Choveu demais aquela tarde. Chuva normal, nada de mais. Mas enjoada. Daquelas que parecem querer durar para sempre.

      Vou ou não vou à faculdade era a dúvida que a assaltava. Assaltava não é bem o termo. Cutucava-a é mais apropriado. Por que não era assim algo dramático ir ou não ir. Não era… como dizer?… hamletiano. Tava mais pra moliére o negócio.

      Não tem jeito. A aula hoje é imperdível, irrecusável, imexível. Tinha que ir.

      Já começou a desligar o computador. Enquanto o bicho pensava (porque tem micro que é assim, cheio de dilemas: "fecho ou não fecho, eis a tensão"), foi ao banheiro dar aquele tapa no visual: um xixizinho básico, lavar as mãos, recompor a maquiagem, borrifar um perfuminho, que o trajeto era longo e a aula demorada.

      Seu computador pode agora ser desligado com segurança era mensagem na tela. Apertou o botão, guardou coisas na bolsa, pegou a sacola com encomenda da Natura para pagar mês que vem, a pasta com o material da faculdade e toca pro ponto debaixo de chuva. Como era prevenida, sacou a sombrinha da bolsa e, equilibrando-se no salto alto, desviou de poças e pequenas enxurradas.

      Passados os dez minutos regulamentares, prorrogados mais cinco pela chuva, embarcou. Janelas fechadas, ar pesado, um cheiro de esfiha emanando do pacote no colo da senhora gordinha, o ônibus ia a passo pela avenida. Pelos vidros embaçados, adivinhava gente nas calçadas. O cobrador tamborilava no caixa. E o motorista fumava.

      De repente, o cidadão a seu lado a cutucou. Ela deu-lhe uma encarada e quase o ia mandando a merda quando ouviu é um assalto. Meu deus! Passa a bolsa. Mas moço. Psiu, sem chilique. Passa a bolsa. E esse relógio aí. Vamo, vamo.

      Dar ou não dar; gritar ou calar? Correr, pra onde? A senhora das esfihas via tudo e portava-se como uma estátua. Os demais passageiros, ou distraídos, ou ocupados com suas infindáveis conversas. Nada ali denunciava um assalto.

      Súbito, tomou uma decisão:

      – Você tá armado?

      – Lógico que tô. Olha aqui. – e a cutucou com mais força.

      – Quero ver.

      – O quê?

      – Quero ver sua arma. Mostra.

      – Dona, cê não brinca comigo, que eu te queimo aqui mesmo.

      – Mostra.

      O assaltante ficou um tempo hipnotizado pela resolução daqueles olhos escuros, firmes; o rosto uma máscara. Mostrou a arma. Depois de checá-la, com a mesma resolução, ela lhe passou a bolsa. Ele a abriu ali mesmo e constatou que nada tinha de valor. Fez menção de devolvê-la.

      – Feche – foi a ordem que ele leu nos lábios dela.

      Cerrou o zíper e entregou a bolsa. Deu o sinal e desceu, de olhar fixo nela. Quando o ônibus deu nova arrancada, ela sentou e começou a rir convulsivamente. Na calçada, já ensopado, ele repetia para si mesmo que era hora de arranjar uma arma de verdade.