Identidade
Chupou cinco laranjas e ficou olhando a paisagem, as mãos descansando na bacia no colo. Gostava do céu assim, o sol por trás das nuvens bordando-as. Vez ou outra espantava uma mosca.
Ergueu-se com a bacia nas mãos. Tinha janta para preparar. No caminho entre a varanda e a cozinha, viu a rachadura. O cenho franziu-se. Lembrou da vizinha que tinha as manilhas passando por sob sua casa. Uma revolta subiu-lhe pelas carnes e fermentou as laranjas no estômago.
– Que foi mãe?
Era o mais velho, calção sujo de limpar a calha. Todos haviam casado, e ele sobrara em sua vida. "Seu mais velho não casa, não, dona Maria?" é a pergunta das vizinhas. "Ele disse que vai cuidar de mim" é sua resposta sempre repetida.
– Nada, não, meu filho. Fica em paz.
– É a rachadura, né? Liga não, mãe. Já falei com o advogado.
– Advogado, advogado… Advogado só serve é pra tomar dinheiro da gente. Faz mais de ano que ele fala em intimação e processo e até agora nada. É essa consumição todo o dia. A vontade é subir lá e dizer escuta aqui, sua bruxa, trate de tapar essa tua fossa senão eu te parto essa sua cara de fuínha.
O rapaz ri.
– Quer café?
– Não, que tô com azia.
– Toma o leite de magnésia.
– Eu não. Tomo tanto disso que acho que já nem faz mais efeito. Vou mais é lá dentro arrumar as camas.
– Já arrumei.
– É? Então vou varrer a sala.
– Já varri.
– Menino chato, viu? Aposto que varreu daquele jeito.
– A senhora sente aqui e veja tv.
– Ah, não tem nada que preste essa hora.
– Então vai ler a bíblia, pronto. Não tem nada pra arrumar aqui. Deixe de invenção.
O moço sai. Vai consertar o portão. A mãe fica no meio da sala, caçando o que fazer. Lembra do lôro.
– Não limpei os caquinho dele…
A ave dormita empoleirada no alto da gaiola. Ao pressentir a dona, se alvoroça e amiúda a íris. Entabulam conversa de criança. Ela caduca com ele, faz cafuné. Entre assobios e mimeses de riso, o bicho faz que bica os braços dela.
Ela ri. Lembra do dia em que o marido entrou em casa com ele, ainda filhote, dentro de uma caixa. "Trouxe mais uma macho pra você cuidar", foi o que ele dissera. No princípio, ela reclamou. Ninguém queria cuidar do animal. Quando já estava taludinho, saía pela casa a triturar tudo com o bico poderoso. O marido fez menção de acorrentá-lo à gaiola. Ela protestou:
– Magina! O bichinho já não tem mãe, e ainda tem de ficar preso? Haveras!
Acabou por pegar amor ao pássaro, sobretudo depois que todos, menos o mais velho, se foram. Primeiro o marido, depois da última das inumeráveis brigas homéricas. Em seguida, um a um, os filhos foram casando, do caçula ao segundo.
Agora lhe sobravam esses dois pra cuidar.
Lembrou da janta. No caminho para a cozinha passou pelo espelho da estante. Nele, descobriu mais uma ruga na face cansada. As laranjas voltaram a fermentar. Mas já não havia mais nenhum sentimento de revolta.