Aconteceu comigo em um destes dias em que tudo o que você quer é provar para o mundo que você é um grande galã, o conquistador dos conquistadores, o Dom Juan do mundo.

      Estava eu indo para minha casa depois de um dia estafante de trabalho (Dom Juan precisa trabalhar), estafante mais proveitoso, o que me deixou mais confiante. Costumava sentar no fundo do ônibus e ficava lendo o tempo todo, a viagem longa me possibilitava ler alguns bons livros. Neste dia porém, eu não estava para a leitura e, do fundo de minhas ilusões, identifiquei uma deusa, a rainha da minha vida, a tampa da minha panela, o arroz do meu feijão, a luz do meu túnel (não era um trem, estava mais para avião). Não pude ver o rosto, ela estava de costas, mas que costas, o cabelo parecia uma queda dágua, comprido e lindo, os ombros bem construídos me faziam imaginar loucuras, a cinturinha, ah a cinturinha! Pareciam um caminho que faziam meu olhar escorregar, escorregar e cair direto no objeto de desejo da maioria dos homens, aquilo que, se fosse belo, e aquela era escultural, levantava até múmia, aquilo que provocava torcicolo, a bunda.

      E que bunda meus amigos, até hoje tenho aquela bunda por parâmetro. Isto me traz muitos problemas, aquela bunda era tão linda que me deixou muito criterioso. Isso mesmo, depois que consegui conviver com aquela bunda, fico procurando em outras mulheres uma bunda que só encontrei nesta nossa preciosidade.

      Mas lá estava eu, apreciando tudo aquilo. O ônibus estava vazio e eu conseguia vê-la com tranqüilidade. Só tinha um probleminha, ela não se voltava para mim, o máximo que eu conseguia ver era, num momento a metade direita de seu rosto, em outra a esquerda. Mas isto foi o suficiente para que eu me apaixonasse. Na verdade já estava apaixonado por metade de seu corpo, a de traz, e quando vi as metades de seu rosto, fui arrebatado por um amor intenso (claro que eu só tinha 17 anos. Amor intenso nesta idade dá de 30 em 30 minutos). Suas faces eram lindas, pareciam um desenho, uma escultura com a única finalidade de nos enlouquecer.

      Fui falar com ela, claro!

      Dirigi-me para ela cautelosamente, eu e aquela cara de tarado que todo garoto tem nesta idade. Parecia um gato quando tenta surpreender uma mosca. Lentamente, passo por passo. Por um momento pensei que babava, fui me aproximando, me aproximando, e quando estava bem atrás dela disse:

      – Oi! – estava tão sem fôlego que foi só o que consegui articular.

      Disse oi e fiquei esperando aquela imagem esculpida por deus me olhar e dizer "oi", com aquele jeitinho lindo que só ela poderia ter.

      Parece que tudo ficou em câmara lenta. Isto mesmo, igual aos filmes: ela ia virando bem devagar, seus cabelos voavam, seu perfume se espalhava e entrava por minhas narinas. Primeiro sua orelha maravilhosa, depois sua face dourada, mais além sua boca carnuda, seus olhos verdes, seu nariz e, sobre ele, uma baita verruga. Isso mesmo, uma verruga grande, enorme, monstruosa, escura, áspera e com pelos.

      Sua voz saiu justamente como eu imaginava:

      – Oi! – sorridente, ela mostrava uns dentes tão brancos que me ofuscavam os olhos.

      Por um momento achei que ia chorar. Meu sorriso de conquistador quis se desmanchar, mas o segurei bravamente. Pensei em puxá-lo com as próprias mãos; me detive; já suando consegui dominá-lo.

      Tenho que falar algo, pensava insistentemente. Que digo, falo que ela é linda. Não! Seria capaz de cair na risada. Vou sair correndo. Você não pode seu babaca, esqueceu que está num ônibus em movimento? Também não posso ser tão desumano assim. Esta garota ficaria com a alta estima lá em baixo. Também você, heim! Como é que sai cantando todas as garotas que vê pela frente?

      – Sim!? – disse ela novamente.

      – É! Hum! Hã! Cuum, cuum! Digo. É… Quer dizer. Quer… Dia lindo, heim?

      Que porcaria, só isso que consigo falar.

      – Lindo mesmo. Qual seu nome?

      Ela era bem comunicativa. Graças a isto o papo tomou rumo. Falamos durante toda a viajem; mas era inevitável; meus olhos não conseguiam se firmar em seu rosto. Quando eu parava o olhar era para a verruga que olhava, ela tinha olhos lindos (a garota não a verruga), pude ver por um momento. Porém não tinham belos olhos que ganhassem daquele segundo nariz. Eu buscava pontos para firmar minhas vistas. Olhava sobre sua cabeça, ficava mirando numa formiguinha que trabalhava incansavelmente no teto da condução. Enquanto falávamos, eu pensava uma desculpa que não a magoasse. Uma forma de sair daquela situação sem maiores danos. Mas era tempo perdido, da forma que cheguei, já havia ficado claro que era um beijo o que eu queria. E foi o que rolou depois de alguns pontos de ônibus. Beijávamos somente em uma posição, pois a verruga, que era um tipo de sogra que ficava te olhando enquanto você beijava a filha, não permitia grandes manobras. Toda vez que tínhamos que mudar de lado, precisávamos parar e recomeçar o beijo.

      Aí vocês devem pensar, ele esqueceu a verruga e se entregou à garota. Errado, enquanto eu a beijava era na verruga que pensava, como se estivesse beijando a esposa e pensando na amante, beijando a bela e pensando na fera. A tal verruga não saía dos meus pensamentos, tinha que ficar pensando em coisas boas para esquecer a verruga e, em alguns momentos, pensava que beijava a verruga. Numa volta desautorizada senti a danada roçar minha pele. Quem, a garota? Não! A verruga! Me afastei rapidamente com uma cara enojada, percebi que poderia desgostá-la e mudei de fisionomia rapidamente. Fazendo uma cara de conquistador pervertido, dei um sorrisinho e me atraquei de novo. Comecei a achar que os beijos estavam muito superficial, frios, afinal era como se eu beijasse a verruga.

      Só um milagre para me tirar daquela situação. E se eu simulasse um ataque epilético? Ficaria ali me tremendo no chão. O motorista iria parar no primeiro posto de saúde que encontrasse e lá, eu ficaria até vê-la desaparecer com o ônibus. Ela não iria querer nada com um cara que sofre ataques. Não, acho que seria muito embaraçoso, não colaria.

      Finalmente meu ponto. Trocamos telefones e fui embora. Passei o número errado para ela e desci me achando a pessoa mais esperta do mundo. Encontrei nela um defeito com o qual eu não poderia conviver.

      Mas hoje, passado algum tempo, fico a pensar: que defeito ela viu em mim. Para testar, tentei ligar no número que ela havia me passado e, qual foi minha surpresa ao perceber que o número dela também estava trocado.