Boy
Subiu a ladeira cansado de sol. Tinha banco pra fazer e papelaria por passar. Antes, tinha que entregar esse documento no contador e autenticar esse outro no cartório. Sem chance para o street-figther. Deram o dinheiro pro taxi, mas resolveu ir a pé. Assim livrava a balada de logo mais. Porra, mas esse sol tava de foder. E essa subida nunca que termina, mano.
Entrara nessa firma tinha três meses. Hoje encerrava o período de experiência. Tinha conseguido a vaga por meio de um amigo de escola. Reclamara que andava cansado de não fazer nada. Que a coisa em casa tava difícil. Só a irmã trabalhava em casa de família. Com o salário dela é que todos viviam.
No dia da entrevista, chegou meia hora antes. Foram atende-lo meia depois do horário marcado. Preencheu uma ficha que perguntou de tudo e mais um pouco. Aguardou mais meia hora até chamarem-no para o teste.
Teve que desenhar de olhos fechados, achar diferença entre riscos dispostos num papel, desenhar árvores – desta vez, de olhos abertos -, ler números contados num relógio, responder a perguntas as mais esquisitas ("você está andando sobre um ladrilho e vê um besouro de pernas para o ar. O que faz? a) passa direto; b) pisa nele; c) desvira o inseto; d) contempla a situação e depois segue em frente; e) contempla e depois põe o besouro em lugar seguro; f) não sabe).
Depois do teste, a entrevista. Por quê quer o emprego? O que espera da empresa? Quais as qualidades que acha essenciais para a função de office-boy? Qual sua cor predileta? Se apresenta ao exército só daqui a dois anos, não é isso? Não votou na última eleição? Por quê?
Ouviu depois uma longa explanação sobre a família que era a empresa e da política de reciprocidade desenvolvida por ela. A moça falou algo sobre banco de horas, jornada flexível, relações modernas de trabalho, bom ambiente, uniforme e outros benefícios. Contrato temporário de três meses, prorrogável por mais três e, quem sabe, a efetivação e as possibilidades de progressão funcional.
Saiu de lá sem saber se deu as respostas certas. "Me fodi", pensou. Dali a uma semana, chegou o telegrama: comparecer à rua tal, número tal, munido dos seguintes documentos. Ainda duvidou que fosse ser contratado. Quando assinou os papéis e ouviu o começa amanhã é que caiu a ficha toda: estava empregado.
Agora tinha cumprido os três meses. Trabalhava direitinho. Não é possível que não registrem. Chegou atrasado só um dia, ainda assim porque rolou uma greve do caralho. Esses motoristas agora vivem de greve. Até não foi na aula aquele dia. Bom, não ir na aula já virou rotina. Sempre perde a primeira. Tem dias que é tanto trampo que não sobra nem o pó. Aí, vai direto pra casa.
"Ué, menino, chegou cedo por quê?". "Tô destruído, módêr. Seu filho tá só o pó da rabiola. Tem uma janta aí pro trabalhador?". "Peraí, que já esquento. Não esperava você agora". "E a Rita, cadê?". "Saiu com o Sérgio". "Ò, esse negócio aí não tá certo". "Não tá certo por quê, menino? É namorado dela". "Fica por aí com esse cara. Depois, aparece aí encrencada…". "Deixa de bobagem! Encrencada… Vem, vem jantar, senão esfria".
Chegou na Paulista morrendo de sede. Mal terminou o copo d'água, a PM entrou no bar apavorando: "Mão na cabeça!". Encostaram três na parede. Um deles, ele. "Tô trampando, meu!". "Falei com você? Então, psiu aí".
Depois do vexame e do atraso, foi liberado junto com os outros três. "Rotina o caralho. Os caras não podem ver preto, já mandam encostar. Filhos da puta".
Entrou na firma com um beiço que não tinha tamanho. "Que foi, cara?". "Fila no banco e no cartório". Acertou o que tinha que acertar. Olhou o relógio. "Lá se vai a primeira aula de novo".
Da sala envidraçada, atendendo um cliente, o gerente chamou. "Vai buscar um café pra nós?".
Entre o pedido e o ato, não sabe por que, o cérebro disparou a palavra: senzala.