Uma das obsessões de Graciliano Ramos foi escrever a partir de um assunto por ele experimentado. Afastando-se do mito da representação impassível da realidade social, de um realismo documental, preso à representação mais ou menos imobilista da realidade, coloca a missão central de o escritor empenhado problematizá-la em termos psicossociais. Mais ainda: vê na atividade do escritor, como na vida, a necessidade de desenvolver formas de práxis criativas, no sentido marxista.

O narrador situa-se, assim, como persona inventada pelo autor. Assim, esse narrador ao construir uma história, ele próprio se constrói, propiciando ao leitor a observação de modelos de trabalho/pensamento intercambiáveis, não apenas entre a realidade social que serve de referência e a psicologia da personagem que representa, mas também destas instâncias ficcionais para a situação vivenciada pelo leitor. Imagem caricatural desses processos é a conhecida situação representada por Charles Chaplin, no filme Tempos Modernos, quando aparece como um operário numa esteira de produção, reproduzindo sempre um mesmo movimento mecânico de apertar porcas com duas chaves nas mãos. Quando deixa a fábrica, já na rua, reproduz esse gesto automaticamente, vindo a encontrar-se uma mulher com um vestido com botões de desenho semelhante aos das porcas da linha de montagem. Procura, então, sem maior sentido crítico, apertá-los, imaginando-se com as chaves da fábrica. Os modelos de trabalho/pensamento se deslocam comicamente para outro contexto, denunciando a alienação da personagem, condenada a executar/viver de maneira repetitiva, enredada na mesmice.

Na literatura, o principal agente do processo é, entretanto, o escritor e, para Graciliano, ele tem a função ética de se afastar da esteira de produção, reproduzindo os mesmos gestos. Uma atividade artesanal, se nos valermos de outra imagem, de Walter Benjamin, em um seu conhecido ensaio “O narrador”, onde compara esta persona (o narrador) a um oleiro que modela a argila. Através da práxis criativa, a escrita mergulha na vida do narrador para retirá-la dele, como argila nas mãos do oleiro. Ganha assim autonomia relativa e é capaz de reproduzir modelos de pensamento/trabalho inclusive não conscientes, que o escritor empenhado procura descortinar, sobretudo quanto às questões sociais que levanta.

É o que ocorre com o proprietário da fazenda “São Bernardo”, Paulo Honório, do romance de mesmo título de Graciliano Ramos(1), um truculento coronel nordestino, que, num momento de grande crise existencial, decide escrever um livro, tendo em vista transmitir a seus leitores as marcas de sua experiência. A ambígua e contraditória conjunção entre o ambicioso fazendeiro e o escritor em crise, entre experiência e escrita confere respectivamente ao narrador e à narrativa do romance São Bernardo a imagem duplicada e distorcida cara às pinturas que proliferam com as vanguardas modernistas.

Assim, a superposição da imagem da fazenda, do proprietário e do escritor revelam a difusa interface de traços e tonalidades que põe o livro em visível diálogo com a profusão de imagens deslocadas, intrincadas e superpostas que podemos ver, por exemplo, nas pinturas cubistas e expressionistas.
A rude economia verbal do romance São Bernardo, de Graciliano Ramos corresponde à linguagem seca e ríspida que o fazendeiro narrador adota indistintamente seja para gerenciar propriedades e negócios, seja para negociar sentimentos e lucro, ou tratar com pessoas e bichos, que para ele pouco ou nada se diferenciam. As pinceladas grossas e cruas com que Paulo Honório descreve a exploração imposta a quantos sacrificou e gradativamente desumanizou durante seu cruel processo de obtenção de terras, bem como da posterior ampliação de suas cercas, traçam, em paralelo, seu auto-retrato: ao reduzir pessoas a coisas, ele próprio se coisifica, ou seja, vai-se pouco a pouco embrutecendo e perdendo sua humanidade.

Em suas noites de insônia, ele é atormentado pela culpa, que o faz tomar um recorrente pio de coruja como presságio de tragédia(2). O temor a uma fatalidade que foi, na verdade, construída por suas próprias mãos, leva-o quase inconscientemente ao ato de escrever. Em outras palavras, as mesmas mãos que cometeram desmandos passam a operar no sentido contrário de reconstruir simbolicamente o que foi destruído. De fato, o narrador de São Bernardo busca, na escrita ficcional ou na ficcionalização de suas memórias, a mediação de que necessita para vencer a culpa e os conflitos.

Durante o processo de escrita de São Bernardo, vem à tona a consciência de Paulo Honório. Até então cego, em face de sua pressa de se enriquecer e em sua ânsia de tudo dominar, ele começa a se reconhecer quando põe suas mãos a serviço não do próprio poder, mas da potência criadora da linguagem. Assim a experiência do narrador se transforma em sabedoria. Esta é a substância que ele quer imprimir à sua narrativa e transmitir a seus leitores. De forma homóloga à imagem deixada por Walter Benjamin, em que o oleiro deixa na argila do vaso a marca de suas mãos, também Paulo Honório quer deixar nas memórias que está escrevendo a marca de sua experiência.

Se a obsessão por riqueza e poder leva Paulo Honório a circunscrever às cercas de sua fazenda tudo que lhe é e não lhe é de direito, também as pessoas que estão sob seu domínio vão sofrendo o crescente efeito da desumanização, transformando-se nos objetos a que ele tenta moldar de acordo com seus interesses. Quando ele começa a se reconhecer, ao escrever o romance, percebe-se vítima do mesmo processo de coisificação que ele submete aos outros. Nesse sentido, é de se observar que a auto-caracterização do narrador o nivela, juntamente com seus empregados, a bichos. Desenhada com tintas que deformam para revelar traços psicossociais mais fundos, sua interface é capturada por uma espécie de câmara clara que dá visibilidade a uma existência brutalizada, destituída de sentido, consumida pela crescente degradação.

À medida que, enquanto agente de um sistema agressivo de produção, Paulo Honório vai exercendo seu autoritarismo, torna-se tão dependente quanto todos a quem subjuga, tornando-se, portanto, presa de seu próprio cerco. Além de bicho, ele também se reconhece na imagem do inescrupuloso fazendeiro que, em sua trajetória de obtenção de posses e poder, não poupa meios para ascender econômica e socialmente. Com isso, sua conduta competitiva e sua práxis agressiva o identificam a conhecidos atores da oligarquia rural nordestina. Paulo Honório toma para si todos e tudo quanto deseja, valendo-se dos privilegiados meios políticos, sociais, econômicos e judiciais que tem às mãos.

Essa imagem, contudo, não é suficiente para mostrar a complexidade dessa personagem de Graciliano Ramos. Paulo Honório é a encarnação ambígua de um homem que, movido pelo instinto de posse, vai atropelando todo obstáculo que se interpõe em sua trajetória cega e que, ao se dar conta da própria cegueira, quer refazer sua história, remarcar simbolicamente suas cercas não apenas para se reconhecer e dar um novo sentido para sua vida. Ele quer também se ilustrar, dar lustro e nova imagem a sua práxis de fazendeiro, reformular para si mesmo e para seus leitores as marcas de sua experiência. No fundo, ele sabe que a fixação de sua experiência só será transmissível se passar pela mediação simbólica da literatura. Um nível de consciência, é verdade, que vem da subjetividade empenhada do próprio autor, o cidadão Graciliano Ramos.

Consciente de sua própria ação destrutiva, o narrador de São Bernardo resolve assim retraçar, com novas pinceladas, seu auto-retrato. De início, em similitude a qualquer agente histórico que, em face da própria cegueira, não consegue enxergar senão a própria imagem cristalizada, ele está preso a uma visão unívoca de si mesmo, do explorador feroz em que me transformei. Entretanto, ao se ler ou se ver depois de ter traçado seu auto-retrato, descobre-se fazendo interface com um desconhecido, um duplo desdobrado em escritor e fazendeiro. Assim, enquanto escreve, o narrador pode ver a si mesmo, diante do próprio processo de desconstrução e reconstrução, de cegueira e auto-conhecimento, o que vai modificando as bases de sua própria identidade enquanto persona representada no romance. Como se estivesse diante do espelho, essa imagem duplicada de Paulo Honório olha para si mesma e descobre sua interface: uma e outra face, num infinito processo de duplicações, obrigando sua consciência a se deparar, a cada olhar, com uma inesperada e assombroso ângulo constitutivo da própria identidade. Em grande parte, deve-se a essas sobreposições a densidade psicológica e existencial que faz de Paulo Honório uma das personagens melhor realizadas da literatura brasileira.

A mão que escreve traz as marcas de sangue que maculam a escrita, pondo em questão a experiência que se quer transmitir. A nervosa fotografia que emerge desse retraçado revela um negativo deformante, grotesco, inassimilável em sua brutalidade visível: Sou um aleijado. Devo ter um coração miúdo, lacunas no cérebro, nervos diferentes dos nervos dos outros homens. E um nariz enorme uma boca enorme, dedos enormes.(3) Fechar os olhos, agitar a cabeça para repelir a visão das próprias deformidades monstruosas é um gesto vão. Se, de um lado, o a escrita do romance São Bernardo vai restituindo ao narrador a humanidade perdida, possibilitando-lhe desviar o foco da imagem brutalizada, de outro, ela acentua a opção de Paulo Honório pela perversidade, durante o tempo em que, enquanto fazia crescer a fazenda “São Bernardo”, ele não poupou meios para consolidar seu poder.

Todos que dependem econômica ou socialmente de Paulo Honório são enclausurados como bichos às suas cercas de arame farpado. Pessimista, ele reflete que não diferentemente do cerceamento imposto por seus domínios, o resto do mundo reproduz o mesmo mecanismo de dominação e coisificação dos indivíduos. A construção dessa metáfora (bichos) sugere, além da coisificação, a tônica da divisão de trabalho especializado e distribuído, portanto, entre várias espécies de bichos. A lógica empresarial do fazendeiro é, entretanto, contraditada pela lógica do discurso memorialístico do narrador. Enquanto aquele busca os fundamentos modernos da produção empresarial de acordo com as formas de organização capitalista, este adota o processo artesanal de trabalho que resiste em organizações arcaicas como a que prevalece na sua fazenda e que ele reproduz em sua narrativa, ela mesma uma composição artesanal. Assim, à produção capitalista empresarial embalada pela modernização, contrapõe-se o trabalho artesanal do narrador que constrói a narrativa para contar sua experiência.

A despeito de o auto-retrato que ganha formato junto com a narrativa ser desenhado por sua mão monstruosa do próprio Paulo Honório, em contrapartida, Graciliano Ramos, autor do romance que estamos lendo, escreve por sua vez deixando sua dicção de autor por sobre a voz e a imagem da personagem que narra. Em algumas passagens, a voz não é propriamente de Paulo Honório, mas de Graciliano, que denuncia a práxis encarnada por esse espécime deformado que tenta usar a máscara de um moderno capitalista ilustrado para encobrir seu papel de ator rural das oligarquias nordestinas.

Dito de outra forma, o autor Graciliano Ramos toma para si a função de duplicar a caricatura da personagem Paulo Honório, o narrador-escritor que, deformado pela brutalização, já de antemão se encarrega de se auto-caricaturar sob a imagem animalizada de um macho, como se pode ver nesta passagem: Que mãos enormes! As palmas eram enormes, gretadas, calosas, duras como casco de cavalo. E os dedos eram também enormes, curtos e grossos. Acariciar uma fêmea com semelhantes mãos.(4)

Quando justifica, para seus leitores, as razões que o levaram a escrever, Paulo Honório fala de seu objetivo inicial de realizar uma obra coletiva segundo os princípios de divisão de trabalho de uma empresa capitalista. Nessa empreitada, o “empresário-escritor” deseja não apenas explorar a “mais-valia” de seus “colaboradores”, mas também um controle sobre a composição do “produto”, isto é, sobre o estilo, o assunto e o registro lingüístico que pretende adotar. Na verdade, seu objetivo maior é, como se pode perceber, tirar partido político de mais um empreendimento pessoal, que não conta com a efetiva distribuição de tarefas e méritos. No fim das contas, acaba prevalecendo, na elaboração do livro, o método artesanal, ou seja, o impulso para assumir sozinho a empresa, contando apenas com sua própria força de trabalho.

Na empreitada, entretanto, o destino se lhe mostrará adverso. A experiência de escrever levará Paulo Honório a dialogar dilematicamente com facetas inesperadas, num processo de auto-conhecimento problemático, contraditório, a partir do qual ele pode constatar que tudo ou quase tudo que ele tentou abarcar fugiu de seu controle. A fotografia disforme e temível do narrador personagem mostra uma imagem solitária, irascível, com os nervos inquietos rompendo os poros, a humanidade se aleijando sob o impulso do egoísmo e da animalização deformante, coerente com a escrita seca, descarnada, sem quaisquer concessões ao gosto de leitores atraídos pela retórica tradicional, própria da tradição bacharelesca do país.

Como é de se observar no comentário da passagem a seguir, o narrador – considerando sua fraca formação intelectual – julga-se com mais habilidades para escrever que seus companheiros, a exemplo do João Nogueira que queria o romance em língua de Camões, com períodos formados de trás para diante(5); ou ainda do Gondim que critica a marca da oralidade na escrita de São Bernardo, sob a alegação de que um artista não pode escrever como fala. No entanto, Paulo Honório se defende com o argumento de que não tem o intuito de escrever em conformidade com as regras e, embora afirme a superioridade de seu texto, acaba admitindo que, sem recursos literários, sua escrita é bem chinfrim.

A gradativa deformação física e moral de Paulo Honório desenha-se nas suas mãos que roubam, agridem e matam, mas que também escrevem e, ao fazê-lo, devolvem a humanidade ao escritor. Mãos ambivalentes que não escapam a uma analogia com muitos intelectuais brasileiros provenientes das elites rurais do país que são cooptados pelo mesmo sistema que denunciam. A contradição encerrada no duplo gesto de cooptação e denúncia foi objeto de referências críticas de Graciliano Ramos, que, em diversas ocasiões, presenciou essa situação vivida por escritores de seu tempo, alguns dos quais seus amigos. Em São Bernardo, há uma forte busca daquilo que falta a Paulo Honório: equilíbrio. Isto é, a possibilidade de conciliar o mundo subjetivo com o objetivo da personagem, suas ações externas com seus afetos. Essa procura de simetria leva ao rompimento dos padrões tradicionais de representação em vários níveis. Desde a estratégia de construção dos caracteres da personagem, que convergem para a imagem reduplicada do fazendeiro e do escritor, a sobreposição não é simétrica à realidade, provocando, em conseqüência, a distorção do relato. São imagens decorrentes da experiência e vivência de Paulo Honório, que se fixam, em diferentes planos visuais, entre a história do fazendeiro e a história do livro que está sendo escrito.

Ao mesmo tempo, o caráter de objeto que se constrói nos vaivéns narrativos e nos comentários sobre a construção do romance intensifica esse jogo. Tudo é problemático e está aparentemente emperrado, distante do fluxo cronológico vertiginoso que em ritmo rápido e avassalador levou Paulo Honório à posse da fazenda e à posse legal da mulher (Madalena, através do casamento). Já não é possível às vezes escutar, quando escreve o romance, o tique-taque do relógio. Sente-se paralisado no tempo. Esta faceta crítica do narrador-escritor mostra-se, pois, avessa ao tempo linear e contínuo, entendido pela máquina empresarial como produtivo.

A linearidade pretendida por Paulo Honório quando projetou escrever um livro não se realiza, assim, em razão da presença de Madalena. A partir do registro da entrada dessa personagem em sua vida já não consegue representá-la com exatidão e certezas. Madalena não constitui apenas uma presença aleatória, mas também é signo de um outro mundo – o mundo urbano e culto, que o narrador desconhece e, portanto, não pode dominar. Pior, embora casados simbolicamente através de Paulo Honório e Madalena, a cidade e o campo não conseguem estabelecer um trânsito entre si. Há contradições nessa junção rural e urbano: se Paulo Honório pode ser entendido como um novo empresário, o empresário burguês que se afasta do modo de produção capitalista patriarcal, ele não deixa de manter a ideologia senhorial, não se adequando aos tempos modernos e a seus valores mais democráticos, que o levariam a aceitar os valores da mulher culta, intelectual e socialista, por opção política. Esse desencontro é a tragédia pessoal de Paulo Honório, mas poderia ser vivida em qualquer parte do país.

É curiosa a estratégia narrativa usada por Graciliano Ramos para construir São Bernardo, visto concentrar-se na perspectiva de um narrador inculto e retrógrado, inabilitado, portanto, para escrever um romance. É a partir desse ângulo restrito, estranho ao âmbito de um intelectual cosmopolita, que ele vai procurar apresentar uma imagem nova do campo. Trata-se de uma opção consciente, por não se submeter à linguagem cristalizada nas academias citadinas, o que lhe permite afastar-se do senso comum da cultura letrada das elites intelectuais urbanas. Situado no cruzamento entre o rural e o urbano, Paulo Honório é um narrador complexo, em vários níveis. Troca a obsessão de ampliar a fazenda São Bernardo pela escrita do romance São Bernardo, espaço de efetiva transmissão da experiência.

O confronto, diante do espelho, entre o Paulo Honório empresário e o Paulo Honório escritor, que ao rememorar pode criticar o outro, provoca o aparecimento de novas imagens. Distorcer para revelar, provocando dessimetrias que favorecem o distanciamento necessário ao auto-conhecimento. As mãos que modelavam a matéria do romance, acabaram na verdade dando forma a si mesmas, em configurações não previstas no projeto inicial de Paulo Honório, revelando o que havia de cabeludo e monstruoso na experiência que ele, enquanto fazendeiro pretende transmitir. Em imagens sobrepostas, as mesmas mãos que destroem enquanto constroem a propriedade, são as que restauram a humanidade perdida, quando se voltam para o novo traçado simbólico de uma realidade que teima em fugir ao controle imaginário do narrador.

* Benjamin Abdala Junior é professor da Universidade de São Paulo.

Notas
(1) 27. ed. Rio de Janeiro, Editora Record, 1977.
(2) Este retoma parte do ensaio “O pio da coruja e as cercas de Paulo Honório”, de Personae: grandes personagens da literatura brasileira, volume organizado pelo seu autor e Lourenço Dantas Mota (São Paulo, Editora SENAC São Paulo, p. 163-194).
(3) São Bernardo, p. 171.
(4) São Bernardo, p. 127.
(5) São Bernardo, p. 9.

EDIÇÃO 68, FEV/MAR/ABR, 2003, PÁGINAS 70, 71, 72, 73, 74