Poderia suportar tudo, menos aquela injustiça. Chamá-la de ingrata, quando tudo que ela deu foi carinho, atenção, toda a ajuda possível? Não, não podia aceitar aquilo.

      Quando se mudou pra cá, qual foi a primeira coisa que fez? Não ajudou a família dele com aquele problema do IPTU? Então? Aí depois vem com essa história de ingratidão? Ingratidão era o que estavam fazendo com ela, que tinha dado de um tudo pra eles. Nunca, nunca pedira nada em troca. Sempre dera de bom grado, sem esperar paga. Agora isso.

      Mas é sempre assim: você ajuda as pessoas e elas depois te esfaqueiam pelas costas. Porque é isso que estão fazendo: apunhalando seu coração.

      Mas deixa estar, jacaré. Deus é pai e justo. Isso não fica assim, não. Tá pensando. Chamava-se Benedita Solano de Andrade, filha se seu Ariovaldo Augusto de Andrade e de dona Catarina Solano Alvarado. Agora eles iam ver. Principalmente ele. Cachorro. Vem com aquele papo mole de aí minha nêga me arruma uns trocos que lá em casa a coisa tá feia, amanhã te pago, e agora isso, pé no traseiro? Mas, hein? Agora o vagabundo ia ver com quantos paus se faz uma canoa. A primeira coisa era depositar aquele cheque. Queria ver como ia ficar. Depois, ia buscar todas as camisas e aquela correntinha de ouro com que o presenteara pela passagem do décimo aniversário do time. Ah, por falar em time, cabou a conversa de lavar uniforme. Se quiser, agora vai ter que pagar… Que pagar, mané pagar! Se quiser, que arrume outra trouxa, que a mamãe ali não tava pra conversa.

      E toca pra rua com essas tralhas dele. Vai jogar tudo na lama – menos aquele bico-fino duas cores, que era capaz de dar um bom dinheiro. Tá novo. Dava uma lustradinha e bem que pegava uns setenta conto neles. Não, menos.

      Pensou em procurar dona Ninha, mode mandar fazer um trabalho bem feito. Começava pela velha. Futriqueira. Ela é que começou com aquela história de que ela, Benedita, ia tomar o que era deles. Depois ia derrubar uma a uma aquelas irmãs dele. Cadelas, virgens encruadas. "Não posso, Benê, sou crente, sou serva de deus"… Hm. Crente do cu quente, isso sim. Depois vinha aquele safado do irmão dele. Vê se pode?: o cachorro, casado, querendo passar-lhe a vara, assim, sem mais? Veio com aquela conversa de que ia ajudar, que eles uma hora iam entender, que ela tinha o coração bom… e lá vinha aquela mão boba.

      O velho, não, que do velho ela gostava. Por ele, assinava tudo logo e parava com aquela bobagem. Coitado do seu Quim. Naquele antro. Agora, a velha não escapava, que aquela era a chefa das cobras. E ele, corno sem vergonho; ele ia ver. Ia pedir pra dona Ninha deixar o bilau dele frouxo. Depois mandava apodrecer. Queria ver ele estirado na cama, pedindo perdão. Mas aí ia ser tarde. Ela ia era rir muito daquela cara canalha, ah, se ia!

      Pegou os documentos. Agora tinha que dar um jeito de arrumar testemunha. Porque aquele barraco era dela, não tinha dúvida. Comeram do dela esse tempo todo, ela pagou o IPTU todinho. Era dela, apois. O advogado não tinha dito: vai lá, pede pra eles assinarem, a senhora deixa eles morando lá, se quiser, mas aí já estão no que é seu? E ainda tinha as letras, as notas. Então?

      Fechou o cadeado da bodega. Vixe, esqueceu a luz de fora acesa. Não faz mal, era até bom. Assim, iluminava a placa onde se lia "Casa do Norte Arvoredo, sob nova direção". Ao lado da porta, um pequeno cartaz: "Empresta-se dinheiro a juros".