Casamento
Dona Eulália tomou seu chá e foi se deitar. Cumpriu todos os ritos de quem se recolhe: fechou o gás, verificou se a porta estava trancada, travou as janelas, desligou todos os aparelhos das tomadas, exceto a tv, fez seu xixi regulamentar, lavou as mãos, escovou os dentes, bebeu um gole d'água, apagou a luz do quarto e envelopou-se no lençol impecavelmente esticado, que o calor era muito.
Seu Nicanor ficou na sala vendo televisão. Munido do controle remoto, pulava de canal em canal. Não estava em busca de nada em especial. Como que hipnotizado, matava o tempo assistindo a pedaços de programação.
Eram casados há 30 anos. Já maduros – ela com 27, ele com 33 – juntaram os trapos depois de um ano de namoro e outro de noivado. À época, ninguém botava fé. A mãe de Dona Eulália insistia que a filha cometia um erro. Os amigos de Nicanor não se conformavam: "Você não disse que nunca ia se casar, sujeito?".
Nada os demoveu: casaram-se num dia chuvoso, na capela do bairro. Cerimônia simples, seguida de recepção na residência do casal, também modesta. Pela manhã, tinham ido ao cartório, assinado os papéis, e pronto.
Não tiveram filhos. Vida sexual regrada, com festas ao estilo papai-e-mamãe somente às quintas, de luz apagada. Construíram um pequeno patrimônio, respeitável. Ele saía todas as manhãs para o trabalho, ela ficava em casa cuidando das roupas e do asseio dos cômodos duas vezes limpos.
Nenhum dos dois sabe como tudo começou a degringolar. A casa, antes cheirando à nova, clara, ventilada, ganhou mofos no teto da sala e no banheiro. As torneiras começaram a pingar. Os tacos passaram a dançar sob os pés. Tudo decaiu, devagar e irrecusavelmente.
Seu Nicanor, por força do ofício, aposentou-se. Passou a andar de chinelos pela casa, quando antes dona Eulália não o via se não de calças, camisa e sapatos. Dali a um tempo, o pijama virou seu uniforme oficial. Os cabelos foram branqueando, branqueando, até ficarem com aquele cinza pontuado de branco por toda a cabeça. Só a calvície não avançou. Era a mesma de trinta anos atrás.
Dona Eulália, ao contrário, era a mesma. Só lhe foram acrescidas rugas na pele amorenada, mas mesmo assim nada que comprometesse as linhas equilibradas do rosto. Engordara pouca coisa. O suficiente para encher os vestidos, antes muito soltos.
Deitada, de olhos fechados, determinara-se dormir. E quando determinava alguma coisa, essa alguma coisa por força de seu querer acontecia.
Mas não essa noite. Algo latejava. Começou com um desejo de morango com chantili, que logo foi se transformando em pensamentos inconfessáveis. Abriu os olhos e sentou-se meticulosamente na cama. Sacudia a cabeça, tentava pensar nas tarefas da casa. Mas como negar os bicos intumescidos dos seios? Como não ver que lhe dava prazer o estar sentada sobre o colchão?
Que dia é hoje? Não, não é quinta. Mas de que adiantaria ser quinta, se há duas décadas elas rarearam até não mais existirem?
Resolveu-se por um banho frio. Talvez fosse fome. Dirigiu-se à cozinha. De passagem, viu seu Nicanor. Deus!, como estava acabado.
Bebeu um copo de leite, pegou uma toalha e foi ao banheiro no costumeiro passo dos atarefados. No banho, nua, ensaboada, não se conteve: acariciou o seio; com a mão direita, massageou a barriga e desceu até o meio das coxas. Em poucos segundos, o corpo deu um tranco e ela urrou.
– Eulália? Que foi isso?
– Nada, Nicanor. Nada. Já passou…
E ficou ali, ofegante, com a testa no azulejo, enquanto, do outro lado da porta, chinelas se afastavam – nem lentas, nem rápidas – pelo corredor.