Ainda mato um
Ele não era nem bom, nem mal. Era um daqueles pacatos cidadãos que encontramos todos os dias pelas ruas da cidade. Passam daqui pra lá, de lá pra cá, muitas vezes de guarda-chuva nas mãos mesmo não havendo clima para chuva. São tão bons a ponto de socorrerem um gato do alto de uma árvore e tão maus a ponto de xingarem um mendigo de vagabundo quando este lhes pede alguma esmola. Já entrou na casa dos quarenta, casa esta, com a permissão do Luiz Fernando Veríssimo, que ninguém sai, que não tem portas de volta e que a cada passo dado, mais perto da porta da casa visinha, a dos cinqüenta, você se aproxima. É ranzinza as vezes e bem humorado nas demais. Por fim um homem comum.
Comum mas nem tanto. Ele não certeza de nada, sabe que está casado, mas antes de casar não tinha certeza de que este dia chegaria, tem um carro mas também não tinha certeza que um dia o teria. Não tem certeza se ficará morando na cidade em que mora, não tem certeza se continuará no emprego atual por muito tem. Muitas vezes, em tom de ironia, diz não ter certeza nem se o filho é realmente dele. Ele só tem uma certeza, e repete para todos em tom bem humorado: Antes de morre mato um. Não era mau como já disse, mas tinha esta fixação.
Não era um assassino por isso nunca fez por onde sua certeza se concretizasse. Melhor, nunca tinha feito. De alguns anos para cá descobriu que tinha uma doença grave e que a qualquer momento podia passar desta para melhor (ou pior), podia ir para a terra dos pés juntos, podia bater as botas, vestir um terno de madeira. Desesperado com este destino, se irritava com muita facilidade no trânsito, em casa, com os amigos e visinhos. Começou então a arquitetar o plano de sua certeza com medo de partir sem que atingisse o desejo de toda sua vida.
Foi a uma festa e, bêbado, pois não teria coragem de fazê-lo são, começou uma briga com um outro mais alcoolizado ainda, não conseguiu muita coisa além de um belo corte na coxa direita. Com um garfo na mão tentou acertar o infeliz que discutia com ele e acertou a própria perna.
Em outro momento estava quase estrangulando o seu médio, aquele que lhe deu a triste notícia, quando chegou a secretária do consultório, uma velha gorda com cara de bolacha, e o espancou com uma vassoura até ele entrar no elevador.
Tentou ainda algumas outras vezes. Numa noite pulou o muro do seu Fritsch, um velho alemão de uns setenta anos, dentadura e bengala considerado nazista por todos da cidade, e o surpreendeu olhando sua empregada, uma negra de arrasar quarteirão, pelo buraco da fechadura do seu quarto. O máximo que nosso amigo conseguiu fazer foi disfarçar dando uma lição de moral no coitado do velho.
Já estava louco, aquele desejo não tinha jeito de se realizar e crescia cada vez mais, tanto o desejo quanto as dificuldades. Em um de seus últimos atos ele se superou. Subiu na varanda de sua casa, fechou os olhos e se jogou em cima de uma velhinha que passava, a mulher só chegou um pouco pro lado e deixou o homem se chocar com o chão aos gritos.
Os meses se passaram, um ano, dois anos e depois de alguns anos e nada de conseguir seu grande feito. Numa cama de hospital, no último dia de vida, nas últimas horas e sem haver atingido seu objetivo, não teve dúvidas. Aproveitando um momento em que só estavam ele e a enfermeira no quarto, sem conseguir mais articular as palavras com perfeição, falou baixinho. Quando a enfermeira se aproximou para ouvi-lo ele agarrou o pescoço da moça e, com aquele olhar vermelho de assassino, os lábios contraídos, os dentes trincados, disse: Chama minha sogra aqui imediatamente por favor.