Muito já se falou sobre a dimensão histórica da vitória de Luiz Inácio Lula da Silva para a Presidência da República do Brasil. É importante frisar que ela representa a abertura de um novo ciclo histórico e político no nosso país, não se tratando de simples alternância de governo. Isso porque é a primeira vez que novas forças sociais, compostas por trabalhadores, camadas populares e médias, têm representação no governo federal, através do próprio presidente e das principais forças que o apóiam e sustentam. Mais significativo ainda é que essas forças políticas apresentam um programa democrático, nacional, popular, progressista, voltado para a retomada do desenvolvimento, a geração de emprego e a distribuição de renda.

Surge, assim, a possibilidade da adoção de uma orientação contrária aos preceitos neoliberais vigentes. Esse êxito expressou também um revés na agenda programada pelo sistema de poder imperial e a oligarquia financeira para a América do Sul, alcançando desse modo uma repercussão mundial.

Passada a batalha eleitoral, terminado o trabalho de montagem dos principais escalões da administração trata-se agora de enfrentar o desafio prático de governar um grande país, com o sentido de mudanças como tem reafirmado Lula e levando em conta o contexto internacional assim como a realidade brasileira.

Um mundo em ebulição – crise, guerra e luta pela paz

Três são as marcas mais destacadas na cena mundial: a crise econômica que atormenta grandes economias; a política guerreira do imperialismo norte-americano que foi elevada a um novo e gravíssimo patamar; e o crescimento da resistência dos povos e países de médio porte, assim como, engrossando essa contracorrente, o questionamento da liderança dos EUA por tradicionais aliados dentro do próprio Primeiro Mundo.

A crise da globalização liberalizante atinge hoje os países centrais. Manifesta-se num quadro crônico de baixos índices de desenvolvimento econômico, permeado de recessões e perdas astronômicas no mercado de capitais. Bolhas de capital financeiro estouram. Em conseqüência de tudo isso o desemprego alcança o maior índice dos últimos anos.

Essa situação objetiva está na base das saídas guerreiras e belicistas a que vem recorrendo o imperialismo norte-americano, com a ascensão do governo de extrema-direita de George Bush. O mundo está, assim, prenhe de focos de maiores tensões e de ameaças à paz e à soberania dos povos. Hegemônico, o imperialismo norte-americano prepara a guerra como sua última carta. A obstinação do governo dos EUA em agredir o Iraque, mesmo sem a sanção da ONU e sem o apoio de aliados de tempos passados, tem provocado uma das maiores ondas de indignação que já se viu na história moderna, revelando um outro grau de consciência sobre os verdadeiros motivos da agressão: interesses econômicos e geopolíticos norte-americanos.

A resposta do imperialismo à crise do sistema demonstra que ele não mudou sua natureza: apela para a guerra e a pilhagem. Por isso, a luta pela paz adquire hoje um sentido revolucionário e antiimperialista. O sentimento de necessidade da paz cresce e se expande pelo mundo. Abre caminho para mudar a correlação de forças mundial e contribui para criar condições para alternativas ao neoliberalismo. As bandeiras da paz, soberania e desenvolvimento adquirem grande dimensão e propiciam a formação de ampla frente política em busca de uma nova ordem mundial de paz e progresso social.

Neoliberalismo na América Latina – retrocesso e resistência

A globalização financeira cavou mais fundo a desigualdade econômica que separa os chamados países em desenvolvimento dos países capitalistas centrais. Os países latino-americanos ficaram à mercê da livre movimentação do capital financeiro. Tornaram-se extremamente vulneráveis, multiplicaram seus endividamentos externos, passaram a conviver com crises cambiais recorrentes, regimes de permanente instabilidade, à beira da insolvência, ou, precipitaram-se na falência, como é o caso da Argentina, produzindo um cenário de estagnação econômica.

Nos marcos da chamada globalização e da aplicação das políticas ultraliberalizantes (o denominado Consenso de Washington) durante mais de dez anos, os países da América Latina, Brasil inclusive, foram jogados diante de uma realidade de grande retrocesso (chegando a ser um retrocesso civilizacional), aprofundando mais ainda seus principais entraves estruturais: dependência e vulnerabilidade externas e desigualdade social. O resultado dessa situação conduziu a um quadro em que a renda média per capita da região equivale hoje à de vinte anos atrás e o desemprego e subemprego atingiram níveis recordes. Ampliou-se o exército de deserdados, “desclassados”, e a violência adquiriu uma extensão inédita. Em muitos países desestruturou-se a base da atividade econômica, atingindo-se até mesmo o nível da desindustrialização.

Na América do Sul desenrola-se um cenário político contraditório, caracterizado por profunda crise estrutural e por grandes ameaças aos seus povos. Ao mesmo tempo, ocorre crescente avanço da resistência ao neoliberalismo, extenso clamor por mudanças. Destacam-se aí importantes conquistas políticas, que podem se tornar favoráveis aos trabalhadores e às camadas populares – com os governos de Chávez, na Venezuela; Lula, no Brasil; Gutierrez, no Equador; o rápido crescimento eleitoral das forças progressistas e de esquerda na Bolívia e Uruguai; e a elevação da consciência antineoliberal e do movimento de massas na Argentina. O fracasso dessas políticas neoliberalizantes e os estragos sociais provocados vieram produzindo uma situação de crescente resistência dos trabalhadores e povos dessa região como demonstrou recentemente o Terceiro Fórum Social Mundial realizado em Porto Alegre.

O novo governo e seus desafios

A vitória de Lula surge desse contexto de crise e resistência, sendo uma expressão da realidade própria do Brasil. O novo governo, recém-instalado, representa uma frente de forças de esquerda e de centro do espectro político brasileiro. A composição do governo Lula, o seu Ministério, tem uma marca democrática, plural, sob a plena hegemonia do Partido dos Trabalhadores. O PCdoB participa do novo governo. Pela primeira vez em nosso país os comunistas compõem o primeiro escalão do governo da República. O Partido aceitou o convite do presidente Lula para liderar a bancada do governo na Câmara Federal por considerar que deveria fazer parte das forças protagonistas deste novo ciclo histórico, que abre a possibilidade para a realização de um projeto democrático, nacional, popular-progressista nas condições atuais do Brasil. Desde 1989, na transição democrática, o PCdoB compõe com o PT um núcleo de forças precursoras de uma saída de sentido democrático-popular e progressista para o Brasil. Na batalha eleitoral do ano passado, o Partido teve um papel protagonista na formulação programática e na conformação da frente política que prevaleceu.

Agora, diante do desafio de governar e honrar o programa assumido com o povo, os comunistas não podem ficar de fora. É preciso viver essa experiência, porque ao vivenciá-la, além de o Partido cumprir suas responsabilidades, este é um meio de ele se aproximar de seus objetivos maiores. Lula foi eleito assumindo a bandeira da mudança, com quase dois terços do número de votos, num clima de grande expectativa acerca de outro destino para o nosso país. Como acentuou Aldo Rebelo, o novo líder do governo, “nossa presença é simbólica e representativa do ambiente de esperança em que vivemos”.

O Partido Comunista tem consciência do tamanho do desafio. O êxito do governo Lula terá um significado histórico, de grande transcendência. A busca de um novo caminho, alternativo ao neoliberalismo, não tem sido fácil, nem simples, porque o neoliberalismo é o próprio padrão contemporâneo de reprodução do capital. É o capitalismo moderno. Isto é, um movimento determinado pela necessidade de liberdade de circulação de capitais a partir da imposição da desregulamentação financeira de todos os mercados e da flutuação do câmbio. Esse processo provocou inédita mobilidade do capital financeiro e, ao mesmo tempo, a centralização gigantesca do capital e da riqueza em escala mundial.

A avalanche do capital financeiro transnacional impôs a países como o Brasil abertura irrestrita de seus mercados, privatizações, aquisições e fusões pelo capital estrangeiro e estrito controle fiscal e monetário. Isto condicionou uma situação estrutural de maior endividamento e vulnerabilidade do Brasil, semiestagnação econômica, crises cambiais constantes. Diante da iminência da insolvência, o país teve que se sujeitar ao aporte financeiro, condicionado à política econômica, do FMI, que se tornou permanente.

A luta pela alternativa ao neoliberalismo tem caráter estrutural antiimperialista e, em certa medida, anticapitalista. Não se trata de uma contenda que alcança a sua superação definitiva no quadro de novos arranjos capitalistas. A luta alternativa se choca com o sistema de poder imperial e a oligarquia financeira dominante, num mundo em que prevalece um quadro de defensiva estratégica para as forças transformadoras, revolucionárias. Tudo indica que, depois da derrota estratégica culminada com o fim da União Soviética, o novo caminho, ou a formação do fator consciente necessário à condução da alternativa avançada, será um empreendimento que envolverá amplos e variados setores políticos antagônicos e críticos ao sistema dominante atual. Demanda a formação de ampla frente mundial contra a guerra imperialista, a unidade dos povos e a integração regional dos países – no caso do Brasil, o fortalecimento dos laços com a América Latina e, em especial, com a América do Sul –, e a formação de frentes internas nos diversos países para a retomada do projeto democrático e emancipador. Será um processo prolongado e diversificado de lutas, em que se acumularão condições para a mudança do balanço de forças atual.

A luta pela alternativa ao neoliberalismo tem, em suma, uma dimensão mundial, nacional e estrutural e vai sendo construída pela definição de novo caminho, capaz de arrastar a grande maioria dos trabalhadores e das massas populares para um novo modelo de desenvolvimento soberano, democrático, de base popular. Por isso, essa alternativa ainda tem que ser concretizada. O governo Lula encontra-se diante desse imenso desafio. O novo governo, resultante de uma expressiva vitória eleitoral, compreendida nos limites da institucionalidade vigente, encontra uma estrutura econômica dependente do capital forâneo, liberalizante, e uma correlação de forças, surgida das eleições, em que as correntes conservadoras mantiveram posições importantes. Em razão dessa situação, o governo Lula não reúne ainda forças necessárias para o desprendimento abrupto, para a ruptura imediata com o rumo dominante precedente. As novas forças vitoriosas ganharam o governo central, porém ainda não conquistaram o poder de forma plena.

Em função dessa realidade, neste momento inicial o governo Lula vai se definindo por três partes constitutivas: instrumentos de política econômica conservadora, resultante da herança proveniente da reestruturação ultraliberalizante da década de 90 e da qual ele de pronto não conseguiu se livrar; compromisso prático de extinguir a fome, seqüela histórica de nosso país, chamando atenção para os cinturões de miséria existentes, tendo em vista a retomada do desenvolvimento, cujo eixo central é a transformação social; e política externa ativa e afirmativa, reforçando os aspectos da soberania e o papel de liderança principal do Brasil na integração da América do Sul e ampla reativação do Mercosul, além da defesa da paz.

Mudança x continuidade

Nas condições dadas pela pesada herança deixada pelo governo FHC, o governo Lula, no seu começo, ingressa numa fase de transição a um novo projeto nacional que deve ter três eixos centrais: a recomposição do Estado brasileiro, a reconstrução da soberania do país e a consecução de uma nova política econômica centrada na retomada do desenvolvimento e voltada para o bem-estar da população. Encontrará, nesta empreitada, importantes obstáculos – a política imperialista e hegemonista dos Estados Unidos e os interesses da oligarquia financeira externa e interna. Por essa razão, a fase de transição é marcada pelo embate entre mudança e continuidade, avanço e recuo. Desse modo, o centro da questão da existência vitoriosa do novo governo passou a ser o meio e o processo pelo qual possa se desprender dos paradigmas e estruturas implantados pelo governo passado e por cuja continuidade há enormes pressões no momento.

O urgente desafio, para o atual governo, da retomada do crescimento, tendo como objetivo a “inclusão social” – ou seja, distribuição de renda e ampliação do mercado interno – não será alcançado mantendo-se os fundamentos da política econômica dominante. Fernando Henrique, no seu desespero de esconder o estrago deixado, afirmou que entregava a seu sucessor um país preparado para crescer. Ele perpetrou oito anos de governo assentado nos atuais fundamentos, levou o país a uma semiestagnação no seu crescimento e ao retrocesso na renda média per capita. Esses fundamentos devem ser modificados.

Lula assumiu durante a campanha, considerando o nível da batalha em curso, compromissos com os contratos estabelecidos pelo governo de Fernando Henrique. O Partido tem afirmado que, apesar de ser necessário considerar os acordos e contratos anteriores, isso não nos impede de questioná-los e revisá-los. Os contratos e acordos entre Estados ou com organismos multilaterais e empresas não têm um caráter pétreo. Podem ser revisados ou até anulados quando julgados prejudiciais aos interesses nacionais e do povo do país.

O Partido tem a opinião de que, no conjunto das ações governamentais, é fundamental buscar o êxito da campanha Fome Zero, reforçando a marca social; e avançar na linha de uma política externa afirmativa, que resguarde a nossa soberania e a dos outros povos e se empenhe pela paz e o desenvolvimento. Assegurar, ainda, uma posição independente e afirmativa dos interesses do nosso povo diante da proposta da Alca – o novo “consenso norte-americano”, baseado na sua estratégia de empreender a anexação dos países do Continente.

Maioria política e mobilização popular

No modo de ver do PCdoB, duas iniciativas devem integrar esta fase inicial do governo: a construção de nova maioria política e a mobilização nacional pelo desenvolvimento já.

Primeiro, a formação da maioria política abarcando todos os níveis, fóruns e instituições. Assim, a justa iniciativa da constituição dos conselhos para consultas ou realização de pactos políticos visa à composição de blocos majoritários para a mudança. Pelas razões já expostas, não é possível o consenso de todos. Deve-se buscar, igualmente, a formação de uma base parlamentar a mais ampla de sustentação do governo Lula. Não é possível também a composição com todos. A oposição conservadora, apesar de sua fragmentação atual, em conseqüência da derrota eleitoral presidencial, mantém governos de grandes Estados, tem importante força no Congresso e tem a confiança da oligarquia financeira dominante. Não pode ser subestimada!

Segundo, a deflagração de um amplo movimento nacional pelo desenvolvimento, produção e emprego envolvendo empresários, trabalhadores, e a grande maioria do povo, é um meio de começar a superar a atual ordem econômica dominante. Existe uma realidade objetiva propícia a tal empreendimento. As reformas atualmente propostas devem estar a serviço dessa construção desenvolvimentista. Esse é também o caminho que cria a base para a inclusão social, a ampliação do mercado interno – ou seja, a transformação social. Os meios existem, fora da restrição orçamentária deixada pelo governo, considerando a possibilidade de grandes investimentos prioritários em bens de consumo popular e infra-estrutura, que podem ser realizados sem o concurso de divisas estrangeiras, através de bancos e empresas estatais como BNDES, Banco do Brasil, Caixa Econômica Federal, Petrobras, Eletrobras, etc.

São instrumentos importantes para a retomada do desenvolvimento. Evidentemente, sem a adoção mais rápida de uma política ativa de diminuição de juros, essa retomada do desenvolvimento em nível elevado poderá fracassar. Ao mesmo tempo, são necessárias respostas na garantia da recuperação progressiva do nível salarial, sobretudo do salário mínimo, e na definição de um novo plano de reforma agrária massiva.

São medidas para flanquear a blindagem neoliberal e abrir espaço para o plano nacional-desenvolvimentista. As formas de atuação envolvem os debates através dos conselhos que estão sendo criados pelo governo Lula, mas também a mobilização de trabalhadores, setores populares e médios e empresários interessados na mudança.

Esse respaldo é vital para que as novas forças que chegaram ao governo nacional possam evitar ficar reféns das elites dominantes.

A formação de uma frente mundial contra a guerra e pela paz, a integração dos povos latino-americanos, em especial da América do Sul, e o desenvolvimento da luta pelo projeto nacional, democrático, soberano e de respeito aos direitos do povo são os desafios atuais para que alcancemos grandes êxitos no caminho da transformação social e na construção de um outro mundo, socialista, possível.

Identidade comunista

O papel dos comunistas, que reafirmam sua missão histórica, define-se, partindo do nível da batalha atual, na contribuição com a coesão de amplas forças sociais e políticas interessadas na superação dos marcos neoliberais e que se aproxime dos seus objetivos maiores – a saída para uma sociedade socialista. A identidade comunista deve ser reforçada nesta nova fase da luta pelos ideais socialistas. É necessária a compreensão da situação concreta e do nível da batalha que se trava. Os comunistas devem desempenhar papel de vanguarda na formação da frente mundial contra a guerra, pela paz, a soberania e a democracia. Devem ter papel de destaque na construção de ampla frente em defesa dos projetos nacionais que desenvolvam a luta pela soberania, democracia e respeito aos direitos do povo.

*Renato Rabelo é presidente do Partido Comunista do Brasil, PcdoB

EDIÇÃO 68, FEV/MAR/ABR, 2003, PÁGINAS 6, 7, 8, 9, 10