A Chave das maiorias heterogêneas
O governo do presidente Luís Inácio Lula da Silva caminha para a montagem no Congresso Nacional de uma base de sustentação proporcional ao apoio popular recebido nas urnas. Eleito com 52 milhões de votos, ele chegou ao poder na cauda de uma ampla coligação de 12 partidos, liderada pelo PT, mas integrada com adesão ao programa por forças historicamente alinhadas com a democracia e a transformação social, e outras outrora oscilantes na sustentação do regime neoliberal. O arco democrático reúne PCdoB, PL, PTB, PDT, PSB, PPS, PV, PSD, PSL, PSC, PMN. A esta aliança, comum aos grandes momentos da História do Brasil, chamamos maiorias heterogêneas.
Nenhuma força política tem condições de empreender, sozinha, reformas mínimas de que o Brasil precisa. Ainda que conquiste soberbamente o Poder Executivo, como acaba de acontecer, não teria, no figurino democrático do modelo tripartite, condições de conduzir o país sem entendimentos demorados e complexos com o Legislativo. Tampouco se pode governar nos tempos atuais sem dispor, se não do apoio, ao menos da serenidade ou falta de hostilidade da mídia e de organizações da sociedade civil – estas, em numerosos casos, alinhadas a interesses externos. Quantos governos de orientação democrática não capitularam na América Latina por descuidarem da tensão, e do equilíbrio, permanentes desta correlação de forças?
As lutas sociais do Brasil nasceram e consolidaram-se sob a égide das maiorias heterogêneas. A primeira grande empresa política de nossa história reuniu, de forma até simbólica quanto à formação do povo brasileiro, o índio Filipe Camarão, o negro Henrique Dias e o rico proprietário de origem portuguesa João Fernandes Vieira. As forças que eles representavam expulsaram os holandeses do Brasil, no século XVII, num episódio-matriz da nossa história, ainda hoje balizador dos caminhos. A vitória sobre os holandeses e suas miçangas de belas-artes deu-se em memoráveis batalhas, militares e geopolíticas, de vez que o pano de fundo da disputa aparentemente territorial era o açúcar e o tráfico de escravos, cujo mercado Portugal disputava com os Países Baixos.
A Companhia Holandesa das Índias Ocidentais foi o braço de conquista econômica que pode ser considerado um dos primeiros empreendimentos transnacionais do mundo. Nasceu aí, também, a figura do trânsfuga esclarecido, o nacional que doutrinariamente prefere servir ao estrangeiro em vez de buscar um caminho soberano e autônomo para sua terra. Como Calabar, muita gente que não acredita no Brasil ainda acha que o país teria futuro melhor se os holandeses tivessem vencido. “Seria uma Java tropical”, respondeu-lhes Gilberto Freyre. As maiorias heterogêneas também se formaram nas outras lutas decisivas da História do Brasil, como a da Independência, Abolição da Escravatura, Proclamação da República, Revolução de 30 e no movimento de redemocratização dos anos 1980. Em mais de uma vez seguimos, com base no cenário internacional, políticas de Frente Ampla, marca do movimento comunista. Tais frentes surgem como efeito da História e conduto das táticas que se adaptam ao fluxo e ao refluxo das lutas do movimento democrático. As maiorias heterogêneas e as frentes amplas que as representam não se formam por empatias endógenas, antes elas são fruto de um adversário comum. Brotam da História quando o inimigo é universal, feito o fascismo, que no Brasil gerou seu oposto, nos anos 30, a Aliança Nacional Libertadora. O inimigo comum da Frente Ampla que se amalgamou na vitória do presidente Lula é a globalização e a ideologia neoliberal que arruinaram o país, a ponto de forças que montaram neste cavalo de Átila dele saltarem quando viram que por onde passava matava a grama.
Herança maldita X herança bendita
A mudança de rumo, se não era a preferida, tornou-se aceitável para muitos quantos provaram o gosto amargo de um modelo de capitalismo deformado que sangrou o país e ainda o consome por meio daquilo que o ministro José Dirceu chamou de “herança maldita”. Para eles, se o pensamento único era cartilha, hoje é leitura opcional. Pudera.
Dogmas como o da privatização a qualquer custo estão sendo revistos diante de fracassos atestados pela desestatização desastrada de que é exemplo eloqüente e patético o setor elétrico. Numerosas empresas patinam no dilema de se fechar ou se vender ao capital estrangeiro. A crise social – expressa no desemprego e na violência pública –, bate à porta de todos. Passada a ilusão da estabilidade monetária como panacéia econômica, boa parte dos que vestiam o gibão neoliberal hoje percebe que a história talhou outros figurinos. Foi daí que ocorreu o esboroamento da frente amplíssima que por duas vezes sustentou o presidente Fernando Henrique Cardoso. Dividida, facilitou a vitória da coligação que elegeu o presidente Lula.
A política das maiorias heterogêneas equilibra-se num programa mínimo em que os integrantes não se mimetizam nem se canibalizam. Cada força organizada tem autonomia para tomar rumos que não sabotem a plataforma comum, sem renunciar a seus objetivos estratégicos. Pratica-se, assim, o vitorioso lema “marchar separados, golpear juntos”. Todo o esforço da liderança do governo será dirigido ao convencimento das forças heterogêneas de que suas contradições com o caminho neoliberal devem ser duradouras, porque reclamadas pelo povo, em direção a um projeto nacional de desenvolvimento independente. Nessas fileiras, ninguém é ingênuo a ponto de esperar que tudo fique como era. Se a maioria da nação quisesse o continuísmo teria eleito José Serra.
Todo governo tem, no entanto, um tom e um rumo que lhes foram dados na origem pelas armas ou pelas urnas. Os votos dados à coligação do presidente Lula entraram nos computadores com a efígie da mudança. As forças constitutivas do núcleo histórico da esquerda que desde 1989 disputava a Presidência da República sempre deixaram claro que a transição para um governo de caráter democrático e popular é compromisso doutrinário. Se nos primeiros meses a administração está impossibilitada de sustar medidas antipopulares e antinacionais, pois só assim garante o curso do país, seu programa é inverso – e será cumprido tão logo o país entre em convalescença. Por enquanto, está numa UTI em que os remédios não curam o doente, mas este não tem forças para mudar a receita e nem para levantar-se e ir embora. Sua meta é manter-se vivo. Seu dilema é como melhorar para mudar.
As alianças heterogêneas estão sujeitas a reparos que merecem atenção. Mudanças têm sido realizadas, mas não aprofundadas. E o exemplo típico é a Abolição da Escravatura, que libertou os cativos sem dar-lhes oportunidade de integração efetiva à sociedade nacional. Muita terra foi redistribuída, mas estamos por completar a reforma agrária plena, tarefa histórica da elite urbana que a ela renunciou. Os projetos de desenvolvimento autônomo do país – esboçados desde a Inconfidência Mineira e, na Independência, por José Bonifácio, com avanços primorosos na Proclamação da República e na Revolução de 30, ciclo que se estendeu até os anos 60 –, constituem a herança bendita. Cumpre agora completar essas reformas e descortinar novos horizontes para o país e para o povo.
O desafio ao governo é manter unida a base que o elegeu, e trabalhar para ampliá-la, não desdenhando a contribuição, por mais limitada que seja, de todos os que desejam desatar o nó do modelo de dependência e involução a que o Brasil foi atado.
*Aldo Rebelo é vice-presidente do PCdoB e líder do governo na Câmara dos Deputados. Correio eletrônico: [email protected]
EDIÇÃO 68, FEV/MAR/ABR, 2003, PÁGINAS 20, 21