O caminho de Matilde estava alagado. Saíra de casa cedo, com medo da chuva pegá-la na rua, mas não teve jeito: o aguaceiro caiu sem aviso e amontoou-se nas ruas. Teve que fazer um grande desvio. Todas as ruas que davam acesso ao ponto de ônibus tinham pequenos lagos que davam no joelho. Só na avenida é que encontrou passagem.

      Já no ponto, mirou com desconfiança a poça que se estendia da sarjeta ao meio da rua. Ficar aqui é banho na certa, pensou. Afastou-se do local uns cem metros, não fosse chegar no trabalho ensopada e fedendo.

      Chegou o Largo São Francisco. O motorista parou a porta do carro bem diante dela. Subiu. Não, não tinha mais trocado. Serve, serve passe. Obrigada.

      Viajou de pé. Os bancos estavam todos molhados. Provavelmente, o cobrador não teve tempo de fechá-los quando caiu o temporal. Pensou num carro. Bem que podia ter comprado aquele golzinho. Mas só o gasto com gasolina, manutenção, ipva… desanima a gente. E depois tem o seguro. Vai que me roubam o carro.

      É bem verdade. A gente trabalha, paga imposto e tem que pagar seguro para não roubarem o que é nosso. Paga imposto, mas tem que fazer convênio médico. Tem que pagar escola… E agora inventam taxa pra tudo: lixo, iluminação de rua… E toca pagar iptu, e icms e não se sabe mais o quê. E tudo aumenta. Menos, lógico, o salário.

      Chegou seu ponto. Desceu sob os olhares cobiçosos do cobrador. Lembrou da cena de ontem à noite. Ele arrumando a bolsa, o Juninho mudo na sala, ela na pia. Já não era hora! Sete anos de pasmaceira, de marca-passo. Chega. Quem quiser moleza, que vá correr atrás de tartaruga. Tinha avisado: desse jeito as coisas não podiam continuar. Qué isso? Ela trabalhando duro pra ele torrar, fazer uma bobagem atrás da outra? Não senhor. Chega.

      Vai ser duro no começo, mas não tem jeito. E depois se ele tá pensando…

      Viu um recado sobre sua mesa. Dirigiu-se à sala do chefe com o coração na mão. Era só o que me faltava… Bateu, abriu a porta do escritório, pediu licença. Bom dia, dona Matilde, foi a saudação neutra. A senhora despachou aquele ofício ontem?

      O rosto descontraiu-se enquanto no arquivo da memória buscava o ofício. Sim, havia despachado logo depois da reunião. Não receberam? Vou verificar agora mesmo. Obrigado. Não há de quê.

      – A propósito, dona Matilde, meus parabéns.

      – Parabéns?

      – Hoje faz um ano que a senhora trabalha conosco, não?

      – É mesmo…

      – Então?

      – Obrigada.

      – Que tal um almoço para comemorar? Só nós dois?

      Sentiu a boca amargar. Lançou ao chefe um olhar que se esforçou por não ser de desprezo, ao mesmo tempo em que pensava nas conseqüências da recusa. Os olhos quase desobedecem à sua determinação de não chorar. Aspirou o ar inodoro e asséptico da sala, compôs um semblante de dignidade não ostensiva e pensou "dane-se, não estou aqui para fazer concessões".

      – Não posso. Tenho que ir ao banco pagar umas contas – respondeu com a voz levemente tremida, apesar do empenho a fazer-se natural.

      Saiu da sala pisando duro. Tá na hora de arrumar outro emprego. E se mudar para um apartamento – de preferência numa avenida, larga, comprida, cheia de árvores…