Quase memória
De tudo, só restou aquela cigarreira folhada a ouro – pequeno monólito dourado na mão fina.
Afinal, não era monólito: oca, tinha o espaço para as cigarrilhas. Mas ela gostava da imagem. Monólito, então.
Tomou o ônibus debaixo de chuva. Sentou-se ao lado de um homem gordo, de gravata, barriga enorme. Recendia a cigarro, o indivíduo.
O vidros fechados e embaçados apresentavam manchas de gordura aqui e ali. Alguém, exausto, devia ter encostado a testa na lâmina fria. Do outro lado, água. Dentro, calor e abafado.
Abriu a cigarreira. O nome da avó já esmaecia. As luzes da avenida acenderam-se todas com o temporal. A noite chegava compulsoriamente por força do dilúvio.
Não se lembrava da fazenda. Aliás, nem tinha certeza se existia alguma fazenda. Talvez fosse um sítio, uma chácara, um cercado de hortaliças.
Lembrava da mãe. Da avó, não. Fazia pães de milho no fogão a lenha e vendia na estrada. Um dia, só encontraram a cesta de pães no acostamento. Na certa, tinha subido num caminhão e partido em busca de um mar do qual sempre falava nas noites de insônia, sob o fifó.
A água tomava todo o quarteirão. As casas estavam mergulhadas pelo meio. Do alto da ladeira, o ônibus observava a inundação. O motorista engatou a ré em busca de uma rota de fuga. Mas seu carro não estava só: na retaguarda, um tapete de veículos aguardava, expectante.
Fechou os olhos. Diante da memória, um rosto claro, olhos azuis, pele enrugada, sorriso aberto. Onde havia visto aquela sala colonial? Da cozinha vinha um cheiro de doce e janta.
O gordo ao lado tossiu. Pigarro. Na certa, fumava uns três maços por dia.
Quando soube do inventário, não acreditou. Sabia que tinha avó, é claro, mas nunca a conhecera. História clássica: orfanato, adoção, rompimento com a família na adolescência, a busca pela origem nunca encontrada, o emprego, o baixo salário, o quarto alugado, a rotina.
Diante do advogado "da família" e de uma testemunha, foi declarada a única herdeira viva. Esperava uma casa. Ou quem sabe… Não: só tinha pensado mesmo em uma casa.
Resolveu descer e entrar na padaria. Pediu uma canoa na graxa e um café curto.
– Tamo sem pãozinho, dona. Pode ser de milho?