E o repórter completa, mentalmente: um brasileiro otimista. Para ele, aquele foi um dia exaustivo. Foi o dia em que, depois de penosas negociações, a direção do banco chegou ao limite com a empresa norte-americana AES, que adquiriu o controle da Eletropaulo, no governo de Fernando Henrique Cardoso, com empréstimos feitos pelo próprio BNDES e do qual tem parcelas vencidas que não paga nem negocia o pagamento. Naquele dia, o BNDES comunicou a decisão de leiloar as ações de uma das empresas do grupo AES, que garantem a dívida de 600 milhões de dólares. Foi uma decisão dura, e o desgaste provocado pelo esforço de chegar a um acordo com a empresa norte-americana era visível em sua face cansada. Mas, ao longo da entrevista, o cansaço era substituído pelo entusiasmo sempre que Lessa, que está banqueiro mas é eminentemente um professor, falava do Brasil, do povo brasileiro e do enorme potencial de nosso país e nosso povo. E quando frisava, enfático, a orientação do presidente Lula para fazer do banco um indutor de um novo projeto de desenvolvimento para o país.

Nesses momentos, prevalecia a jovialidade surpreendente para um homem que já passou dos 60 anos de idade. Eram momentos em que a reafirmação do caráter do banco – este é um banco de desenvolvimento, enfatizava – atualizava os sonhos do jovem economista que, formado em 1959 pela Universidade do Brasil, influenciado por Celso Furtado e Maria da Conceição Tavares, defendia o projeto nacional desenvolvimentista para fazer o país crescer e atender às necessidades de sua economia e de seu povo. Certezas reafirmadas no discurso de posse como presidente do BNDES, em 17 de janeiro passado, quando criticou a opção da gestão anterior, que o transformou em um banco de investimento, e a entronização do neoliberalismo como um espúrio projeto nacional que fez do banco o instrumento da privatização e do desmonte do Estado nacional, colocando o país numa situação de risco e fragilidade, abrindo mão da "vontade de futuro".

Carlos Lessa quer marcar sua passagem pela direção do banco como aquela que promoveu o reencontro do BNDES com sua história, com a função para a qual foi construído. E a paixão com que fala disso só perde para outra, aquela que manifesta ao falar de nosso país. É, com certeza, um brasileiro otimista (José Carlos Ruy).

Em dezembro do ano passado, enquanto o presidente Lula montava sua equipe, dizia-se que a presidência do BNDES seria um cargo muito cobiçado porque poderia ter um papel de “hospital de empresas” em 2003, quando muitas estariam em situação difícil; e porque o banco foi um dos principais financiadores do comércio exterior em 2002. Este é o papel do BNDES no governo Lula?

Carlos Lessa – Não. Aquelas avaliações estavam em parte certas e em parte erradas. Quer dizer, é absolutamente certo que o BNDES é um banco para financiamento de exportação brasileira, cada vez mais. Nós fomos em 2002 responsáveis pelo financiamento de 42% das exportações. E este ano nós provavelmente vamos repetir isso. Talvez até um pouquinho mais. E as exportações que o BNDES financia são de produtos de alto valor agregado. Veja bem, obviamente uma das primeiras questões para nós é pensar por onde o banco vai se mover no apoio às exportações. Temos uma orientação muito clara do presidente da República, que é a busca da integração sul-americana. Temos trabalhado muito nessa direção. Estamos financiando exportações novas para diversos países da América do Sul. No momento, vamos financiar até um bilhão de dólares de exportações brasileiras de serviços, equipamentos etc, para a Venezuela, onde a presença brasileira já é muito importante no campo da engenharia pesada.

Com a Bolívia, já temos um acordo para financiar até US$ 600 milhões em projetos em infra-estrutura, e é muito importante o entendimento do Brasil com a Bolívia porque o gás da Bolívia precisa ser redefinido dentro da matriz energética brasileira para resolver alguns problemas herdados do passado. Há também a Argentina. O presidente da República anunciou na semana passada ao vice-chanceler argentino, até um bilhão de dólares para financiar, principalmente pelo BNDES, a reativação do comércio bilateral Brasil-Argentina, que caiu a níveis muito pequenos. Caiu muito. Lá há projetos de infra-estrutura também.

Há os países andinos; eles têm um BNDES; chama-se Corporación Andina de Fomento – CAF. O BNDES vai entrar como sócio do CAF; vamos elevar a participação brasileira de 2,5% para 20%, e ser o maior país sócio do CAF. E o CAF vai atuar conosco.

Eu diria então que, nesse movimento, o BNDES está se convertendo num banco fundamental para a integração sul-americana, que é o objetivo estratégico do governo brasileiro: tornar o continente mais harmonioso, mais integrado, mais coeso. Isso para não fazer referência a outros apoios que o BNDES dá: financiamos operações com Cuba, com a República Dominicana, enfim…

Hoje mesmo recebi o pessoal de Angola, com quem muito provavelmente nós vamos também ter uma atuação como banco. Isso é uma novidade, que se deriva do papel do BNDES como banco exportador. Quer dizer, se somos um banco exportador, a diplomacia brasileira tem no BNDES um interlocutor para materializar algumas possibilidades importantes de cooperação.

O BNDES virou um banco estratégico.

Carlos Lessa – É. Sempre foi. Mas agora passa a ser, eu diria, um banco importante para o conjunto dos países sul-americanos. E é impressionante a quantidade de coisas que podemos vir a fazer.

Isso não conflita com uma certa mudança que parece ter havido na cúpula do Itamaraty em relação ao Mercosul?

Carlos Lessa – Não, não. O trabalho aqui é inteiramente favorável ao Mercosul. A atual direção, totalmente. Pelo contrário. Tanto o ministro das Relações Exteriores, Celso Amorim, quanto o secretário-executivo, Samuel Pinheiro Guimarães, são inteiramente voltados à idéia da integração. Nós do BNDES estamos muito, muito próximos ao Ministério das Relações Exteriores nesse esforço.
O Brasil vai negociar a Alca, mas em pé de igualdade, sem abrir mão de seus interesses centrais.

E isso já entra na segunda questão: ou Alca ou Mercosul…

Carlos Lessa – Veja bem, a posição oficial do governo é de que o Brasil negociará a Alca, mas em pé de igualdade. Negociará sem abrir mão dos interesses centrais brasileiros. É evidente que quanto mais avançar a integração sul-americana maior será a coordenação das ações sul-americanas nessa negociação, e isso é muito importante para o desenvolvimento.

Não sei se você já se deu conta de um fato – provavelmente sim – mas vou te chamar atenção: o nosso continente é produto da península ibérica, mas suas interconexões são muito pequenas. Por exemplo, as ligações Pacífico-Atlântico estão muito imperfeitas, e precisam ser fortalecidas. Não existem. A nossa navegação é muito tênue, entre os países etc. Entretanto, os países sul-americanos representam no cenário mundial a mais espantosa reserva de recursos que podem ser combinados. Quer dizer, temos no continente fantásticas convergências. Por exemplo, competência em matéria de peixe: os peruanos são sensacionais nesse assunto. Competência em matéria de petróleo: os brasileiros e os venezuelanos. Competência em matéria de produção de alimentos: todos nós, mas alguns países são absolutamente espetaculares nisso. Se formos nos irmanando, somos um continente com imenso potencial de futuro. Eu até acho – vendo em longo prazo – que este é o continente mais promissor. E acho que o governo Lula está firmemente empenhado nisso. E nós somos um instrumento dessa diretiva. Isso para nós dá muita alegria. Além do mais, é impressionante a velocidade com que isso avança. Estou aqui há quatro meses e estamos o tempo todo assim: o presidente da Colômbia visita o Brasil, o que é que ele queria? Financiamento para máquinas agrícolas. E estamos financiando máquinas agrícolas para a Colômbia. O presidente Chávez quer tudo: uma usina de açúcar, fábricas de alimentos, aviões, a PetroLatina, e nos oferece petróleo como garantia, que é a melhor possível. Enfim, é impressionante. Agora o presidente do Uruguai vai nos visitar e provavelmente vai surgir algum tipo de demanda. Aliás, ele já anunciou que vem…

Logo depois de sua posse, o senhor comentou que a reestruturação do banco, feita na gestão anterior, não seria adequada para os objetivos que o governo pretende.

Carlos Lessa – É. Em nossa avaliação, foi inteiramente inadequada. E a verdade é que no primeiro momento nós nos concentramos em reformar o BNDES, para restabelecer seu caráter de banco de desenvolvimento, tendo presentes as exigências atuais. Isso nos obrigou a fazer um esforço bem importante de reorganização.

O BNDES é um banco de desenvolvimento que, ao analisar cada pedido, leva em conta seu papel na cadeia produtiva, o impacto na organização do setor, na geração de emprego, no ambiente, etc.

Em que sentido?

Carlos Lessa – Basicamente foi acabar com a idéia de cliente/produto, típica de banco de investimento, que é o seguinte: o cliente entra, você vê se ele tem boas credenciais – isso se chama avaliação de risco. Se ele tiver uma alta nota no risco, tudo o que for bom para ele será bom para o banco. Logo, é bom para o país. Então, ele entra, vai e vê na prateleira todos os produtos que o banco tem: banco para dar empréstimo, para dar garantia, para assumir ações, para emitir debêntures, e a gente faz uma combinação. Esse tipo de visão é a visão de um banco de investimentos. Mas o BNDES é um banco de desenvolvimento. Então, cada pedido que entra é examinado, como está localizado na cadeia produtiva, qual é a implicação que ele tem na organização do setor, qual é seu impacto na geração de emprego, no meio ambiente, na região etc.

Na verdade, nossa visão não é de um banco de investimento. Por quê? Porque o Brasil quer se desenvolver. Por isso, os investimentos que financiamos têm que ter o alto mérito de fazer com que o país se desenvolva nas direções fixadas pelo processo político brasileiro. Então, por isso, é um banco de desenvolvimento. Houve uma reforma para convertê-lo num banco de investimento. Mas mesmo com essa característica, quando se vê o papel que o BNDES teve nas privatizações, parece que ele não cumpriu nem mesmo essa resolução.

Carlos Lessa – Não. Eu acho que dos anos 90 para cá o BNDES foi desviado de sua função estratégica. Foi dada a ele a responsabilidade de presidir a privatização, que não criou nova capacidade produtiva, mas apenas comprou e vendeu artigos pré-existentes. E muitos dos contratos tiveram garantias muito frágeis. Mas foi esse processo que introduziu dentro do BNDES uma dimensão que não era sua: ele virou um banco de negócios. Desvirtuou. E nós, agora, estamos resgatando a alma do BNDES, o coração do BNDES. E posso dizer que a resposta tem sido muito bonita por parte do pessoal do banco.

Isso envolve a idéia do papel do banco num projeto nacional-desenvolvimentista, coisa que dá calafrios em certos setores conservadores, para quem isso é uma volta aos anos 50.

Carlos Lessa – É, já me chamaram de sauroestatizante. Há uma porção de provocações engraçadas: trata-se de inibição cognitiva. Na verdade, não voltamos aos anos 50, mas sim à idéia de desenvolvimento, que durante 50 anos dominou a vida brasileira. Mas sabemos que a maneira pela qual desenvolvemos no passado não é a maneira que o povo brasileiro quer hoje. Porque o povo brasileiro, hoje, quer desenvolvimento e inclusão social. Não quer esperar que o social venha a ser resolvido a posteriori do desenvolvimento. Então, é uma mudança, é um resgate de uma visão de desenvolvimento, mas com uma dimensão absolutamente nova. E acho que esse discurso pelo qual o BNDES estaria retornando ao passado é verdadeiro sob uma dimensão. Estamos retornando ao passado na bela dimensão de passado desenvolvimentista, mas ao mesmo tempo temos uma visão muito clara do presente, e estamos comprometidos com o futuro. Agora, definitivamente, a minha diretoria não vê o BNDES como um banco de negócios, nem como banco de investimento.

O país tem empresas fundamentais para a sua vida. Se o empresário for mau gestor e colocar essa empresa sob risco, o país não pode perder a empresa
E nem como hospital de empresas…

Carlos Lessa – Não. Esse negócio de falar que é hospital de empresas é o seguinte: em meu discurso de posse eu disse que o BNDES pode ser eventualmente hospital de empresas, mas nunca de empresários. E esclareci do que se tratava. Foi criada uma celeuma em torno do assunto, mas o que eu disse foi uma coisa muito simples: o país tem empresas fundamentais para a sua vida. Se o empresário for mau gestor e colocar essa empresa sob risco, o país não pode perder a empresa. Até usei um exemplo muito óbvio: uma ferrovia que serve uma determinada região; se o empresário levá-la ao colapso, o país não pode deixar que a ferrovia fique paralisada. Porque vão morrer todos os municípios que dependem dela. Empresas vão quebrar em série. Então, nesse caso a empresa é hospitalizada.

Porém, não o empresário. O empresário perde o que colocou. O que eu disse foi: “não seremos um hospital de empresários; poderemos ser hospital de empresas estratégicas para o país.”

O preço que paguei por ter dito “hospital” foi uma coisa espantosa. Apanhei, apanhei, apanhei. Teve até um importante periódico que fez um editorial dizendo “o hospital do doutor Lessa”. Fiquei animadíssimo quando vi o editorial porque achei que iria poder encontrar no inventário do meu pai, ou do meu avô, um hospital que tinha passado despercebido. Estava torcendo que fosse na zona sul do Rio de Janeiro porque seria um bom patrimônio. Não encontrei nenhum…

Uma sociedade que garante a comida a todos os seus integrantes, é uma sociedade robusta. O Brasil tem tudo para fazer isso.

Mas, a respeito da retomada do papel de banco de desenvolvimento, eu gostaria de comentar uma coisa. Em relação ao Fome Zero, esse não é um projeto para distribuir comida…

Carlos Lessa – Essa é outra das questões em que eventualmente eu tenha sido mal-interpretado. O que eu disse foi o seguinte: as políticas públicas, as políticas sociais, se propõem explicitamente à inclusão social. Sendo que o projeto Fome Zero é simbólico porque pretende que, em três ou quatro anos, não haja no Brasil nenhum brasileiro passando fome. Pessoalmente acho esse objetivo absolutamente perfeito porque é a expressão mais profunda da solidariedade. Uma sociedade que dá comida, garante a comida a todos os seus integrantes, é uma sociedade muito robusta. E o Brasil tem tudo para fazer isso.

Porém, em relação a esse programa, o BNDES, tem que estudar a capacidade produtiva de alimentos do Brasil. Ou seja, temos condições para rapidamente abastecer… Por quê? Porque, veja só, mesmo as pessoas com fome comem alguma coisa. O que falta a elas é proteína. E proteína é um produto alimentício geralmente de origem animal, como ovos, frango, leite, carne ou peixe. E que exige sistemas frigorificados, caminhões frigoríficos, etc. São implicações muito importantes para a estrutura produtiva.

Se colocarmos 50 milhões de brasileiros – como acredito que devemos colocar – comendo proteínas, isso vai ter um impacto muito importante não só na produção de proteína, mas no transporte, no beneficiamento de proteínas.

Aí o Fome Zero assume um papel de motor no desenvolvimento.

Carlos Lessa – Exatamente. O Fome Zero dá a partida nesse processo. Converso muito com o ministro José Graziano, que conheço muito, foi aluno meu. Ele sabe perfeitamente que o Fome Zero tem esse lado de coletar donativos, estimular esses gestos de solidariedade, que são importantes. Mas a questão vai passar por um programa de alimentação, de complementação alimentar, digamos assim, de proteínas, para 50 milhões de pessoas. E isso não é trivial. E eu disse isso. Pronto, paguei um preço…
Quer dizer, na verdade fico até muito espantado com essas coisas. São coisas meio óbvias. Quer dizer, se nós vamos eliminar a fome, as pessoas têm que comer proteínas. Pode até ser vegetal, pode ser soja. Mas soja tem que ser texturizada, tem que retirar dela os inibidores de digestão, etc.

A construção do futuro é feita pela vontade da sociedade, e não pelo jogo do mercado. O mercado é importante, mas não é capaz de construir o futuro.

Mas esta visão, que insere esse programa na cadeia produtiva, implica num certo modelo de desenvolvimento que os críticos aparentemente não aceitam. Eles preferem um programa de compensações, que não mexa nas estruturas estabelecidas.

Carlos Lessa – Veja bem, não tenho a menor dúvida de que todos aqueles que são neoliberais têm toda razão de estar muito preocupados com Carlos Lessa. Porque Carlos Lessa não é um neoliberal. A construção do futuro é feita pela vontade de uma sociedade; não emana automaticamente do jogo de mercados. Respeito o mercado. Ele é importante, mas não é capaz de construir o futuro. O futuro, para mim, é construído pela vontade de uma Nação e de uma sociedade política que escolhe ter um determinado futuro. A eleição do presidente Lula marcou claramente a escolha de um determinado futuro. Na hora em que aceitei ser presidente deste banco, sinto-me subordinado ao meu ministro, e por extensão ao presidente da República, para executar o que é a proposta do governo. Isso para mim é muito claro. Então, não me incomodo de ser criticado por pensar assim. Eu penso assim.

Afinal esse governo foi eleito para isso.

Carlos Lessa – Exatamente. É claro. E tenho certeza de que o presidente Lula pensa a mesma coisa. Já escutei da boca dele em muitos lugares, claramente, essa doutrina.

O senhor tem enfrentado a questão da dívida da AES, a empresa norte-americana que controla a Eletropaulo e não tem pago as parcelas do empréstimo que obteve do BNDES para adquirir o controle daquela estatal, e está vindo de uma entrevista coletiva onde anunciou providências a respeito.

Carlos Lessa – Isso é uma dor de cabeça. É uma dor de cabeça pelo seguinte: é impressionante como a imprensa tem se preocupado com esse caso. Acho que é uma preocupação proporcional ao tamanho da dívida, mas é desproporcional ao modo pelo qual o banco está encaminhando a questão. Porque, quando chegamos aqui, encontramos uma decisão da diretoria anterior que subordinava, dava um prazo adicional para a AES pagar e exigia dela uma série de contrapartidas, garantias. Quando começamos a cobrar as garantias, nada apareceu. Nenhum sinal de liquidação da operação. Já anunciamos a disposição de negociar e seguimos em frente com nossa responsabilidade. Qual é nossa responsabilidade? Este é um banco. E banco recupera o que foi emprestado. Por quê? Porque é com isso que empresta a novos projetos. O projeto de privatização das estatais de eletricidade, em 1998, foi um projeto do governo Fernando Henrique Cardoso. O governo Lula tem um projeto de ampliar a energia elétrica, ampliar portos, criar novas indústrias, modificar empregos, alimentar a população, dar saúde à população. Não são os projetos do governo FHC, são novos. Bom, o grupo da AES comprou a Eletropaulo. Então, precisa pagar o banco. E comecei a cobrar, como banqueiro tenho que cobrar. Eu sou um cobrador, necessariamente.

(O professor Carlos Lessa interrompe brevemente a conversa para conceder uma entrevista telefônica a uma emissora de rádio gaúcha, onde o repórter manifesta a preocupação com a notícia de que o BNDES financiará até um bilhão de dólares de exportações argentinas para o Brasil. Durante a conversa telefônica, Carlos Lessa enfatiza o sentido dessa medida, de fortalecer a integração e o comércio bilateral Brasil-Argentina, e dá garantias de que isso não prejudicará o vinho gaúcho. Os brasileiros continuarão a tomar vinhos do Rio Grande que, aliás, são de excelente qualidade, diz.)

Enquanto o senhor atendia ao colega gaúcho, nos falávamos aqui da retomada da indústria naval, com apoio do BNDES.

Carlos Lessa – Quando cheguei aqui, encontrei represada uma grande quantidade de embarcações que esperavam do banco para serem construídas. Nesses quatro meses, liberamos doze embarcações. A indústria de construção naval no Brasil renasceu.

Carlos Lessa –O BNDES é o banco que administra o Fundo Nacional da Marinha Mercante. Quando cheguei aqui, encontrei represada uma grande quantidade de projetos de embarcações, que esperavam aprovação do banco para serem construídas. E nesses quatro meses fizemos um grande esforço e liberamos doze embarcações. Isso refinancia a construção naval tanto em Santa Catarina como aqui, no Rio de Janeiro. Essas embarcações são muito importantes para reativar a construção naval e tem no ar uma coisa ainda mais importante: provavelmente estaremos contratando os quatro petroleiros da Petrobrás e atuando com o ministro de Minas e Energia e a Petrobrás; vamos cofinanciar as plataformas marítimas P51 e P52, elevando o quociente de nacionalização em sua construção. Há ainda o programa da Braspetro para a década, de construção de 22 petroleiros, pelo menos. Não tenho a menor dúvida de que a indústria de construção naval no Brasil renasceu. E os funcionários do BNDES ficam muito satisfeitos com isso porque, por baixo, são 10 mil metalúrgicos, mas tem uma cadeia produtiva muito extensa que articula indústria mecânica por todos os lados.

Volto à questão do papel do banco. Como é possível aplicar, nesse ambiente ainda muito contaminado pelas idéias neoliberais, uma política desenvolvimentista?

Carlos Lessa – É. Vamos abrindo caminhos. Acho que dentro da construção naval se você reunir os trabalhadores e os empresários do setor eles vão te dizer que estão muito satisfeitos com o que aconteceu. Nós esperamos que, mais à frente, a mesma reação venha de uma série de outros setores do país. Esse é o nosso desejo. Agora, não falei da nossa preocupação principal. De nossa preocupação, do banco, com a infraestrutura. A situação brasileira é preocupante em matéria de portos, estradas de rodagem, ferrovia, energia, e até mesmo nas comunicações. Precisamos fazer um grande esforço para fazer avançar os setores de infraestrutura. O BNDES está começando agora a financiar algumas novas hidrelétricas, mas é muito pouco em relação ao que o Brasil precisa. E portos, aprovamos a construção de um terminal de contêineres por Paranaguá, mas os portos brasileiros precisam de muito mais melhoria. Em relação às ferrovias, elas estão em nossas preocupações. Há um vasto elenco de projetos fundamentais para o Brasil: articular melhor a produção, ganhar eficiência nas exportações, incorporar o povo brasileiro. Nessa incorporação do povo brasileiro eu diria que tem duas coisas fundamentais. Uma é a eletrificação rural. Vinte por cento dos brasileiros ainda não têm energia elétrica. Isso é terrível porque o homem que não tem energia elétrica está no século 18 e a passagem para a modernidade é a ligação com a energia. A outra, é o transporte coletivo urbano, que é muito precário nas grandes cidades. É um horror porque o tempo de deslocamento residência-trabalho-residência é superior a duas horas e meia, três horas. Isso, combinado com a jornada de trabalho de oito horas arrebenta a vida da maior parte das pessoas. E, como quase 50% da população brasileira vivem nas grandes cidades, eu diria que esse é o problema mais complicado. Outro problema muito importante é o saneamento, o Sistema Nacional de Saneamento, que tem implicação com a política de águas. Tem implicações importantíssimas na qualidade de vida da população, na saúde da população, enfim… E hoje é, para muitas cidades brasileiras, um problema extremamente preocupante.

Outra questão, de natureza mais conceitual, é a questão da moeda. Sempre que se fala nos projetos do governo para setores, ouve-se a pergunta: “De onde vem o dinheiro?”

Carlos Lessa – Essa é sempre a pergunta. Quer dizer, na verdade, do ponto de vista macroeconômico, é uma coisa do tipo “o ovo e a galinha, o que é que vem antes?” Veja bem, é extremamente importante que o governo sinalize com absoluta clareza por onde vamos avançar. Eu disse que nosso primeiro esforço está sendo feito na área de exportação porque, na medida em que ampliamos a exportação, estamos ampliando emprego, reduzindo o estrangulamento externo, gerando mais cambiais, reduzindo a vulnerabilidade do país e aumentando a força de negociação do Brasil. Então, esta é uma prioridade muito clara. Não queremos que apenas as grandes empresas exportem, mas também as pequenas e médias. Isso exige arranjos produtivos complexos etc., mas vamos fazê-los basicamente com a capacidade produtiva que já existe no Brasil.

Tem setores em que o Brasil tem uma vocação para exportar, e eles podem se expandir com relativa facilidade. Por exemplo, papel e celulose. Outro exemplo, atividades ligadas à cadeia do petróleo. O Brasil tem o domínio tecnológico. Estou com grandes esperanças. Podemos vir a exportar navios, embarcações para campos de petróleo, de prospecção do petróleo. O Brasil está tendo relações crescentes com Angola. No Caribe surgem grandes campos, com pesquisas em águas profundas.

Podemos exportar tecnologia, os navios, os materiais. Outra indústria em que o Brasil pode crescer com uma rapidez enorme e com muito poucos recursos, é a de confecções, a indústria que gera emprego mais barato do mundo. Com 3 mil dólares você cria um emprego. É uma maravilha porque você pode montar indústria de confecção pelo Brasil todo. Você sabe que nós importamos mais confecção do que exportamos? Temos uma expressão insignificante no mercado mundial de confecções. E essa é uma questão que nos interessa muito. Temos discutido isso com a Associação Brasileira de Indústria Têxtil e vamos apostar pesado nas confecções. Até porque o mercado mundial de tecidos está desaparecendo.

Está sendo substituído por roupa pronta. E tem aí uma decisão que o governo Lula tomou, que é belíssima: todas as crianças da escola pública no Brasil, do Oiapoque ao Chuí, vão vestir o mesmo uniforme. O modelo já foi desenvolvido. São 38 milhões de uniformes por ano. Só essa decisão já dá um impulso imenso à indústria de confecção.

Então, respondendo à sua pergunta, para tocar para frente a indústria de construção naval não preciso de nenhum recurso novo. O Fundo da Marinha Mercante já tinha recurso. Para tocar o programa de confecções, o BNDES fez isso com muita facilidade. Para poder apoiar a integração sul-americana, nós temos recursos. As coisas que estou conversando com você são coisas que sabemos que temos como avalizar.

Estamos restabelecendo convênios de créditos recíprocos com a Argentina; os Bancos Centrais assumem o risco das operações de comércio exterior, desinibindo exportadores e importadores e simplificando o comércio. Isso poderá prevalecer em toda a América do Sul.

Mas volto à minha pergunta, a questão da concepção de moeda…

Carlos Lessa – Ah, isso é mais para macroeconomia. Eu sou presidente do banco. Mas, veja bem, no caso da Argentina, nós estamos restabelecendo convênio de créditos recíprocos. É uma relação pela qual os Bancos Centrais assumem o risco das operações de comércio exterior. Isso tem o mérito de desinibir exportadores e importadores.

Simplifica o comércio. A liquidação das contas é feita entre os dois países através de uma compensação. É um embrião, uma coisa que o governo Lula já sinalizou, e o governo argentino também. No dia 15, uma delegação nossa vai para a Argentina, negociar. Isso precisa ser submetido ao Banco Central do Brasil, ao Banco Central da Argentina. Mas, se dermos esse passo à frente, acho que o convênio de créditos recíprocos vai prevalecer em toda a América do Sul.

Com a Venezuela, também é possível?

Carlos Lessa – Com a Venezuela também. Só que a Venezuela vai fazer o seguinte: ela está dando a garantia dos créditos em petróleo, mas se vier um convênio de créditos recíprocos, nem precisa da garantia de petróleo, é só compensação. Então, a gente levanta muito a energia da América do Sul. É preciso completar alguns investimentos de infraestrutura pequenos, que ligam o Brasil, o Atlântico, ao Pacífico. Sabemos que, no caso, só falta uma ponte, que precisa ser feita. Uma ponte cara, de 40 milhões de dólares. Mas, para ligar o Brasil ao Pacífico, 40 milhões de dólares nós temos. O CAF tem. Juntos faremos esse financiamento. Você me pergunta se eu quero ter mais recursos. Claro que quero.

Mas os recursos que o BNDES tem hoje, bem aplicados, numa visão estratégica, vão empurrar muito…
Quando se fala em moeda, na concepção dominante, é preciso ter reservas; mas também há uma outra concepção, de que a riqueza que dá lastro àquela moeda vai sendo construída no próprio processo de produção.

Carlos Lessa – Ah, sim, é claro. Quanto a isso não há dúvida. Seria muita ousadia dizer que isso vai acontecer já, agora. Mas são primeiros passos, carregados de potencialidade. Estou muito otimista quanto ao que seja possível fazer no continente.

Uma pergunta final, de caráter mais histórico. Getúlio Vargas assumiu, em 1930, depois de um longo período liberal, com grande fragilidade externa, crise mundial, etc. Uma situação parecida com a de hoje. E ele negociou, muito, até recolocar o país em outro rumo. Tenho a impressão de que o Lula assumiu numa situação semelhante. O senhor acha que dá para comparar as duas situações?

Carlos Lessa – Não sei. Dá para comparar no sentido histórico. Quando Getúlio assumiu nos anos 30 havia uma crise mundial, mas também havia uma longa discussão política no Brasil sobre a idéia da industrialização. E Getúlio formula, no Estado Novo, a idéia nacional-desenvolvimentista, que atravessa 50 anos da vida do país, e vai de 1930 a 1980. Diria que, hoje, é necessário formular um projeto nacional-desenvolvimentista, que recupere algumas dimensões do anterior. Mas vai muito além, porque hoje o Brasil não é mais o cafezal dos anos 30. Hoje é uma sociedade industrial urbana, e o nosso problema principal é a exclusão social. Quando o Lula coloca a questão do desenvolvimento com inclusão, ele está construindo um projeto diferente, mais avançado, porém numa conjuntura histórica que reproduz a necessidade desse novo grande projeto. Agora, as condições são muito diferentes. Muito. O mundo é muito diferente. Quando Getúlio assumiu havia uma crise de hegemonia no mundo. Agora não tem essa crise. É um mundo unipolar. Está mais complicado do ponto de vista geopolítico. Quer dizer, tem notáveis diferenças, mas tem uma similitude histórica: o país tem que formular um novo projeto. Acho que de certa maneira a eleição do Lula já é a idéia desse novo projeto.

Agora, o novo projeto é como você falou, vai se construindo no caminhar. Não sou pessimista, não. Aliás, sempre fui otimista. Eu tento ser. Nós estamos vivendo, aqui no banco, uma experiência realmente estimulante. O banco é o financiador da nova capacidade produtiva brasileira.

*José Carlos Ruy e ana Rocha são jornalistas e membros do Comitê Central do PCdoB. Colaboraram Wevergton Brito e Romário Galvão Maia.

EDIÇÃO 69, MAI/JUN/JUL, 2003, PÁGINAS 11, 12, 13, 14, 15, 16, 17