Que speranza?
– Ma como rebaxado!?
– Rebaixado, seu Hilário; a gente fomos rebaixado.
Seu Hilário deu entrada no Servidor Público com uma crise de riso. Às gargalhadas, foi depositado no primeiro banco do saguão do hospital por Toni seu melhor amigo, e Dona Risoleta, sua companheira há 40 anos, que, muito preocupada e constrangida, relatou para a recepcionista de cenho franzidíssimo a situação do marido:
– É que ele não güenta ver o jogo, sabe? Aí, toma meio diazepan e vai dormir. Só acorda depois que acaba. Aí… – e, com os olhos marejados, vira-se para seu Hilário, já de calça molhada de tanto rir.
A recepcionista não consegue desfazer-se da máscara de incredulidade que tomou conta de sua cara: boca semi-aberta, torta prum lado, sobrancelha direita erguida, olhar de esguelha pinguepongando de dona Risoleta para seu Hilário freneticamente.
Seu Hilário era palmeirense e funcionário público aposentado. Tinha problemas cardíacos, úlcera e hemorróidas. O médico o havia proibido terminantemente de ver jogo, sobretudo os clássicos. Palmeiras e Corinthians, então, nem pensar.
No começo, até que tentou desobedecer.
– Magina! Bobage desse médico, Zolêtá! Vô deixá de vê meu Parmêra? Ma nem morto!
Quase morreu. Daí pra frente, tomava diazepan e ia pra cama. Afundava a cabeça no travesseiro, tomava o da esposa e o metia sobre a cabeça.
– Assim ocê morre afogado, meu velho!
– No é fogado, patsa, é sficsiado!
– Que seja, Hilário! Que seja!
– No enche, Zolêtá! No enche!
Dormia. Quando acordava, sempre tinha o Toni para dar a notícia com calma. Porque, perdendo ou ganhando, o Palmeiras era sempre motivo de comoção para seu Hilário.
Mas, no jogo contra o Vitória, não teve jeito. Seu Hilário, como todo bom palmeirense, já estava a par do perigo de rebaixamento. Quando chegou na sala e viu o Toni aos prantos, disse um "No me diga o que no quero ouvi!" com as mãos a ponto de esmagar o crânio. Toni, por sua vez, olhou para o antigo parceiro de truco (o médico também proibira o jogo) e disse um "É, seu Hilário: rebaixado" tão de cortar o coração, que até Dona Risoleta, que detestava futebol, não pôde conter as lágrimas.
– Ma como rebaxado, cáspita?!
– Rebaixado, seu Hilário; a gente fomos rebaixado – é o que pôde repetir Toni em meio aos chacoalhões que o velho lhe dava.
Com os braços doídos (afinal, o Toni era gordo que só um leitão), seu Hilário foi até a janela. A rua Turiassu era só silêncio.
Foi aí que ele disparou a rir. Tomado de uma súbita crise nervosa, o homem emendou numa gargalhada sem fim. Dona Risoleta ficou atônita. Toni, ainda sob efeito dos chacoalhões, demorou a se ligar, mas, em seguida, virou-se lentamente, com uma sombra de terror nos olhos.
Larinho, o filho, foi chamado às pressas. Correram pro hospital. Dona Risoleta torcia as mãos uma na outra. Tino desdobrava-se em atenção, sustentando o velho a cada vez que ele se dobrava numa seqüência mais prolongada de risos.
Seu Hilário recebeu uma dose cavalar de tranqüilizante e ficou em observação. Não era meia-noite, quando pulou da cama de olhos esgazeados e agarrou o pescoço do Toni gritando "Cornuto!".
Foi visto, trajando o camisolão do hospital, no aeroporto, tentando convencer a atendente a lhe vender uma passagem para Salvador.