Crônica ou réquiem?
Acabo de ler, na internet, a notícia de que foram encontrados os restos mortais de Nemo Cianelli, italiano desaparecido há 44 anos.
Mas quem é o cidadão, senhor cronista? Que importância tem ele, para que nos venha vossa senhoria noticiar aqui tão mórbido achado?
Cianelli, há mais de quatro décadas, arrumou as malas e disse aos amigos que iria de vez para a América do Sul. Desde então, nunca mais foi visto. Houve muito burburinho na Itália em razão do sumiço. O ano de 1958 parece ter sido tomado pelo mistério do desaparecimento de um cidadão, que, de comum, transformara-se em único, dadas as circunstâncias do caso.
Bom, de gente sumida os séculos estão cheios. E o leitor deve estar a perguntar o que quer esse cronista com falta de assunto a enfiar, num diário, um necrológio atrasado de décadas?
É que Cianelli nunca deixou a Itália. Para ser mais preciso, sequer deixou sua casa. As ruínas de seu cadáver foram encontradas no porão, dentro de uma parede.
Se o leitor pensou em assassinato, apressou-se: foi suicídio.
Mas como suicídio, se o homem estava dentro de uma parede?
Na verdade, "dentro" é um termo impreciso. O signore Cianelli sofria de uma doença incurável. Inventou uma viagem à América, trancou-se no porão, edificou uma parede entre sua extrema solidão e o mundo e deu-se um tiro no peito. "Dentro" da tal parede, além de seus ossos, foram achados um rifle enferrujado, as malas e um bilhete com seu nome, onde explicava tudo: não queria atormentar a família e, então, emparedou-se.
Vejam, as senhoras e os senhores que me lêem: um homem, italiano por acaso, é acometido de uma enfermidade sem remissão, e engenha um sumiço perfeito: vai até a taverna, cumprimenta os amigos, fala de uma viagem sem sentido para a América do Sul, toma o último gole de vinho e dirige-se ao porão de sua casa. Lá, as malas já prontas, a arma carregada, escreve um bilhete que guardará consigo, para o caso de ser encontrado por algum arqueólogo de algum século pós-tudo. Pega dos tijolos previamente empilhados e, um a um, com cimento e paciência, ergue um muro delgado diante de si. Constrói uma câmara mortuária, sem tampa, sem lápide. Findo o trabalho, aponta a espingarda contra si e dispara.
Escolher a própria morte. Não dar a ela o gosto de vir buscar-nos. Determinar o próprio fim.
Quem leu a Ilha Misteriosa, de Júlio Verne, acabou por conhecer o fim de um outro Nemo, legendário capitão do Nautilus das Vinte Mil Léguas Submarinas. Morreu, em certo sentido, também emparedado. Em sua cabine de comando, velho, foi, por escolha própria, soterrado pelas rochas da ilha que afundou no meio do oceano.
Ignoro se o italiano Nemo leu o francês Verne. Igualmente desconheço a doença de que sofria. Mas, a partir de hoje, em razão de sua morte, é impossível ignorar sua existência.