Final de ano, festas e férias. Ler um bom livro, também, é uma maneira de saudar o Ano Novo. Atrevo-me a fazer uma sugestão: leia o "Diário de Trabalho", Volume I, notas biográficas do dramaturgo e poeta alemão, Bertolt Brecht.

      Esse primeiro volume desse diário de trabalho abarca o período de 1938 a 1941 e narra o cotidiano de uma parte do longo exílio do escritor. Com a ascensão do nazismo ao poder em 1933, na Alemanha, Brecht é forçado a vagar pelo mundo, "trocando mais de países do que de sapatos". No poema "expulso por bom motivo" retratou essa condição de exilado: "Aonde vou sou marcado/ Aos olhos dos possuidores, mas os despossuídos/ Lêem a ordem de prisão/ E me oferecem abrigo. Você, dizem/ Foi expulso por bom motivo."

      Em setembro de 1939, tem início a II Grande Guerra Mundial, e em suas notas ao par que registra com seu olhar arguto o confronto bélico e seus bastidores, ele descreve os dilemas da construção de suas obras desse período, entre outras, "Mãe Coragem e seus filhos" e "Terror e Miséria do Terceiro Reich". Nosso diarista teve zelo de colar nas laudas datilografadas, recortes de jornais e revistas, e, também, registrou flagrantes culturais e sociais de uma Europa em guerra. Desse modo, os textos, embora curtos, são densos e prenhes do ambiente da época.

      Como o objetivo deste escrito é convencer-te a ler as memórias de Brecht, citarei algumas passagens que haverão de seduzir-te.

      Sobre os alemães

      "Nós alemães temos materialismo sem sensualidade. (…) O cheiro dos barris de vinho nunca é mencionado. Não apreciamos o gosto do mundo. Ao amor levamos comodidade, o prazer sexual tem algo de banal. (…) Entre nós o espírito se macula, tão logo toca na matéria. (…) Em nossa literatura essa desconfiança da vitalidade do corpo pode ser sentida por toda parte. Nossos heróis cultivam a sociabilidade, mas não comem. Nossas mulheres têm sentimentos, mas não têm nádegas. Para compensar nossos velhos falam como se ainda tivessem os dentes."

      Londres bombardeada

      Londres, 10 de setembro de 1940: "São doze e vinte. Acabo de ouvir o locutor em Londres, que está sob bombardeio aéreo. Ele está no abrigo subterrâneo, os bombardeiros alemães estão de novo sobre a 'capital do mundo'. (…) Contam que o proprietário de um estabelecimento comercial da city pôs um letreiro na fachada dizendo: 'fundado em 1628, ainda em funcionamento'. Os cortiços em volta das docas estão em chamas."

      Acerca do homem novo

      "H. W. comenta a propósito do hoje tão propalado 'homem novo', que por toda parte ela encontra o homem velho" com suas características, paixões, problemas, etc… "Eu acho que o próprio postulado é religioso, é o velho novo Adão. Na verdade, o homem novo é o mesmo homem velho em novas situações, isto é, aquele mesmo homem velho que está mais apto a enfrentar as novas situações, a fazer com que a novas situações avancem (…) Todos os postulados acerca da humanidade que vão além dos postulados inerentes à situação devem ser rejeitados. Esses conceitos de novidade não têm nenhum valor."

      Shakespeare

      "O que me leva a pensar que um pequeno coletivo produziu as peças de Shakespeare não é que eu acredite que uma pessoa sozinha não poderia ter tanto talento poético, ser versada em tantos assuntos e ter tão vasta educação geral. Só acho que tecnicamente as peças são montadas de um modo que me induz a acreditar que eu reconheço nelas o método do trabalho coletivo. (…) Shakespeare pode ter sido a personalidade decisiva, pode ter contado apenas com colaboradores ocasionais, etc…"

      Bom, chega de citações, daqui a pouco se elas se estendem posso ser processado pela editora. E o possível leitor que este texto pretende cativar, pode dar o livro como lido.

      De qualquer maneira, não resisti. Encerro com esse trecho de dez de agosto de 1940. Rompo o compromisso do início do parágrafo, por um motivo que julgo forte. Como a atmosfera desse início de milênio novo, guarda afinidades com a década de 40 do século passado quando "o planeta respirava o gás da guerra."

      "Fecha-se o círculo de ferro em torno da Grã-Bretanha. O avião, a arma nova, mostra-se mais terrivelmente novo do que quando foi usado na última guerra. E o homem que observou que não há mais ilhas parece forçar seu ingresso na legião dos 'grandes homens'… (…) O conceito de grandeza é definido por resultados. Grande é aquele que faz a terra florescer, como aquele que a devasta. E pensar que patifes de última categoria podem devastá-la… É claro que contam com forte apoio. É aqui que a tacanhez de espírito vira concentração, a impotência vira arte de atrair pessoas talentosas, (…) A obsessão se torna energia, o fanatismo se torna coerência, (…) a disposição homicida se torna determinação, a luta pelo poder se torna a luta por uma idéia, etc, etc…"


 Adalberto Monteiro, Jornalista e poeta. É da direção nacional do PCdoB. Presidente da Fundação Maurício Grabois. Editor da Revista Princípios. Publicou três livros de poemas: Os Sonhos e os Séculos(1991); Os Verbos do Amor &outros versos(1997) e As delícias do amargo & uma homenagem(2007).