservadoras, que sustentaram a ditadura, conseguiram manter uma expressão política com força suficiente para condicionar e moldar os passos seguidos e imprimir um rumo vacilante e sinuoso à consolidação da democracia no país.

Apesar de repudiadas nas ruas pelos milhões que exigiam Diretas Já, o poder que essas forças conseguiram manter permitiu-lhes controlar o Congresso, limitar o alcance da Constituição de 1988 e impor-se à presidência da República. Tiveram novo alento com a eleição de Fernando Collor de Mello, em 1989, mas foram outra vez derrotadas pelas ruas com a exigência do impeachment do presidente, em 1992. Foi, contudo, uma derrota temporária. Elas voltaram ao poder federal em 1994 trazendo uma moeda como bandeira, o real, portada por um antigo expoente do campo democrático, Fernando Henrique Cardoso. Mas como coadjuvantes em uma aliança conservadora cujo núcleo era formado por forças liberais, expressas pelo próprio presidente e pela equipe econômica que implantou a orientação do FMI e do Consenso de Washington.

As próprias vitórias de Collor e FHC sinalizaram paradoxalmente que aquela elite claudicava e estava historicamente ultrapassada. Nem Collor nem FHC eram, propriamente, membros daquela elite dominante – o primeiro foi um aventureiro, um out-sider em torno do qual a classe dominante se uniu, em 1989, amedrontada pelo espectro de Lula, do proletariado e do socialismo. O outro era uma liderança egressa da luta contra a ditadura e que aceitou o inglório papel de "anti-Lula" nas eleições de 1994 e 1998. A união das classes dominantes em torno do "anti-Lula" foi uma espécie de reconhecimento às avessas de sua própria impotência e da importância do candidato das forças populares.

O declínio conservador é também registrado pelos resultados da eleição do último 27 de outubro, onde caciques da direita, como Paulo Maluf, Fernando Collor de Mello, Gilberto Mestrinho, entre outros, foram afastados do cenário político e outros, como Antônio Carlos Magalhães e Jorge Bornhausen, foram reduzidos à expressão regional. Todos os principais partidos da aliança política que sustentou Fernando Henrique Cardoso tiveram as bancadas reduzidas: em 1998, o PDSB elegeu 99 deputados, e caiu para 71 em 2002, perdendo 28; o PFL perdeu 22, passando de 106 eleitos em 1998 para 84 agora; o PMDB passou de 82 para 74, perdendo 8. O núcleo da "base governista" perdeu assim, entre 1998 e 2002, um total de 58 parlamentares.

O volume plebiscitário dos votos obtidos por Lula – mais de 52 milhões e 61% do total, junto com o forte crescimento dos setores progressistas na Câmara Federal e nas Assembléias Legislativas – fortalece a convicção de que esta eleição completa a transição democrática para os trabalhadores, democratas e nacionalistas. E abre um período novo para o país, sinalizando a possibilidade concreta do início do trânsito para um outro rumo de desenvolvimento baseado na retomada do crescimento da economia, no fortalecimento do mercado interno e no atendimento das necessidades dos trabalhadores e das empresas brasileiras. E aponta para o início da reconstrução nacional baseado em um programa nacional democrático e popular.

Fala-se muito em transição, e esta é uma palavra difícil, pois descreve múltiplos conteúdos ligados à mudança, sem definir o ritmo, a velocidade ou a amplitude desse movimento. Há a transição que está no noticiário, entre os governos FHC e Lula; há a transição, exigida pela sociedade brasileira, do modelo neoliberal para um novo rumo de crescimento para o país. Há também, como se referiu mais acima, transições mais extensas no tempo, como aquela iniciada pela derrota da ditadura militar em 1984 e que se fecha agora, em 2002.

Por isso é importante precisar, quando se fala em transição, qual é o movimento real e concreto de que se trata. Só assim pode-se flagrar o jogo contraditório entre o novo e o velho que caracteriza todo período de mudança, onde o velho fenece lentamente, perde forças, mas resiste ao desaparecimento, e onde o novo emerge, se fortalece, ganha confiança, muda consciências e modos de ser, agir e sentir, até finalmente impor-se.

A compreensão desta convivência conflitiva, e contraditória, entre o velho e o novo é necessária para a compreensão do ritmo das mudanças que o governo da Frente Lula Presidente irá promover. As contradições entre o que sai e as forças que assumem o controle da presidência já se manifestam desde o início da campanha eleitoral de 2002. Com a eleição, a transição toma corpo podendo-se, como assinalou Renato Rabelo, distinguir três fases: a primeira vai da eleição até a posse; a segunda compreende o período em que o novo governo tomará as medidas para a mudança do modelo econômico; a terceira fase terá início com a implantação das iniciativas para desmontar o modelo neoliberal e iniciar a construção de um novo rumo para o país.

Neste quadro conflitivo, chegou-se a apregoar a necessidade do sucessor (fosse qual fosse, dizia-se) manter Pedro Malan e Armírio Fraga como garantia da continuidade da política econômica. Depois, apregoou-se, simplesmente, a necessidade da manutenção daquela política, fosse qual fosse a equipe econômica do novo governo. O próprio Fernando Henrique Cardoso juntou-se a esse coro, apregoando as "virtudes" de sua política. Depois da eleição de Lula e do anúncio da busca de um pacto social, o presidente passou a repetir que não há transição nem pacto fundacional, pois trata-se apenas da mudança de governo, e não de regime. Num encontro com exportadores, no Rio de Janeiro, no dia 24 de outubro, quando a vitória de Lula já estava configurada, FHC garantiu que as mudanças econômicas que implantou desde 1994 têm tamanha força que fica difícil a seu sucessor "cumprir o que disse que faria" não podendo, assim, promover as esperadas transformações profundas no modelo econômico. –

Mas, apesar da vontade de FHC e de sua falta de cerimônia em apresentar-se também como vencedor desta eleição, não se pode evitar falar numa transição que foi escolhida maciçamente pelos brasileiros ao eleger Lula. Não há como fugir da realidade, como indicam alguns analistas, de que a derrota de Fernando Henrique e de seu projeto neoliberal foi ampla. Para o cientista político David Fleischer, da Universidade de Brasília, a eleição foi um "referendo negativo do governo", no qual os "três grandes partidos de apoio ao presidente – o PFL, o PMDB e o PSDB – caíram". Outro comentarista, o ex-ministro Luís Carlos Bresser Pereira, que foi ministro de FHC e é um expoente do PSDB, foi taxativo ao reconhecer esse fracasso: quem derrotou Serra foi o "desempenho econômico do governo, que foi muito ruim". Mesmo historiadores marxistas estrangeiros, como Eric Hobsbawn ou Perry Anderson compartilham desta unanimidade. Para Hobsbawn, "a eleição de Lula é uma conseqüência direta da aplicação de reformas do FMI, do fundamentalismo de mercado, ao Brasil". Perry Anderson faz uma análise mais dura e desqualifica mesmo a pretensa novidade democrática da passagem do cargo de um presidente eleito para outro. Classificando a pretensão de FHC de atrair capital estrangeiro através da desregulamentação e da privatização, base de sua política econômica, como "extraordinariamente ingênua e provinciana", ele diz que a transmissão do cargo de um presidente eleito a outro também eleito, "longe de constituir um fato notável do Brasil, é uma banalidade regional". Isso já ocorreu, com regularidade, lembra, no Chile (de Patrício Aylwin para Eduardo Frei e depois para Ricardo Lagos), no Uruguai (de Mio Sanguinetti para Luis Alberto Lacalle, depois de novo para Sanguinetti, que passou o poder para Jorge Battle), e na Argentina (de Raul Alfonsin para Carlos Menem, que passou a faixa para Fernando de Ia Rúa).

Mas não é só a vaidade política que move FHC e os que foram derrotados com ele à defesa do continuísmo. Esta atitude trai um resto do pensamento único, a arrogância ideológica, segundo a qual não há outra saída a não ser a opção neoliberal, única via para a construção da modernidade. E tem o sentido de adiantar, desde já, temas e idéias que farão parte da agenda oposicionista contra o governo da Frente Lula Presidente.

Daí a recusa em reconhecer a extensão, e profundidade, históricas que a eleição e a mudança de governo representam, comparáveis a outros momentos de viragem da história de nosso país, como a Independência, a Abolição dos escravos, a República ou a revolução de 1930.

O significado histórico da eleição de Lula é mais profundo; com ela o Brasil se reconcilia consigo mesmo. A análise feita pelo historiador carioca Ilmar Rohloff de Mattos sobre a política do período imperial permite identificar uma fratura na sociedade, que opõe dois mundos contraditórios, complementares e inconciliáveis. Fratura que tornou-se visível nas últimas décadas do período colonial, e que ainda hoje marca a ferro nossa vida política e social: o mundo do governo, da elite "branca", "educada" e "superior", oposto ao mundo do trabalho e da "desordem", predominantemente negro e mestiço, "incapaz", "despreparado" e "ignorante".

Estas duas esferas resumiriam a luta de classes no Brasil, definindo a "gente de bem", a "boa sociedade", aqueles aptos para o mando e para o comando, e a enorme massa do povo, feita para obedecer. Elas convivem no espaço geográfico e político, e a necessidade de superá-las (no Império escravista eram três esferas – a terceira formada pelos escravos) e unir o país e o povo "em um corpo político sólido" já era reconhecida, desde 1823 por José Bonifácio.

Mas as classes dominantes brasileiras conseguiram mantê-las secularmente apartadas, demarcando o limite entre estas esferas com crenças como a de que, no Brasil, não há conflitos raciais porque os negros "conhecem o seu lugar". Ou de que o povo seria despreparado para votar.

Divisão de esferas que está na base daqueles argumentos que dizem que o comportamento efusivo de Lula depois da eleição não condiz com a "majestade do cargo" para o qual foi eleito, como alegam alguns comentaristas dos grandes jornais e revistas da burguesia.

São idéias que definem, a nível simbólico, as fronteiras entre aqueles dois mundos. Fronteiras que a luta de classes, forçando a obtenção de liberdades democráticas, e direitos civis, foi erodindo através dos tempos.

Aliás, foi a defesa da manutenção daquelas fronteiras contra esta espécie de "ataque final" representada

A VITÓRIA DE UMA IDÉIA

No último dia 27 de outubro ocorreu uma grande vitória do povo brasileiro. Uma vitória que encerrou um ciclo histórico e abriu a possibilidade do surgimento de uma nova etapa no processo de acumulação de forças para as correntes democráticas, populares e antiimperialistas. Por isso mesmo podemos afirmar que vivemos um momento que se assemelha a outros momentos decisivos da nossa história, como a independência, a proclamação da República e a Revolução de 1930.

Em todos esses acontecimentos ocorreram mudanças, ou deslocamentos, de classes ou frações de classe no poder político, o que, por sua vez, se traduziu em alterações do projeto político e econômico até então dominante. Neste particular, talvez a eleição de 2002 tenha tido um ingrediente mais radical. Pois. pela primeira vez na nossa história, frações das classes populares passaram a compartilhar o governo da República com setores das classes dominantes.

No entanto, esta não foi apenas uma grande vitória do povo brasileiro. Foi também a vitória de uma idéia, a vitória de uma elaboração tática, construída coletivamente pelas sucessivas direções do PCdoB; mas, que teve no líder comunista João Amazonas o seu principal idealiza-dor e defensor mais ardoroso. Uma elaboração tática que começou a ser construída por Amazonas, e seus companheiros de armas, a partir das preciosas lições adquiridas com a derrota estratégica de março de 1964 expostas no documento O golpe militar de 1964 e seus ensinamentos e que teve como um dos seus marcos fundadores as resoluções da VI Conferência Nacional, particularmente o seu documento final União dos brasileiros para livrar o país da crise, da ditadura e da ameaça neocolonialista.

Uma tática cujo núcleo poderia ser sintetizado na consigna "ampliar radicalizando e radicalizar ampliando", ou seja, na sábia articulação entre amplitude e radicalidade. Uma fórmula genérica que foi se atualizando e se concretizando através das diversas conjunturas – a depender da correlação de forças interna e externa.

Unidade das oposições contra a ditadura militar

Entre 1964 e 1983, o PCdoB soube definir bem o inimigo principal que devia ser derrotado: a ditadura militar; propugnou a formação de uma ampla frente com todos os setores da oposição, mesmo os mais vacilantes; e defendeu que o programa oposicionista devia articular a questões nacional, democrática e social, mas que tivesse como centro aglutinador as bandeiras democráticas. Essa articulação oposicionista deveria ser respaldada por um amplo movimento de massas antiditatorial. Por isso. apoiou decididamente as greves nas décadas de 70 e 80 e defendeu intransigentemente a unidade do movimento operário e sindical como base importante no processo de formação da Unidade Popular. Esta seria um instrumento fundamental para a conquista da hegemonia política dos setores mais avançados da frente; mesmo num futuro governo provisório que se formasse.

No final da década de 70. o PCdoB enfrentou uma dura luta de idéias com as duas principais correntes da esquerda brasileira: o PCB e o PT. O chamado "partidão" defendia a amplitude da frente oposicionista, mas descartava a radicalização política, a luta de massas contra o governo, e, na prática, subordinava o amplo movimento contra a ditadura à oposição liberal burguesa e dava respaldo à estratégia de abertura política “lenta e graduar apregoada pela própria ditadura militar. Por isso isolou-se das poderosas greves operárias ocorridas no período. O PT, por sua vez. que acabava de nascer, subestimava a necessidade da construção de uma ampla frente de oposição ao regime militar e a centralidade das bandeiras democráticas e nacionais.

Graças ao avanço das lutas populares e da unidade das oposições foi possível o surgimento da campanha pelas diretas, que cindiu o partido dominante que dava sustentação ao regime, e garantiu a vitória da oposição no Colégio Eleitoral. João Amazonas deu uma grande contribuição para esse desenlace favorável às forças democráticas. O fim da ditadura abriu um novo período na historiado Brasil.

Frente antineoliberal contra Collor e FHC

Com o início da ofensiva neoliberal no Brasil e as eleições de Collor e FHC, o PCdoB alterou seu esquema tático. O inimigo principal passou a ser os governos neoliberais e para derrotá-los apregoou a necessidade de construção de uma ampla frente de todos aqueles que tivessem contradições com o projeto neoliberal, ainda que elas fossem secundárias. Uma frente que incorporasse o centro; isolasse a direita monetarista; e tivesse as forças de esquerda – especialmente PT e PCdoB -, como núcleo duro. Uma frente que se pautasse por um programa de ruptura com o modelo neoliberal e apontasse no sentido da construção de um novo rumo para o Brasil. Esse programa deveria articular as questões nacional, democrática, e social; mas, deveria ter como centro a questão nacional. Seria através desta que. naquela conjuntura, poderia se agregar amplas forças sociais e políticas contra o governo e suas políticas.

Por outro lado, era preciso realizar um grande movimento de base popular contra esses governos antinacionais e antipopulares. O PCdoB defendeu a formação de um amplo movimento pelo Fora Collor!, a criação do Fórum Nacional de Lutas, a marcha dos 100 mil, as tentativas de greves gerais e as ocupações promovidas pelo MST Travou, neste período, uma dura luta de idéias em duas frentes distintas: de um lado, contra aqueles que recusavam a idéia de construção de uma frente ampla, advogando a sua limitação ao espectro das forças de esquerda "mais conseqüentes” De outro lado, contra aqueles que capitulavam a onda neoliberal – chegando mesmo a defender a participação no pacto social e a incorporação de muitos itens da agenda neoliberal. No entanto, foi a articulação entre frente oposicionista e luta popular que garantiu as duas maiores vitórias desde 1989: o impedimento de Collor (1992) e a denota eleitoral de FHC (2002).

João Amazonas, por anos a fio, ensinou que era preciso ser amplo e flexível na tática, sem nunca perder o norte político: a conquista do socialismo. As idéias (marxistas-leninistas) de Amazonas sempre foram poderosos antídotos contra a doença infantil do esquerdismo, que solapa a unidade das forças democráticas e populares, e a doença senil do reformismo, que tende a capitular diante das dificuldades criadas pelas sucessivas ofensivas conservadoras. Por tudo isso, pode-se afirmar que a vitória eleitoral de Lula foi também uma vitória das teses defendidas pelo principal dirigente e estrategista dos comunistas brasileiros e a ele deve ser dedicada.

Infelizmente, o velho líder comunista não viveu o suficiente para ver mais uma vitória de suas idéias e não pôde comemorar em alguma praça do país a esmagadora derrota do neoliberalismo e a eleição de um operário para a presidência da república. Mas ele estava lá, firme, através de suas idéias.
Augusto César Buonicore pela eleição de Lula que levou aos preconceitos, calúnias e medo que marcaram esta eleição, como já haviam marcado as campanhas anteriores de Lula e das forças populares para a presidência, como a ignóbil exposição da filha de Lula em 1989. A ultrapassagem dessa fronteira, porém, foi reconhecida, primeiro, pelo próprio presidente eleito que, assim que teve a vitória confirmada, na madrugada do dia 28 de outubro, foi para a avenida Paulista, em São Paulo, comemorar e congratular-se com o povo. E comemorada pelas massas nas grandes festas da eleição e na quase euforia com que populares saúdam e afagam o presidente eleito.

O presidente é um dos nossos – este parece ser o sentimento que anima a alegria popular, sinaliza o rompimento daquelas fronteiras, e aponta para uma democratização mais profunda de nossa sociedade.

José Carlos Ruy é jornalista e membro do Comitê Central do PcdoB

EDIÇÃO 67, NOV/DEZ/JAN, 2002-2003, PÁGINAS 10, 11, 12, 13, 14, 15