Resumidamente, para os neoliberais, o Estado: 1) tem sua ação econômica definida de modo exclusivamente exógeno face à economia; 2) contrapõe-se à natureza do indivíduo como sujeito utilitarista, homo economicus e consumidor soberano; e 3) constrange a liberdade de iniciativa empresarial e prejudica a racionalidade dos mercados auto-regulados. Portanto, a forma e as funções do Estado devem ser minimizadas.

Para os keynesianos, a ação econômica do Estado decorre da necessidade de correção das falhas do mercado. Para Keynes, a crise cíclica seria evitável, através da política econômica de governo. As medidas anticíclicas evitariam o desequilíbrio e a crise resultantes do funcionamento espontâneo do mercado. Nesse sentido, o pleno emprego seria buscado pela adoção de medidas expansionistas da renda nacional, atuando-se na oferta monetária (e redução da taxa de juros), nos gastos públicos (déficits orçamentários), na tributação e também nos programas de obras públicas.

Para os marxistas, o desequilíbrio e as crises econômicas são intrínsecas ao capitalismo. As perturbações no funcionamento da economia decorrem da operação lógica das leis de movimento do capitalismo. A concentração do capital, a exacerbação da dominação financeira e o gigantismo do desemprego caracterizam o capitalismo contemporâneo.

Hoje, o neoliberalismo, mediante a desregulação estatal, aproximou ainda mais o capitalismo da pura e livre manifestação de suas contradições imanentes. Além disso, a obsessão deflacionista, superávits orçamentários, cortes de gastos públicos e a política de elevadas taxas de juros reais positivos configuram uma política governamental pró-cíclica, reforçando as tendências contracionistas na economia.

O resgate do debate sobre o papel do Estado mostra o estruturalismo, situando o Estado em autonomia relativa perante as classes dominantes, conforme Poulantzas. Essa autonomia, embora relativa, abre a possibilidade de certas ações estatais favoráveis à classe dominada, sem mudar o status quo. Na herança de Poulantzas, a escola francesa da regulação enfatiza o papel de um regime de acumulação, decorrente de padrões estáveis e regularidades de reprodução do sistema, como demonstraria o fordismo e o Estado de Bem-Estar. De outro lado, Miliband privilegia o papel da luta de classes em relação ao Estado. A instrumentalização estatal a serviço dos interesses econômicos da classe dominante refuta qualquer veleidade de neutralidade do Estado. Os autores derivacionistas assinalam a necessidade lógica do Estado, derivando-se das relações de produção capitalistas.

Assim, Estado, conforme, por exemplo, Altvater, “tem o encargo de reproduzir o capital na sua totalidade, regulamentando o conflito capital-trabalho, proporcionando a infra-estrutura necessária, ajudando o capital nacional nos mercados internacionais e regulamentando o desenvolvimento capitalista por meio da política fiscal e monetária”. Brunhoff acentua a necessidade de gestão estatal especialmente sobre a força de trabalho e a moeda, embora faça a ressalva acerca da eficácia limitada da intervenção governamental que não pode ser a solução das contradições básicas do processo reprodução do capital(1).

Após esse debate, houve a experiência concreta do neoliberalismo, nas décadas de 1980 e 1990, onde, a depender das particularidades históricas de cada país, desferiu-se, em maior ou menor grau, um duplo ataque, atingindo tanto o mundo do trabalho como a regulação keynesiana e nacional pelo Estado. Diante da crise econômica dos anos 70, buscou-se uma reestruturação do capitalismo, combinando-se os mais diversos fatores, como novas tecnologias, desregulamentação, liberalização dos mercados, privatização de empresas estatais, integração das esferas nacionais, supressão de direitos trabalhistas e previdenciários, repressão.

A onda neoliberal, a partir de Margareth Tatcher e Ronald Reagan, ganhou força política material decorrente de sua entronização, ironicamente, no próprio aparelho de Estado de grandes potências, como Estados Unidos e Inglaterra. Esse fato é revelador de um processo em que se preserva o papel destacado, no plano econômico e internacional, dos Estados centrais, enquanto o grande capital, com ação global, busca fragilizar os Estados na periferia capitalista. Ademais, argumenta-se que a própria globalização econômica, que supostamente apagaria as fronteiras nacionais, defronta-se com um grande obstáculo político materializado na existência sólida dos Estados Nacionais.

A despeito da dominação unilateral da superpotência norte-americana, há que se reconhecer a constituição e consolidação de um extenso sistema de Estados no mundo contemporâneo. Ignacy Sachs refere-se a uma classificação da trajetória do Estado, a partir do final da segunda guerra mundial, genericamente, em três momentos (2): i) De 1945 a 1970, com aumento da intervenção econômica, expansão dos gastos públicos e nacionalização; ii) nos anos 1970, a ação econômica do Estado é objeto de forte contestação teórica e política; e iii) desde 1980 até hoje, desregulação, privatizações e cortes orçamentários.

Desenvolvimento

O desenvolvimento em uma formação social submete-se, no plano mais geral, às leis de movimento do modo de produção capitalista, em um processo de antagonismo entre o capital e o trabalho, concentração do capital e inevitabilidade das crises cíclicas de superprodução. O capitalismo confirmou-se como um sistema potencialmente eficiente na produção de riqueza e incapaz de superar a desigualdade na distribuição do produto. O limite de suas reformas e, portanto, da tendência política reformista, continua sendo a produção socializada e a apropriação privada da riqueza. A lógica da produção é dada pelos seus fins lucrativos, e não pelas necessidades sociais. No plano macroeconômico, o nível de emprego depende essencialmente da taxa de lucro.

O desenvolvimento desigual entre empresas e países depende dos diferenciados ritmos de elevação da produtividade do trabalho. As transformações estruturais operadas pelo surgimento dos monopólios e do capital financeiro constituem o imperialismo, presente até os nossos dias, criando as condições para um desenvolvimento combinado com subdesenvolvimento em alguns países periféricos. A expansão do capital mundialmente é uma necessidade inerente ao capitalismo: o capital não se reproduz, se não houver sua acumulação, expansão. As relações sociais de produção engendram o mercado interno nas esferas nacionais, viabilizando-se o investimento industrial nos diversos ramos, inclusive a importação do capital produtivo originário das grandes potências.

Convencionalmente, o desenvolvimento é definido como o crescimento econômico, por meio do incremento do produto nacional bruto per capita, ao lado do progresso técnico na estrutura produtiva e avanço das condições de vida da população.

Os países atrasados percorreriam uma trajetória natural, evoluindo por etapas, conforme o processo já vivido pelos países desenvolvidos, na abordagem de modernização conservadora apresentada por Walter Rostow. Nesta interpretação, todas as nações experimentariam um desenvolvimento linear, atravessando as etapas da economia tradicional, das condições para a decolagem, do crescimento como uma regularidade, da maturidade tecnológica e produtiva, da plenitude do consumo de massas.

A subida da maré levanta todos os navios, mas a expansão da riqueza, no sistema capitalista, tem beneficiado alguns países, sem se estender aos demais. Assim, a Cepal, sobretudo na década de 1950, elabora um pensamento baseado em aspectos históricos e estruturais relativamente ao capitalismo como sistema mundial em que coexistem centro e periferia, com os benefícios do progresso técnico apropriados pelos países centrais, enquanto o livre-comércio, justificado pela teoria ricardiana das vantagens comparativas, condena os países periféricos à especialização em produtos primários e ao subdesenvolvimento. A Cepal propunha, então, uma guinada estrutural, com o processo de industrialização por substituição de importações, a partir do planejamento e intervenção do Estado desenvolvimentista.

A própria experiência histórica e, sobretudo, o período recente de desregulação e “financeirização” têm confirmado que o capitalismo é uma forma de organização social, que, por natureza, dispõe de grande potencial produtivo em contraste com sua inerente incapacidade distributiva para a maioria social trabalhadora, com “desprezo pelas condições particulares de existência dos povos e pelos conteúdos da vida”(3).

No plano mais concreto e imediato, criticando-se, hoje, os desvios do passado e colocando-se em alternativa ao neoliberalismo, surge o neodesenvolvimentismo no Brasil. No programa do governo Lula destaca-se a fixação da questão social como o eixo do desenvolvimento econômico. Neste sentido, o novo modelo de desenvolvimento privilegia o mercado interno, com a meta de inclusão de milhões de brasileiros à participação econômica, ao consumo e aos direitos sociais. Nessa concepção, a geração de empregos, o combate à concentração de renda, a caminhada para a superação dos vergonhosos indicadores sociais são as balizas da atuação do Estado. Por isso mesmo, no âmbito do Programa Fome Zero destacam-se as políticas relativas aos incentivos para a criação de emprego, apoio ao primeiro emprego, elevação do salário mínimo e requalificação profissional. O Brasil continua na liderança mundial da pior distribuição de renda: mais de 50% da renda ficam nas mãos dos 10% de brasileiros mais ricos, enquanto só 12% da renda restam para os 12% mais pobres. O país situa-se em 70º lugar no IDH (índice de desenvolvimento humano).

Industrialização

O estrangulamento externo é uma restrição à economia nacional em decorrência da escassez de divisas diante da necessidade de importação de bens e serviços demandados pelo crescimento econômico. A política de substituição de importações, fomentando a implantação de setores industriais, é um esforço para progressivamente reduzir essa dependência externa, vinculando estrategicamente o desenvolvimento do país ao seu próprio mercado interno. O desequilíbrio externo refletia-se na elevação dos preços dos produtos importados, favorecendo a substituição desses setores, que já contavam com uma demanda.

A década de 1930 significou uma arrancada decisiva na industrialização brasileira. A indústria cresce, em média, ao ano: 4,6% entre 1911 e 1919; 3,9% de 1920 a 1928; 1% entre 1919 e 1932; e elevados 11,2% de 1933 a 1939. Os créditos destinados à defesa do café e a desvalorização da moeda nacional favoreceram a recuperação da renda nacional em 1933 e a proteção da indústria nacional. Sob as condições da segunda guerra mundial, aproveita-se plenamente a capacidade produtiva da indústria, contando com maquinaria antiga. Em 1946 começou a operar a Companhia Siderúrgica de Volta Redonda. Na primeira metade dos anos 1950, o segundo governo Vargas – além de criar o BNDE e a Petrobras – reage, com investimentos em usinas hidrelétricas, diante da estagnação de investimentos, desde 1930, pelas concessionárias estrangeiras de energia elétrica na estratégica região Sudeste (Brazilian Traction/Light e Bond & Share/AMFORP). O Plano de Metas, no governo Juscelino Kubitschek, promove uma estruturação industrial madura no país.

O II PND (Plano Nacional de Desenvolvimento) significou um amplo conjunto de investimentos para o período de 1975 a 1979. Apesar da crise internacional, o governo Geisel propôs-se a manter o crescimento econômico, com projetos de grande porte nas indústrias básicas e na infra-estrutura, contando com importante endividamento externo, aproveitando a ampla liquidez nos mercados financeiros nos países centrais. Avançou-se nos setores de siderurgia, petroquímica, de minerais não-metálicos, papel e celulose.

Registra-se o projeto da Nuclebras, em Angra dos Reis. Operou-se uma tentativa de desconcentração econômica, como mostram os projetos, por exemplo, dos pólos petroquímicos na Bahia e no Rio Grande do Sul; minério de ferro em Carajás; soda de cloro em Alagoas; fertilizantes em Sergipe; Itaipu no Paraná.

Os planos de desenvolvimento desaparecem nos marcos da crise da dívida externa nos anos 80. Nesse período, a necessidade de restringir dramaticamente as importações – com vistas à geração de gigantescos superávits comerciais, obtendo os dólares requeridos pelo serviço da dívida externa – implicou no fechamento da economia brasileira, nos anos 1980, com forte proteção da empresa doméstica, ao lado da recessão geradora de excedentes de bens para a exportação.

O modelo nacional-desenvolvimentista, designado genericamente como processo de substituição de importações, permitiu que o Brasil crescesse 7,3% ao ano de 1950 a 1980. Entretanto, essa marcha acelerada foi interrompida: na década de 1980, o PIB cresceu 2,9% e na década mais do que perdida, os anos 1990, a tendência de estagnação confirmou-se pela variação anual de 1,9% do PIB.

Desmonte do Estado desenvolvimentista

“Não resta dúvida – para qualquer analista sério e informado – que o desdobramento e a concretização dos processos de industrialização dos países periféricos dependeram diretamente da iniciativa, fomento e coordenação por parte do Estado”(4). Assim, o Estado apela para amplo conjunto de políticas e instrumentos: financiamento subsidiado, reserva de mercado, proteção tarifária e cambial, incentivos fiscais, favorecimento nas licenças de importação de máquinas e equipamentos, controle sobre remessas de lucro e operações cambiais, subsídios à exportação, etc.

O Estado desenvolvimentista percorre um longo processo de formação e consolidação, desde os anos 1930. Com a crise do desenvolvimento, esse Estado é questionado em sua relativa capacidade de orientação, implementação e financiamento de atividades estruturantes da economia nacional. Na década de 1980, os problemas macroeconômicos de ajuste e estabilização tomam as atenções do Estado em vez das metas desenvolvimentistas de longo prazo.

Os organismos internacionais multilaterais impõem o ajuste das economias periféricas, sobretudo na América Latina, com as reformas orientadas para o mercado. No Brasil, a partir do governo Fernando Collor, em 1990, passa a operar uma estratégia política e ideológica com o firme objetivo de desmonte do Estado, sob forte influência do Consenso de Washington. Nesse sentido, a política econômica, a partir daí, teve caráter neoliberal, e seu principal alvo foi o Estado desenvolvimentista. Avalia-se que o modelo de substituição de importações e a intervenção estatal teriam sido a causa das dificuldades econômicas dos anos 1980. Contra a história da atuação do Estado desenvolvimentista são levantadas as condenações referentes ao autoritarismo; restrita participação política das massas; concentração da renda e da riqueza.

Os representantes do governo Fernando Henrique não reconhecem esse caráter neoliberal, insistindo em caracterizar a sua orientação econômica como simples bom senso, em razão da estabilidade monetária e da responsabilidade fiscal, e única proposta concreta existente em face da ausência de alternativa, nos marcos da globalização.

Na verdade, o funcionamento da economia passou a depender exclusivamente da espontaneidade do mercado, bem entendido, dos planos do grande capital, sobretudo dos investidores financeiros internacionais. Inédita desnacionalização avassalou a economia, transferindo os centros de decisão para as grandes potências. A política de desenvolvimento e o método do planejamento, no longo prazo, foram abandonados como coisas ultrapassadas, que não convinham ao novo papel do Estado. As políticas setoriais foram classificadas de anacronismo. Extinguiram-se os instrumentos de condução macroeconômica, prevalecendo a passividade governamental. Privatizaram-se empresas monopolistas, mas não funciona sequer o chamado Estado regulador, a partir das agências.

No processo de industrialização brasileira, o Estado desenvolveu políticas que protegeram o mercado interno da concorrência externa. Isso foi anulado abruptamente pela abertura da economia, em busca da adoção do livre comércio e da integração à globalização. Entretanto, os Estados centrais pregam o livre-cambismo, mas mantêm barreiras alfandegárias, fito-sanitárias, cotas, além dos subsídios para determinados setores, como a agricultura, nos Estados Unidos e Europa. Os subsídios públicos constituem 40% da renda na agricultura norte-americana. Os Estados Unidos fazem política industrial e comercial, em defesa de suas empresas. Por exemplo, setores siderúrgicos foram protegidos por barreiras protecionistas impostas pela atual administração Bush.

A estratégia antiestatal brasileira materializava-se nas privatizações, na contração do gasto público, no recuo do Estado da regulamentação dos mercados, nas aberturas comercial e financeira. Esse processo intensifica-se com o governo do presidente Fernando Henrique, que no discurso de posse, expõe sua missão de encerrar a era Vargas.

Constatava-se, supostamente, “a necessidade de redefinir e reconstruir o Estado se tornou uma questão da mais alta prioridade”(5). Esvaziando o Estado, constituem-se as agências reguladoras, apoiadas na retórica que as justificava como instrumentos de modernização, eficiência e democratização da gestão pública.

A Constituição Federal de 1988 foi objeto de uma revisão, através da supressão do monopólio estatal do petróleo, das telecomunicações, da mineração e da navegação de cabotagem, abrindo-se as portas para as privatizações e desnacionalização em setores estratégicos.

O Brasil, como outros países latino-americanos, tem a especificidade e a prova histórica da participação fundamental de empresas estatais na deflagração e expansão do processo de industrialização e desenvolvimento. No âmbito da crise dos anos 1980, com a política de tarifas rebaixadas para combater a inflação e subsidiar o setor privado e o bloqueio de novos investimentos, acumularam-se dificuldades para algumas empresas estatais. Com a privatização dessas empresas, o Estado perde instrumentos poderosos para influenciar na dinâmica da economia e orientar o rumo estratégico do país. Contudo, da fúria privatista, com a venda de 107 empresas, há duas grandes sobrevivências: Petrobras e Banco do Brasil.

As privatizações impulsionaram a desnacionalização da economia. Das 550 maiores empresas do país, a participação das empresas estrangeiras nas vendas passou de 32%, em 1994, para 44,7%, em 1999. Hoje, entre as 500 maiores empresas, 47% são propriedade do capital estrangeiro.

O Banco Central tornou-se um aparato fundamental para a definição da natureza da ação estatal na economia. Trata-se da principal instituição econômica da nossa sociedade, afirma Aglietta(6). Ele critica os países que têm o banco central conduzido por determinada taxa de câmbio, como no exemplo da já revogada lei de paridade peso-dólar na Argentina, em detrimento da atenção sobre crescimento, desemprego e inflação. Assim, dada sua importância na política econômica do governo, constata-se que a atuação do Banco Central não ficaria incólume em meio ao vendaval de reação ao Estado desenvolvimentista no Brasil.

O Banco Central tem sido complacente com o oligopólio dos bancos na mesma medida em que tem sido uma instituição à margem do controle da sociedade civil e do Congresso Nacional. Para que o Banco Central pudesse operar com essa grande e perniciosa autonomia, na prática, o governo Fernando Henrique interditou a regulamentação do artigo 192 da Constituição Federal de 1988.

O Banco Central não assume a responsabilidade fiscal pelo custo de R$ 20 bilhões do PROER e pela sua conivência com os especuladores, os quais impõem a desvalorização cambial e lucram com os títulos da dívida pública indexados ao dólar. Por ser emprestador de última instância, por operar as políticas monetárias, e cambial, e, no caso do Brasil, gerir a dívida pública, o Banco Central deveria ter seu estatuto jurídico, na regulamentação do artigo 192 da Constituição, estabelecendo-o como uma instância de governo, submetida ao Ministério da Fazenda e à Presidência da República, operando como aparato institucional da política de desenvolvimento econômico do país. Assim, não cabe a insistência dos mercados financeiros na tentativa de impor, dessa vez formalmente, a independência do Banco Central. Ao contrário do que se propala, o problema tem sido a autonomia e a falta de transparência nas relações entre os diretores do Banco Central e os bancos privados e interesses internacionais, como os fatos comprovam, nos anos 1990. A necessidade real é de definição dos limites e responsabilidades dos seus diretores, das regras precisas na assistência à liquidez e demais atividades do Banco Central.

Os objetivos referentes ao crescimento econômico e à inflação devem ser decididos fora do Banco Central, pelo governo, a partir do seu planejamento. O Banco Central deverá cuidar da operação da política monetária para atender esses objetivos. A volta da cantilena da independência do Banco Central é uma maneira de continuar o desmonte do Estado, interditando a formulação e condução de política econômica pelo governo.

Restrições, transição e 2003

A especulação contra o real, a elevação do dólar, os títulos da dívida interna indexados ao câmbio e com vencimentos encurtados e, ainda, a volta da inflação, são restrições macroeconômicas que facilitam a imposição de recursos convencionais e ortodoxos da instrumentação fiscal e monetária. Foi assim que ficou aberto o caminho para a pressão conservadora, impondo a agenda da manutenção e agravamento do superávit primário e das altas taxas de juros. Também a intocabilidade dos contratos, da lei de responsabilidade fiscal e do regime de metas de inflação apresenta-se como fato consumado, uma verdadeira cláusula pétrea, quintessência dos sábios e racionais mercados financeiros. Nesses termos, a política fracassada pretende sobreviver.

A desvalorização do real, elevação do preço do petróleo e os aumentos das tarifas públicas deflagraram a volta da elevação geral dos preços, desde o último trimestre de 2002, contaminando os preços dos diversos setores da economia. Com a desvalorização da moeda nacional, os insumos importados geram impactos nos custos dos produtos nacionais, criando-se pressões inflacionárias. No caso dos produtos exportáveis, seu preço interno é aumentado, equiparando-o ao preço internacional porque a referência é a receita possível de ser obtida com suas vendas no exterior, como tem ocorrido com o açúcar, a soja e o papel e celulose. Os preços desses tipos específicos de produtos podem ser objeto de negociação, como o governo Lula já tratou, relativamente, no que diz respeito ao setor sucroalcooleiro, ou aumento dos impostos de exportação, ou mesmo controle administrativo temporário de preços em alguns casos de bens essenciais.

Os contratos de privatização e de concessão de serviços públicos permitem a majoração de preços, conforme o Índice Geral de Preços (IGP), incorporando a influência da elevação dos preços internacionais nos produto no atacado, a partir da elevação do dólar. Nos últimos oito anos, os preços “controlados” dispararam, tendo, em alguns casos, atingido 3.000%. São aumentos de preços de itens que pressionam o nível geral de preços, representando, sobretudo, um saque contra os parcos rendimentos da população mais pobre. Esse problema envolve gás de cozinha, gasolina, transporte urbano, água e esgoto, energia elétrica, telefone, etc. É claro que esses contratos de privatização têm que ser revistos.

O Banco Central tem insistido na mesmo reação diante da pressão inflacionária: elevar a taxa básica de juros. Com juros altos, o Banco Central, assim como se fazia no governo anterior, pretende combater a inflação e atrair capitais externos. O uso convencional da política monetária vinha sendo determinado há muito tempo pelas dificuldades do balanço de pagamentos, mas ultimamente tem sido condicionado pelas pressões inflacionárias.

Considerando o desemprego vigente e a retração da demanda, o aumento de juros, que já eram os mais altos do mundo, apenas promove-se mais pressão recessiva, freando os investimentos produtivos, ampliando novamente, ainda mais, o desemprego. Um outro efeito das elevadas taxas de juros é o recrudescimento da desorganização das contas públicas, inclusive de Estados e municípios, como se atesta com o atraso de pagamento de funcionários em grandes Estados, nos primeiros meses de 2003.

Entretanto, alterando-se a política econômica, estima-se que “um crescimento de 4% do PIB ao ano permite uma expansão da receita pública de 5% a 7% ao ano”(7). Na relação dívida/PIB, os cortes de gastos (destinando recursos para pagamento da dívida) são inutilizados pelo efeito automático dos juros altos como aumento da dívida, sob a condição de estagnação da economia. A insistência em taxas de juros exageradas logo atingirá o limite da capacidade política de impor cortes orçamentários extravagantes.

O combate à inflação exige o estímulo à produção, ampliação da oferta. Em contraste com a ineficácia antiinflacionária dessa restrição monetarista da demanda, ainda em vigor, propõe-se a retomada do crescimento dessa produção para engendrar emprego e renda, para privilegiar o mercado de massas, para esvaziar o conflito distributivo específico do processo inflacionário, assegurando-se a oferta alargada, sustentada temporalmente, inibindo as expectativas de pressões de elevação dos preços. Um processo de ampliação da oferta, satisfazendo o esforço exportador, sem sacrificar a prioridade do mercado interno, significa uma possibilidade de razoável controle da inflação de modo sustentado no longo prazo.

Na transição para um novo papel do Estado, além de se limitar a dependência do Banco Central perante as instituições financeiras privadas, há que se reformular o significado, detalhar a atribuição e limitar a autonomia das agências reguladoras. Na prática, essas agências são um fator de esvaziamento da capacidade de intervenção do Estado. São instituições “capturadas” pelos supostos regulados, as empresas monopolistas ou oligopolistas privadas. Muitas das atribuições abusivas hoje concentradas nas agências devem ser transferidas para a esfera do governo e de câmaras setoriais.

No começo do novo governo, a herança macroeconômica perversa, advinda do governo Fernando Henrique, combina-se com pesadas restrições externas. Os Estados Unidos não conseguiram recuperar a sua economia e a estagnação tem abrangência mundial. Além disso, há a ameaça de guerra contra o Iraque, ampliando ainda mais a aversão ao risco nos mercados financeiros internacionais, sobretudo para a periferia. Os problemas na Argentina, Venezuela, Uruguai, Paraguai, Equador e Bolívia repercutem na elevação da taxa de risco para toda a região sul-americana.

As expectativas para o ano de 2003 são de baixo crescimento. Não vai haver, provavelmente, significativa queda do desemprego. Além das restrições internas, o ambiente externo é muito desfavorável. As respostas, na política econômica, nos primeiros dois meses de governo, foram convencionais.

Porém, as primeiras medidas, os sinais de novos tempos são indispensáveis. Algumas mudanças são possíveis. O salário mínimo é o instrumento mais importante de proteção e defesa dos pobres, tendo grande importância na renda das famílias dos aposentados, e tendo também a função de referência para os demais salários. O começo do processo de recuperação do salário mínimo não pode ser retardado. É preciso apontar para uma política para a recuperação econômica, sobretudo sinalizando contrariamente aos arroubos monetaristas do Banco Central e aos excessos ortodoxos na forma de cortes de gastos e superávit primário. Contrariamente ao imobilismo, alguns passos podem ser dados no sentido de certos investimentos públicos e gastos sociais, e da expansão de crédito seletivo pelas instituições financeiras públicas. Há que se iniciar um processo de enfrentamento da dominação puramente rentista e financeira, com a queda gradual nas taxas de juros. Medidas viáveis nas atuais condições meramente administrativas podem ser interpostas para exercer certo monitoramento sobre o movimento de capitais e proteger o nível das reservas internacionais. Impõe-se caminhar em direção a uma nova estratégia relativamente ao modelo de gestão das contas externas e ao crescimento econômico. Para começar, alimentos, habitação popular e saneamento, educação e saúde, energia e transportes deveriam compor a agenda dos setores classificados como prioritários e que reclamam as primeiras medidas, no período de transição, favorecendo o início do movimento para a criação do mercado de consumo de massas e para a recuperação do emprego e do crescimento.

Recordando a experiência recente e o problema da transição, é importante considerar interpretações emanadas do governo Fernando Henrique. Em 1996, Gustavo Franco, José Roberto Mendonça de Barros e Lídia Goldenstein, importantes membros da equipe econômica do governo Fernando Henrique, defenderam, através de dois escritos, a opinião de que estava em curso um processo progressista de transformação estrutural no Brasil. Conforme crítica do professor Erber, a retórica desses representantes do governo de então explicita o mito da travessia (8): “o padrão de desenvolvimento passado da economia brasileira, liderado pela substituição de importações e pelo Estado e apoiado no tripé empresa estatal/empresa estrangeira/empresa nacional familiar, era ruim e esgotou-se. Um novo padrão de desenvolvimento, mais adequado às condições internacionais e, internamente, mais dinâmico e mais igualitário, está em gestação.”

Essa travessia era só retórica porque os fatos, a partir da política neoliberal encaminhada pelo governo Fernando Henrique, desmentiam uma recuperação do dinamismo, da competitividade e do avanço da economia brasileira.

Não há, nos países periféricos, modelos de transição da malfadada guinada neoliberal do final do século XX para o neodesenvolvimentismo voltado para os objetivos nacionais, democráticos e sociais. As reformas efetivamente necessárias ao desenvolvimento exigem razoável prazo para sua aprovação. Alguns aspectos relativos ao pacto federativo, no que diz respeito às relações entre o presidente e os governadores, devem estar voltados para o crescimento econômico e as políticas sociais de emergência e de longo prazo. O novo governo deve levar a efeito políticas que não sejam convencionais, refutando os enviesados e interessados julgamentos e sentenças dos mercados financeiros. Ao contrário de descrença na atividade política, há, por parte do povo, confiança e expectativa em relação ao governo Lula. O governo deve manter uma interlocução com a sociedade, tratando das demandas reprimidas e do passivo social, discutindo prioridades e prazos.

No processo de transição, os custos de reversão da política econômica são altos, em razão do país ter se inserido na globalização de uma forma que resultou em dramática dependência de capitais externos, tornando-se refém da lógica de valorização de capitais dos externos. Mantém-se muito elevada a taxa de risco soberano do Brasil. Estima-se que o Brasil necessita de cerca de US$ 30 bilhões para efetuar transações e honrar compromissos externos em 2003. Sobretudo no período de transição, há uma necessidade de forte incremento das exportações, além dos esforços de substituição de importações, perseguindo-se a meta de elevado superávit comercial.

Conservação e adaptação à herança neoliberal ou inovação e mudança. Na gestão do processo de transição, o novo governo defronta-se com dois perigos, ameaças reais à atual oportunidade de mudança relativa no Brasil: primeiro, o imobilismo, a cautela excessiva, a timidez, a perplexidade, advindos da confusão de objetivos, e da cooptação pelas elites; e segundo, a precipitação, o volutarismo, o açodamento, advindos do cansaço da longa espera e da premência do enfrentamento dos problemas cruciais brasileiros. Cabe esclarecer qual dos dois desvios aparece com mais força neste momento inicial da transição. Dadas as próprias restrições macroeconômicas vigentes e a grande força política da oposição, inclusive governando importantes Estados, não há dúvida de que o primeiro risco merece mais atenção. Por fim, como se sabe, as conquistas da transição ao neodesenvolvimentismo democrático e popular dependem da correlação de forças entre os que querem a mudança e os que reagem para conservar o neoliberalismo.

* Renildo Souza é economista e membro do Comitê Central do PCdoB.

Notas
1) MOLLO, Maria de Lourdes Rollemberg. “A concepção marxista de Estado: considerações sobre antigos debates com novas perspectivas”. Economia. Niterói (RJ), v. 2, n.2, p. 347-389, jul./dez. 2001.
2) SACHS, Ignacy. “O Estado e os parceiros sociais: negociando um pacto de desenvolvimento”. In: PEREIRA, L. C. Bresser, WILHELM, Jorge e SOLA, Lourdes. (Orgs.). Sociedade e Estado em transformação. São Paulo: Unesp; Brasília: ENAP, 1999.
3) BELLUZZO, Luiz Gonzaga. “Finança global e ciclos de expansão”. In: FIORI, José Luiz. (Org.). Estados e moedas no desenvolvimento das nações. Petrópolis, RJ : Vozes, 1999, p. 116.
4) COUTINHO, Luciano. “Coréia do Sul e Brasil: paralelos, sucessos, e desastres”. In: FIORI, José Luiz. (Org.). Estados e moedas no desenvolvimento das nações. Petrópolis, RJ: Vozes, 1999, p. 357.
5) BRASIL. Presidência da República, Comissão da Reforma do Estado. White Paper Reform of the State Aparatus. Brasília, 1995, p. 14.
6) AGLIETTA, Michel. “Moeda e política monetária: o alimento do poder”. Rumos, nov. 2001, p. 4-8.
7) Programa de Governo. Op. cit.
8) ERBER, Fábio Stefano. “O mito da travessia e a retórica oficiosa do governo: Franco, Mendonça de Barros e Goldenstein”. Boletim de Conjuntura. Instituto de Economia – UFRJ, vol. 16, nº 3, out. 1996, p. 68.

EDIÇÃO 68, FEV/MAR/ABR, 2003, PÁGINAS 34, 35, 36, 37, 38, 39, 40, 41