Per capita
Davi e Salomé se conheceram num campeonato de quebra-cabeça na Sociedade Amigos de Bairro da Vila Filistéia. Viram-se na semifinal e se apaixonaram. Eliminaram seus adversários, foram para a final um contra o outro e, ambos, contra peças e relógio.
Empataram. Exatos cinco minutos antes de soar o gongo, encaixaram ao mesmo tempo o último pedaço de uma intrincada paisagem.
Casaram-se. Foram morar em Nova Jerusalém – conjunto habitacional popular erguido no meio do Jardim Cananéia com recursos do Sistema Nacional de Habitação. Apartamento de um quarto, sala quatro por quatro passos, cozinha no corredor e paredes espessura casca de cebola – se o vizinho espirra, você sussurra saúde sem problemas.
Passados dois anos de casados, orçamento apertado, Salomé resolve trabalhar. Davi, a princípio, não se agrada da idéia. Onde já se viu mulher dele trabalhando? O que o povo ia dizer? Mas depois de muitos salamaleques e beijos na orelha, cedeu.
– Quando é que começa?
– Amanhã à noite.
– À noite?! Você não me disse que era trabalho noturno.
– Ah, Vi, qué que tem?
– Tem que mulher minha não vai ficar por aí andando de noite.
– Pôxa, Vizinho, cê vai implicar de novo? Não tava tudo resolvido já?
– Não e não. De noite nem pensar.
– Vi-i…
– Que é?
– Chega aqui…
– Não vem, não. Vem não, que você não me enrola.
– Ah, Vi, não faz assim. Quanto mais cara de mau você faz, mais eu dispiróco, sabia?
– Pára. Larga minha orelha. Não, não adianta passar a mão aí… Vem cá, gostosa!
Ah, íamos esquecendo: Davi é o segundo casamento de Salomé. Seu primeiro marido era pastor evangélico. Chamava-se, obviamente, João.