No dia 27 de outubro de 2002, cinqüenta e dois milhões e setecentos mil brasileiros disseram um basta, e propuseram um ponto final para as políticas e a experiência neoliberal do presidente Fernando Henrique Cardoso. Na mesma hora em que chamaram um trabalhador para presidir o Brasil e decidiram experimentar uma proposta e um caminho que revolucionam a história brasileira, sacodem e reanimam a América Latina e colocam o Brasil na fronteira da inovação política mundial.

Durante a campanha presidencial o núcleo estratégico do governo tucano fracassou na tentativa de restringir a disputa a um debate técnico-econômico, em que a oposição fosse obrigada a reconhecer a inevitabilidade da política do governo, mesmo depois de ele ter recorrido – em oito anos – três vezes ao FMI, terminando, assim mesmo, de joelhos e quase falido. Como essa estratégia não funcionou, nem tampouco a do medo econômico, o núcleo ideológico da coalizão tucana tentou repor no centro da discussão, sua velha cantilena sobre a modernidade dos tucanos e o anacronismo dos seus adversários. Mas desta vez, essa falsa dicotomia que dominou o cenário ideológico da década de 1990 foi enfrentada e derrotada pela ousadia estratégica de Lula. Na medida em que avançava a campanha foi ficando cada vez mais claro que o verdadeiro enfrentamento não era entre a modernidade dos que conseguem olhar para frente e para fora, e o atraso dos que só conseguem olhar para trás e para dentro, como propunham os tucanos. Era uma nova rodada de um velho conflito que atravessa a história brasileira entre três projetos para o Brasil, que conviveram e lutaram entre si durante todo o século XX.

O primeiro desses projetos foi o berço da estratégia econômica do governo Cardoso. Suas raízes foram plantadas pelo liberalismo econômico do Império, mas sua formulação mais consistente e moderna foi dada pela política monetária ortodoxa e pela defesa intransigente do equilibro fiscal e do padrão-ouro, dos governos paulistas de Prudente de Morais, Campos Sales e Rodriguez Alves. Idéias, objetivos e políticas que atuaram no início do século XX, como a expressão mais coerente e eficaz do projeto liberal de inserção da burguesia cafeeira, dentro da divisão internacional do trabalho, liderada pela Inglaterra.

Seus objetivos e políticas se mantiveram praticamente intocados, até a crise econômica de 1930, mas suas idéias fundamentais se mantiveram vivas e atuantes mesmo depois da crise, reaparecendo em vários momentos nos planos político, econômico ou cultural na Revolução paulista de 1932 e na luta antivarguista do Estado de São Paulo e de Armando Salles de Oliveira; na pregação de Eugenio Gudin, na primeira metade dos anos 40 e na concepção econômica da UDN, depois de 1945; na política econômica inicial do governo Dutra e do seu ministro da fazenda, C. Castro; na política do governo transitório de Café Filho e do seu ministro da fazenda, E. Gudin; na política do governo militar de Castelo Branco e de seus ministros econômicos O. Bulhões e R. Campos. As mesmíssimas idéias que reapareceriam, trinta anos depois, no liberalismo antivarguista e antiestatista, do governo Cardoso-Malan. Esse projeto estratégico teve algum fôlego sempre que contou com o aval do capital financeiro inglês, nos primeiros tempos, e norte-americano agora no fim do século XX. Mas, mostrou-se insustentável nos momentos de crise, como no caso de 1930, e agora, mais recentemente, no fim da Administração Clinton e na retração financeira deste início do século XXI.

O segundo grande projeto estratégico que participou dessa luta em torno do futuro do Brasil, já aparece esboçado nas teses dos “industrialistas”, presentes na Constituinte de 1891. Mas sua verdadeira história começa na década de 1930 e responde pelo nome de “nacional-desenvolvimentismo”, ou “desenvolvimentismo conservador”. Primeiro foi uma reação defensiva e pragmática frente à crise econômica de 1929, mas esta reação inicial foi se transformando aos poucos – durante o Estado Novo – num projeto de construção de uma economia nacional, apoiado por uma parte da intelectualidade modernista, por amplos segmentos das burocracias civis e militares e por um grupo de empresários industriais, onde se destacavam as idéias de Roberto Simonsen. Programa desenvolvimentista e industrializante que adquiriu maior consistência e velocidade nos anos 50, durante os governos de Vargas e JK, prolongando-se depois durante o regime militar, em particular na gestão do General Geisel e do seu II Plano Nacional de Desenvolvimento. Durante esse período, o Estado brasileiro teve um papel decisivo para o sucesso econômico do desenvolvimentismo conservador. Primeiro quando se viu isolado da economia internacional pela crise de 30 e pela II Guerra Mundial. E, depois, porque contou com a margem de manobra e de iniciativa que lhe foi viabilizada pelos Acordos de Bretton Woods e pelo apoio norte-americano às políticas desenvolvimentistas.

O terceiro, e último, desses projetos, nunca ocupou o poder estatal nem comandou a política econômica de nenhum governo republicano, mas teve enorme presença no campo da luta ideológico-cultural e das mobilizações sociais e democráticas. Esteve presente em algumas revoluções republicanas regionais do século XIX, e nas lutas sindicais, comunista e tenentista das primeiras décadas do século XX. Mas foi a partir da década de 30, e, sobretudo, nos anos 50/60, que tais mobilizações e lutas sociais começaram a se identificar com um projeto de desenvolvimento econômico nacional e popular que tangenciou, no campo das idéias e das alianças políticas, com o “desenvolvimentismo conservador”, dos anos 50. No início da década de 60, esta vertente nacional, popular e democrática do desenvolvimentismo chegou a propor uma reforma do projeto, incluindo ao lado da industrialização e do crescimento econômico acelerado, o objetivo da democratização da terra, da renda, da riqueza, do sistema educacional e do sistema político. Uma alternativa que foi sintetizada, em parte, pelo Plano Trienal de Celso Furtado de 1963, mas que foi vetada pelos conservadores e impedida pelo golpe militar de 1964. Depois disso, essas idéias reformistas se confundiram com o movimento da resistência democrática, somando-se mais tarde às mobilizações sindicais que se intensificaram na luta final contra o regime militar, e que estiveram na origem do Partido dos Trabalhadores. De uma forma, ou outra, esse projeto de democratização social e política do desenvolvimentismo esteve presente nas intenções e ações reformistas de algumas áreas e políticas governamentais, logo depois da redemocratização. E acabou ocupando um lugar importante no texto da Constituição de 1988, sobretudo nos capítulos relacionados com os direitos civis, sociais, políticos e econômicos da cidadania brasileira.

Essa foi a grande e verdadeira luta política e econômica que dividiu a sociedade brasileira durante todo o século XX. Deste ponto de vista, é verdade que o discurso e a estratégia política de Lula, nos últimos meses de sua campanha, apontaram claramente para uma retomada dos objetivos estratégicos reformistas dos anos 50 e 60, e para uma rediscussão conjunta de alguns pontos comuns, que esse reformismo sempre teve com o “desenvolvimentismo conservador”. Do mesmo modo, pode-se dizer que, desse ponto de vista, também existe uma linha direta de comunicação entre as idéias do Presidente Cardoso, de sua esposa e do seu bom e fiel ministro da fazenda, com a República Velha e com as idéias de Joaquim Murtinho, Eugenio Gudin, Roberto Campos e tantos outros brasileiros que sonharam, antes que eles, com a possibilidade de um Brasil aberto, liberal e integrado harmoniosamente com a comunidade financeira internacional.

Nada disso implica em desconhecer o óbvio: que o mundo de Murtinho não é o mesmo mundo do Malan, apesar de suas convicções econômicas serem as mesmas. Mas neste ponto não há com o que se espantar: a fé cega dos economistas ortodoxos e dos Tesouros Nacionais, no rigor fiscal e monetário, foi sempre a mesma desde o século XVII, idêntica às suas teses e políticas imobilistas. A verdade é que se a economia mundial tivesse sido governada pelos economistas, não teria havido capitalismo e o Brasil jamais teria deixado o engenho de açúcar. Foi essa falta de imaginação e de coragem inovadora que custou muito caro a vários partidos social-democratas europeus, que chegaram ao poder na primeira metade do século XX. Em sua maioria, esses partidos ficaram paralisados, sendo derrotados pelo que se poderia chamar de “síndrome de Hilferding”, o grande economista marxista e social-democrata austríaco que ao assumir o Ministério da Fazenda da Alemanha em 1928, apostou todas suas fichas numa política ortodoxa e monetarista de estabilização, que acabou aumentando a recessão e o desemprego sem conseguir controlar a inflação alemã. Como conseqüência, foi expelido do ministério e seu partido perdeu o governo que foi entregue logo depois a Hitler. Algo análogo – ainda que com efeitos menos trágicos – ao que se passou com o Partido Laborista inglês ao assumir o governo em 1929 e optar pela “visão do Tesouro” para enfrentar a recessão e o desemprego, contra a opinião na época de John M. Keynes, David L.George e tantos outros laboristas e liberais mais inventivos. Fizeram as mesmas políticas e colheram os mesmos resultados de Hilferding, como viria a ser o caso também do governo social-democrata de Leon Blum, na França de 1936/37.

Não se pode esquecer, entretanto, que nesse mesmo período, os social-democratas suecos tiveram a coragem de inventar um caminho heterodoxo. Constituíram um governo de coalizão com o Partido Agrário e conseguiram tirar a Suécia da recessão e do desemprego entre 1933 e 1938, inventando o que mais tarde se transformaria num consenso quase universal, até o início da era neoliberal: o Welfare State e as políticas que os ingleses vieram a chamar de keynesianas.

Não é sensato pensar que a história e as fórmulas possam ser repetidas. Mas não é nenhum anacronismo retomar velhos objetivos frustrados e reprimidos através da história para reencontrar seus novos caminhos. Quem sabe não chegou finalmente para o Brasil a hora de um projeto de desenvolvimento nacional e de uma sociedade mais democrática e inclusiva, dirigida e protegida por um estado que se aproxime progressivamente do welfare state dos europeus? Exigirá dos novos governantes manobra fina e atilada para lograr uma redistribuição da riqueza e de poder na sociedade brasileira, numa conjuntura internacional marcada pela inexistência de controles sobre a livre circulação de capitais e mercadorias e dentro do contexto geopolítico inaugurado pela Administração Bush. Tarefa difícil, mas não impossível porque seu próprio enunciado já transforma o Brasil numa experiência e numa oportunidade exemplar para um mundo que assiste angustiado à morte da utopia da globalização.

José Luís Fiori é professor da UFRJ.

EDIÇÃO 67, NOV/DEZ/JAN, 2002-2003, PÁGINAS 16, 17, 18