Dentre os grandes acontecimentos de nossa época, as manifestações maciças em escala planetária contra a guerra imperialista se inscrevem como um dos mais destacados. Seu verdadeiro significado será aquilatado com o tempo histórico e seus reflexos se farão sentir nas lutas políticas e sociais vindouras. Mas não cabe dúvida de que nos dias 15 de fevereiro e 15 de março deste ano os povos escreveram uma página inédita na história contemporânea e protagonizaram um episódio transcendente. Inauguraram um novo momento da luta antiimperialista. Fundaram o marco miliário de uma nova luta, desencadearam uma insopitável força até então represada e latente, lançaram as bases de um internacionalismo com caráter mais amplo, com forma flexível e conteúdo radical e revolucionário, o internacionalismo das forças em luta contra a barbárie, pois é do que se trata quando se generaliza a opressão decorrente da globalização capitalista e a guerra de agressão se impõe como única via do imperialismo para enfrentar sua prolongada crise.

A grande mobilização de massas contra a guerra corresponde à emergência de novos pólos, num quadro em que objetivamente está ruindo a “ordem” mundial inaugurada na última década do século XX. Aos poucos vai aparecendo uma polarização entre o imperialismo estadunidense e os povos. O isolamento político e diplomático do governo Bush, a condenação de sua política belicosa por milhões de pessoas nas ruas em todo o mundo, o veemente repúdio à própria essência da política imperialista, assinalam que estamos no limiar de nova fase da luta antiimperialista. Com uma bandeira política simultaneamente ampla e radical – a luta contra a guerra imperialista – retorna ao proscênio da nossa época o protagonismo do movimento político de massas.

Um massacre baseado em mentiras

O novo quadro em formação decorre de uma tomada de consciência de que a humanidade está a braços com a mais grave ameaça à sua sobrevivência desde sempre até os nossos dias. A segunda guerra norte-americana no Golfo contém a ameaça de provocar uma catástrofe humana de proporções inauditas. A ação da colossal máquina de guerra norte-americana no Golfo – cerca de 300 mil soldados, centenas de belonaves, aviões, armas sofisticadas, inclusive as de destruição maciça, milhares de toneladas de explosivos –, o unilateralismo das ações do governo estadunidense e o furor de facínoras encastelados na Casa Branca, num flagrante desrespeito a todas as normas diplomáticas, a denegação do papel da ONU como organismo de ação multilateral, revelando uma escalada agressiva sem volta que promoverá no largo prazo a reconfiguração da “ordem” mundial, geram horror nas pessoas e insegurança generalizada em todo o sistema internacional. Diante desse horror, é de pasmar a sem-cerimônia e a desfaçatez com que os meios de comunicação, retransmitindo os “press-release” do Pentágono, se referem à “mãe de todas as bombas”, como se se tratasse de um novo brinquedo ou utensílio de uso ordinário na vida doméstica e profissional das pessoas.

O mais desatento observador percebe que atua às escâncaras no mundo um partido da guerra, mentor, proponente e executor de um genocídio, a destruição de objetos civis e bens culturais, o que certamente provocará danos irreversíveis ao Iraque e em perspectiva a todos os países da região. É incalculável o custo humano e material das ações que os Estados Unidos estão dispostos a levar às últimas conseqüências. Os argumentos para atacar o Iraque não se sustentam na lógica nem nos fatos. A propaganda do partido da guerra diabolizou o presidente iraquiano Saddam Hussein e tenta fazer crer na necessidade de agir militarmente para depor um perigoso ditador. Não há precedente histórico, nem legitimidade amparada no direito internacional. De assinalar, a hipocrisia, pois o presidente iraquiano já foi aliado dos Estados Unidos quando convinha aos interesses estratégicos da superpotência, como foram e são aliados dos norte-americanos um sem-número de tiranetes, monarcas, generais em todos os continentes, régulos de província do império moderno.

O arsenal de mentiras exibe a acusação de que o Iraque protege terroristas e é aliado de Osama bin Laden, outro ex-aliado de Washington adestrado pela CIA. Nada tem sido provado. Desde a primeira guerra norte-americana no Golfo Pérsico em 1991, o governo iraquiano atua na defensiva, procurando contornar os terríveis efeitos do embargo a que foi submetido como força derrotada no campo de batalha. A diabolização do regime iraquiano assumiu novos contornos com a acusação de que o Iraque havia expulsado os inspetores da UNSCOM em 1998, o que teria motivado as pressões para adotar a draconiana resolução 1441 em finais do ano passado, atualmente em vigor. Rematada mentira. A organização não governamental norte-americana ANSWER publicou um circunstanciado estudo no sítio Resistir (www.resistir.info) no qual demonstra que os inspetores deixaram o Iraque em 1998 por determinação da ONU, já que o governo norte-americano, que utilizara alguns inspetores como espiões, segundo denunciou o diplomata sueco Rolf Ekeus, havia identificado alguns objetivos a bombardear e não queria fazê-lo enquanto estivessem em território iraquiano inspetores do organismo internacional.

A mais importante mentira, também já desmascarada, é a de que o Iraque possuiu armas de destruição maciça, capazes de ameaçar a segurança dos Estados Unidos. Sobre isso, em 1998, o inspetor da ONU, Scott Ritter, declarou: “Os programas em grande escala de armas de destruição maciça haviam sido destruídos e desmantelados fundamentalmente pelos inspetores de armas já em 1996”. O definitivo desmentido veio agora. Os relatórios de Hans Blix e El Baradei sobre as inspeções em curso, que vasculharam as entranhas do Iraque, a ponto de realizar verificações até em fábricas de produtos alimentícios e palácios, no fundamental refutaram a acusação da posse de armas de destruição em massa pelo país árabe. E a destruição dos mísseis Al Samoud demonstra que o Iraque está cumprindo estritamente as determinações do Conselho de Segurança e que este tem autoridade e capacidade para desarmar o país árabe.

As mentiras, que se resumem na fantasiosa tese de que o Iraque representa uma ameaça à segurança dos Estados Unidos, são o último recurso do governo Bush para obter legitimidade principalmente junto à população norte-americana, onde são crescentes as resistências à política belicosa nos meios populares e entre círculos políticos e intelectuais.

Planos delirantes de domínio do mundo

Em que reside o perigo à sobrevivência da humanidade e quais as verdadeiras razões da guerra americana?
Em seu delírio expansionista, Hitler concebeu um “império de mil anos”. O lúcido escritor comunista luso-brasileiro Miguel Urbano Rodrigues, em um percuciente artigo recentemente publicado no portal Resistir (www.resistir.info), denuncia os planos do imperialismo norte-americano de criar um “quarto Reich”.

Depois do término da guerra fria, com o desaparecimento da União Soviética e a derrota temporária do socialismo como sistema mundial, os Estados Unidos sentiram a sensação do poder ilimitado e de que vivem um novo momento imperial. O exercício desse poder manu militari configura uma nova fase da política mundial, cujos elementos se encontravam já em desenvolvimento latente há mais tempo. Os eventos que marcaram a vida internacional nos anos 90 foram também dramáticos e não poucas vezes o governo norte-americano recorreu aos meios militares, como na Somália, na Bósnia, em Kossovo e no próprio Iraque que sofreu diversos bombardeios. Mas jamais se viu tamanha imprudência, unilateralidade, desrespeito ao sistema das Nações Unidas e militarismo como agora durante a Administração de Bush, que introduziu novos conceitos à linha de ação imperialista dos Estados Unidos, como a guerra infinita. Falando urbi et orbi depois dos atentados de 11 de setembro, em discurso no Congresso, o presidente dos Estados Unidos, George W. Bush declarou: “não se tratará de uma guerra curta, mas prolongada, sem precedentes na história”. Essa foi a base a partir da qual os Estados Unidos adotaram depois a estratégia da guerra preventiva, indexaram países em categorias arbitrárias como “países bandidos” e integrantes do“ eixo do mal”, ameaçaram usar armas nucleares (“empenharemos todas as armas que sejam necessárias”, disse Bush no discurso citado) e abandonaram a diplomacia, a ponto de proclamar a “irrelevância” da ONU, desmoralizando assim os organismos multilaterais.

Claramente, os Estados Unidos estão a desafiar o mundo, segundo o ponto de vista de que “quem não está conosco está com os terroristas” (idem) e optaram por fazer valer o seu papel de poder mundial: “A conquista de nosso tempo e a esperança para o futuro dependem de nós” (idem). A deriva militarista no plano externo corresponde internamente ao amesquinhamento do sistema democrático, do que são exemplo o “Patriotic Act”, conjunto de normas restritivas de direitos e garantias constitucionais, de novembro de 2001, e a criação do Departamento de Segurança Interna, em novembro de 2002, que confere ao governo poderes adicionais somente concebíveis em períodos de guerra ou estado de exceção. Na época em que esses conceitos foram emitidos e em que começaram a ser postos em prática, o presidente cubano Fidel Castro disse com toda razão que se tratava da proclamação de uma tirania global, sob o comando exclusivo da força, sem a mínima legitimidade institucional. Finalmente, os Estados Unidos proclamaram formalmente, a substituição do “multilateralismo afirmativo” de Clinton, com que o ex-presidente dissimulou o exercício da hegemonia política e militar da superpotência americana, pelo unilateralismo baseado exclusivamente no uso da força bruta. Os fatos se encarregaram de encerrar a polêmica, presente em círculos acadêmicos, diplomáticos, políticos e militares norte-americanos, acerca da disjuntiva entre o exercício do “poder brando” e o poder bruto para assegurar a liderança dos Estados Unidos. Ver a respeito o livro “O Paradoxo do Poder Americano”, de Joseph S. Nye Jr, ed. UNESP, 2002. Diante da formidável mobilização guerreira deste início de 2003, a discussão parece mais uma invocação saudosista de algo que de há muito o vento já levou. Os Estados Unidos exercem seu poder imperial sobretudo através da força bruta. Detêm uma incontrastável superioridade na posse das armas convencionais e nucleares e concebem planos mirabolantes para reforçar ainda mais sua capacidade ofensiva e defensiva, espalharam bases militares em mais de 70 países, têm um orçamento militar de quase 400 bilhões de dólares, equivalente a um terço do gasto militar global.

A guerra é o meio pelo qual o atual governo norte-americano pretende dar passos para que os Estados Unidos exerçam sozinhos o poder mundial, impedindo a formação de potências em condições de rivalizar globalmente e mesmo a emergência de competidores regionais. Estudo do Quadriennal Defense Review, do Departamento da Defesa dos Estados Unidos, datado de 30 de setembro de 2001, assinala: “Embora os Estados Unidos não tenham diante de si no futuro próximo um rival com força semelhante, existe a possibilidade de que potências regionais desenvolvam capacidade suficiente para ameaçar a estabilidade de regiões cruciais para os interesses estadunidenses. A Ásia, em particular, está gradualmente emergindo como uma região suscetível de competição militar em larga escala. Existe a possibilidade de emergir na região um rival militar com uma formidável base de recursos” (Extraído de L’Ernesto, revista comunista italiana, número 6 de 2001). O mesmo documento defende ainda a necessidade de usar a força militar para “mudar o regime de um país adversário ou ocupar um território estrangeiro enquanto não sejam realizados os objetivos estratégicos estadunidenses”.

O massacre dos iraquianos, a transformação da antiga civilização mesopotâmica em protetorado norte-americano, sob governo militar administrado diretamente pelos generais estadunidenses ou por algum governo fantoche afigura-se, dessarte, como doloroso rito de passagem, como um dos muitos (infinitos?!) momentos de conflagração no quadro da guerra infinita e da concretização dos planos delirantes de exercer seu poder global e tirânico sobre o planeta e a humanidade. Como já foi a guerra ao Afeganistão, onde também se pretendeu encobrir os crimes estadunidenses com falsos pretextos. Na verdade, estavam em jogo as jazidas de gás natural, o controle dos gasodutos e oleodutos que levam ao Mar da Arábia e ao Mediterrâneo, assim como de uma área estratégica – a Ásia Central, no quadro dos planos de domínio global.

Sangue por petróleo

A guerra ao Iraque, segundo momento da guerra infinita, tem a ver diretamente com o petróleo. O Oriente Médio e a Ásia Central, com a bacia do Mar Cáspio e o Golfo Pérsico-Arábico, são as regiões onde mais abundam no mundo os recursos petrolíferos. A disputa pelo controle dessa riqueza sempre esteve no centro das atenções dos países industrializados, desde que se transformou na principal base energética da economia. A luta pelo controle das reservas petrolíferas esteve no centro das ações das grandes potências e constituiu o pano de fundo da luta do nacionalismo árabe. As grandes companhias petrolíferas do mundo são bastante ativas na região do Oriente Médio e Golfo Pérsico-Arábico.

Os Estados Unidos começaram a desenvolver fontes alternativas de abastecimento petrolífero, tais como a Rússia, o México, a Venezuela, o Mar Cáspio e a África Ocidental, mas a sua dependência do petróleo do Golfo Pérsico-Arábico é e continuará grande. O Iraque tem a segunda maior reserva de petróleo do mundo, depois da Arábia Saudita.

Tem potencial para produzir oito milhões de barris por dia nesta década. É um objetivo-chave. O argumento de que o petróleo sempre esteve ali e os Estados Unidos não consumaram antes uma ação militar não é válido para desmentir a importância do petróleo no atual empreendimento do governo Bush. As condições políticas não estão permanentemente presentes. Vivemos hoje outro momento político.

Um artigo de W. Clark vindo à luz recentemente no jornal Indy Times, publicado em português no portal Resistir (www.resistir.info), chama atenção para outro aspecto econômico desta guerra, pelo qual se compreende a divisão de campos em interesses opostos entre o imperialismo norte-americanos e seus competidores europeus, particularmente a França e a Alemanha. Para além do fato de que os países imperialistas europeus também são clientes dos fornecedores de petróleo do Golfo Pérsico e do Oriente Médio, o que os coloca em colisão com o objetivo norte-americano de controlar sozinhos esse recurso energético estratégico, há um aspecto financeiro da maior importância. Diz W. Clark: “O maior pesadelo do Federal Reserve é que a OPEP, nas suas transações internacionais, abandone o padrão dólar e adote o padrão euro. O Iraque efetuou esta mudança em novembro de 2000 (quando o euro valia 80 centavos de dólar) e na verdade escapou com perfeição da firme depreciação do dólar frente ao euro (o dólar caiu 15% em relação ao euro em 2002)”. Artigo de Paul Harris, no sítio Rebelion (www.rebelion.com.), em 28 de fevereiro deste ano, aponta o mesmo fato, captado na imprensa brasileira pelo colunista da Folha de S. Paulo, Gilson Schwartz, em 9/3/2003 e em matéria publicada pelo jornal paulista em 16 de março último.

Um império em guerra contra o próprio declínio

O rufar dos tambores de guerra, a explosão da “mãe de todas as bombas” e o rastro de horrores que deixará serão seguramente também o sinal de alarme anunciando o declínio da superpotência americana. Pode parecer um paradoxo, mas antes é uma contradição dialética. O momento em que exibe maior poder é também o do seu declínio, até então restrito à área econômica, hoje manifesto na política.

As bombas de Bush sobre os iraquianos evidenciam o estilhaçar e a transformação em pó dos mitos dos anos 90, dos lugares comuns tão em voga sobre a hegemonia inconteste dos Estados Unidos, da ilusão da sua ascensão contínua, tão ao gosto dos teóricos do exercício do “poder brando”, como suficientemente atraentes para encantar e seduzir os teóricos no-global que “descobriram” o poder das transnacionais sem expressão geopolítica, sem imperialismo, substituído pelo vago império global. O discurso triunfalista que comemorava a recuperação da “hegemonia do dólar” e previa o fim das contradições interimperialistas cede lugar à retórica e à prática belicistas, trincheira a partir de onde o imperialismo norte-americano vai travar cruentas batalhas para prolongar sua sobrevida.

A partir dos Estados Unidos, maior economia do mundo e centro nevrálgico da vida internacional, irradia-se uma crise de inauditas proporções. Há um cenário de depressão planetária, de retração da demanda, de queda dos índices de crescimento no conjunto das mais importantes economias do mundo. Entre os países dependentes e medianamente industrializados, como a Argentina, o Brasil e o México, citando apenas os casos paradigmáticos, o panorama é de bancarrota, resultado da aplicação das receitas neoliberais.

A maior economia do mundo , tanto a “velha” como a “nova”, enfrenta dificuldades de tal ordem que a guerra se tornou uma bandeira de “neokeynesianos militaristas” que sonham com um novo impulso da economia a partir do ciclo destruição-reconstrução e da realização de maciços investimentos no complexo industrial-militar com indução e subvenções estatais. A “nova” economia não era só um conceito falso. A partir dela os “neoeconomistas” extraíram a refutação das leis da economia política marxista. Ela se esboroou na prática, com a perda de centenas de bilhões de dólares.

O declínio econômico norte-americano é um processo histórico que vem de há três décadas. É este declínio que condiciona as suas ações diplomáticas e militares. É o pano de fundo da atual crise política internacional, da deriva militarista, das contradições interimperialistas, das negativas à guerra de Bush, oriundas da Alemanha e da França, do inusitado isolamento internacional do governo norte-americano. Jamais uma potência teve, exibiu e usou semelhante força, mas também a história dos impérios não registra a existência de um líder com tão poucos liderados, de um poder hegemônico tão falto de apoios.

A maior economia do mundo é também a do país com a maior dívida externa – 7 trilhões de dólares (mais de 60% do PIB, de um déficit recorde em conta corrente de cerca de 500 bilhões de dólares – 5% do PIB) –, de um déficit também recorde de 435 bilhões de dólares na balança comercial. A balança de pagamentos, que compreende o movimento de capitais, também é deficitária em cerca de 450 bilhões de dólares.

A decadência econômica americana passa a um novo estágio qualitativo, porquanto o ingresso de capitais em juros, dividendos e lucros, embora impressionante, já não é suficiente para cobrir o rombo em conta corrente e o fabuloso passivo externo acumulado pelo império já está cobrando seu preço, gerando a necessidade de crescentes remessas de renda. Já o déficit no balanço de pagamentos, sinalizando uma crise na conta de capitais, indica que os Estados Unidos não estão conseguindo atrair capitais estrangeiros em montante suficiente para cobrir o déficit corrente. É a razão por que o dólar se desvaloriza em relação ao euro e ao iene. Os Estados Unidos já não estão conseguindo manter um suficiente fluxo através dos papéis do tesouro e de entes financeiros privados. Em 2002, pela primeira vez na história, a China superou os EUA na atração de investimentos diretos externos (IDEs). Os ventos que sopram hoje, orientando a direção do movimento do capital estrangeiro, já não são os mesmos dos anos 90 do século passado. A irresponsabilidade fiscal do governo Bush tende a agravar sobremaneira esse quadro e ao invés de reativar a combalida economia do império, ao modo keynesiano, pode produzir um desastre ainda maior para a saúde do dólar, pois se sabe que o problema de fundo, a causa da ruína do império, entrelaçada com o parasitismo, é uma taxa de poupança interna “chocantemente baixa”, conforme as palavras de J. E. Stiglitz. Falta poupança interna para financiar a renúncia fiscal e a farra consumista do governo Bush, ou seja, o déficit público teria de ser financiado pelo capital estrangeiro. A prevalecer a tendência atual, não será investido dinheiro de fora e a alternativa poderá ser a pura e simples emissão, o que embute sério risco inflacionário. Nesse sentido, é significativo que o FED (Banco Central) esteja estudando a possibilidade de comprar títulos públicos para sustentar a política do governo Bush, cuja irracionalidade já está saltando aos olhos.

Será, segundo informações da imprensa, a primeira vez que isto ocorre desde a Segunda Guerra. A dívida americana é alimentada pelo crescente saldo negativo da balança comercial, resultado de um consumismo parasitário, exponencialmente superior ao que o país efetivamente produz.
São dados eloqüentes a demonstrar que o “dólar forte” é artificial e, embora não se possa determinar em termos de calendário, é óbvio que não vai perdurar.

Essa é a razão por que os Estados Unidos têm na Alca um projeto estratégico, que corresponde à necessidade de interromper sua decadência na área que consideram seu quintal e onde vêm sendo progressivamente suplantados pela União Européia.

É parte desse cenário de declínio americano a emergência de outros pólos, como o Japão, malgrado sua prolongada crise, a China, que emerge como nova potência financeira, e a União Européia, que se transformará globalmente, quando se concluir sua expansão, numa força econômica equivalente aos Estados Unidos.

Novos alinhamentos em perspectiva

Já afirmamos acima que o declínio econômico norte-americano data de pelo menos três décadas. Onde reside, então, a novidade do quadro atual? O novo agora é que está ocorrendo também uma contestação cada dia mais aberta e intensa de sua liderança política, um traço que diferencia o momento atual, por exemplo, de 1991, quando da primeira guerra do Golfo, e da proclamação da “nova ordem mundial”, pelo ex-presidente George Bush, e até de 2001, quando da guerra ao Afeganistão, para falar apenas de dois episódios recentes em que os Estados Unidos conseguiram organizar em apoio à sua política uma formidável coalizão internacional. Isto significa que está em curso agora o declínio da liderança ou da hegemonia política e que o domínio imperial dos Estados Unidos se sustenta cada dia mais exclusivamente na supremacia militar.

Emerge, em conseqüência, um novo quadro geopolítico, com reflexos na diplomacia e no sistema multilateral das Nações Unidas, que deverá ser marcado por notáveis realinhamentos políticos. A rigor, já se impõe a necessidade de uma nova ordem internacional, que já vinha sendo sugerida pelo fim da bipolaridade e, antes disso, pelo desenvolvimento desigual entre as potências capitalistas, a decadência dos Estados Unidos constatada acima, a ascensão da Alemanha, no quadro da União Européia, do Japão e mais recentemente da China. Não é de hoje que este quadro se reflete na necessidade de reformular o Conselho de Segurança da ONU.

Agora é a própria ONU que caduca e, a exemplo da Liga das Nações na década de 30 do século 20, tende a se tornar irrelevante, como aliás, decretou a “diplomacia” unilateral de Bush.
A necessidade objetiva de transição para uma nova ordem internacional, de que os comunistas brasileiros falam desde o início dos anos 90, já não se prende mais aos aspectos econômicos, diz respeito diretamente à esfera política. Lembrando Hegel, o que caduca precisa perecer. Não podemos prefigurar o que irá acontecer diante das evidências de crise do padrão dólar e da insustentabilidade da ordem política, marcada pela unilateralidade da diplomacia americana e pela imposição manu militari da sua hegemonia. Trata-se de um processo histórico que pode ter longa duração e cobrar ingentes sacrifícios à humanidade, inclusive a barbárie de sucessivas guerras preventivas, dentro da perspectiva de guerra infinita dos Estados Unidos.

A segunda guerra do Golfo afigura-se, desse modo, como um dos muitos episódios do longo e penoso – para a humanidade – processo de decadência do imperialismo norte-americano. O que deixa claro que os alvos estratégicos são outros e que os interesses em confronto apontam para o desenvolvimento de cenários de conflagração e luta e não de equilíbrio entre pólos de poder econômico e militar em convivência harmônica.

Os órgãos de espionagem e inteligência e veículos de comunicação registram com inquietação a difusão e o crescimento do “antiamericanismo” no mundo. Seria mais apropriado dizer antiimperialismo, porque necessário se torna conquistar o povo norte-americano para integrar a grande frente dos povos contra a guerra imperialista, pela civilização contra a barbárie, pela paz e a soberania. No fundo, a inquietação com o “antiamericanismo” é o pressentimento – ou será a certeza? – de que “a mãe das bombas” pode também abrir a “porta do inferno”, aumentar a oposição aos EUA, acrescentar dificuldades à trajetória de imposição do poder norte-americano e acentuar seu declínio.

*José Reinaldo Carvalho é jornalista, vice-presidente do Partido Comunista do Brasil e responsável pelas Relações Internacionais. Autor de Conflitos Internacionais num Mundo Globalizado, Ed. Alfa Ômega, 2003.
*Carlos Umberto Martins é jornalista, estudioso em economia e política internacional, membro da Comissão Sindical e da Assessoria Política da Presidência do Partido Comunista do Brasil.

EDIÇÃO 68, FEV/MAR/ABR, 2003, PÁGINAS 47, 48, 49, 50, 51, 52, 53