Construção Coletiva
Deliberar sobre as questões fundamentais em congressos ou conferências é um dos elementos principais da tradição leninista que o Partido Comunista do Brasil defende e à qual se filia. Em 1905, Lênin definiu a tática do Partido, o momento em que ela muda, e o fórum adequado para que essa mudança ocorra: "Por tática de um partido entende-se a sua conduta política ou o caráter, a orientação e os métodos da sua atuação política. O Congresso do Partido adota resoluções táticas para definir de modo preciso a conduta política do Partido no seu conjunto em relação com as novas tarefas ou em vista de uma nova situação política".
Essa é a tradição do Partido Comunista do Brasil. "A tática responde ao desenvolvimento político em curso, reflete aspectos essenciais da luta de classes num momento dado, tem a ver com os fluxos e refluxos do movimento revolucionário, com os avanços e recuos das forças operárias e populares", registrou o 6o Congresso do Partido. A tática não é isolada dos objetivos estratégicos do Partido, mas "parte da estratégia que propugna", cujas metas "estão definidas no Programa do Partido aprovado em 1962".
Ao longo de sua história, o Partido Comunista do Brasil realizou inúmeras reuniões para examinar alterações na conjuntura política, nas condições da luta de classes no país e, em conseqüência, na luta revolucionária. E decidir, coletivamente, sua atuação. Foram, no total, dez congressos e oito conferências, algumas delas com a importância de um Congresso. A análise e o debate de alguns tópicos revelam uma continuidade na busca da identificação correta da correlação de forças, da situação da luta de classes e das condições para a atuação do Partido. Entre estes tópicos destacam-se a avaliação do caráter dos governos e do Estado; da amplitude da frente política; da natureza da revolução e, finalmente, da tática do Partido para alcançar seus objetivos estratégicos. Este artigo se propõe a analisar estes aspectos nas conferências mais importantes na vida do Partido.
A 1a Conferência (1934) e a Conferência da Mantiqueira (1943)
Nas primeiras décadas da vida do Partido, a assimilação do marxismo era limitada e o sectarismo político persistia. Apesar disso, não se pode considerar incorreta a caracterização que a Conferência de 1934 fez do governo de Getúlio Vargas e de sua rápida evolução rumo à ditadura. A Constituição, dizia a Resolução da Conferência, era "feudal-burguesa", e acobertava "as medidas de força, de fascistização" do governo. Os delegados à Conferência de 1934 constataram, corretamente, que havia uma "crise revolucionária" e defenderam a formação de uma "frente única do proletariado e uma frente única democrática". O Partido começa então, diz o documento União dos brasileiros para livrar o país da crise, da ditadura e da ameaça neo-colonialista, de 1966, "a voltar-se mais para as massas", que o levou à formação, em 1935, da Aliança Nacional Libertadora (ANL), o maior movimento progressista e democrático de massas até então ocorrido no Brasil que, posto na ilegalidade, desembocou no levante armado de novembro de 1935 cuja derrota foi seguida de feroz repressão.
O Partido chegou a ser dado por liquidado por alguns policiais do Estado Novo. Era um engano. Em 1943, o movimento popular pela entrada do Brasil na Guerra contra o eixo nazi-fascista, dirigido pelos comunistas e pela União Nacional dos Estudantes, estava avançado, e os sucessos soviéticos, principalmente depois da batalha de Stalingrado, desenhavam a derrota nazista. Nesse contexto ocorreu a "Conferência da Mantiqueira", a 2a Conferência Nacional do Partido, com delegados de oito Estados, que lutaram contra o liquidacionismo e adotaram a política de "união nacional" pelo esforço de guerra contra Hitler e Mussolini; o objetivo principal da luta era então a conquista da democracia e sua consolidação no Brasil.
A Conferência Extraordinária (1962)
A conferência seguinte aqui analisada é a de 1962. Entre 1961 e 1964, a luta de classes cresceu no país. Jânio Quadros renunciou à presidência em agosto de 1961, e a oposição dos ministros militares e as forças reacionárias à posse do vice-presidente João Goulart provocou uma intensa mobilização legalista que derrotou a tentativa de golpe. Naqueles anos, o centro da resistência democrática e popular estava no famoso programa das "reformas de base", entre elas a reforma agrária.
Naquela conjuntura, o conflito interno entre os comunistas – vindo desde meados da década de 1950 -, opondo a corrente revolucionária, marxista-leninista, de João Amazonas, Maurício Grabois e Pedro Pomar, aos reformistas de Luís Carlos Prestes, chegou ao clímax. Levou à ruptura e à reorganização do Partido na Conferência Extraordinária de 1962 – evento que, pela "ampla participação das organizações partidárias, pelas questões debatidas e decisões tomadas. nas condições de dura clandestinidade", teve a "envergadura de um Congresso do Partido", conforme o Informe político ao Congresso do PC do Brasil (6ª). de 1983.
O Manifesto Programa de 1962 demarcava com o reformismo prestista e exigia uma saída revolucionária para a crise do país.
"O Estado brasileiro e suas instituições constituem uma anacrônica máquina destinada a proteger a estrutura existente e esmagar os anseios e as lutas do povo por suas liberdades e por seus direitos", dizia.
Entretanto, dizia o Manifesto Programa, sua superação não era tarefa para uma única força política, ou um único Partido; um governo popular e revolucionário só poderia ser alcançado por uma frente cujo núcleo fundamental fosse formado pelos operários e camponeses, "com os estudantes, os intelectuais progressistas, os soldados e marinheiros, sargentos e oficiais democratas, os artesãos, os pequenos e médios industriais e comerciantes, os sacerdotes ligados às massas e a outros patriotas".
A revolução era uma possibilidade posta no horizonte político, e o caminho pacífico dos reformistas era inviabilizado pela resistência e oposição das classes dominantes. Assim, o Manifesto recomendava a mobilização de todas as formas de luta, desde ações parciais "para reforçar a organização e a unidade do povo", até campanhas eleitorais, para "esclarecer as massas, divulgar o programa revolucionário e eleger candidatos que defendam as causas populares", levando a "um novo poder político, principal objetivo do povo". O Brasil precisa de reformas profundas, como a reforma agrária e a liquidação da exploração imperialista, e elas "não podem ser realizadas nos marcos do regime vigente", mas exigem "um novo regime, antiimperialista, antilatifundiário e antimonopolista".
Ao derrotar as aspirações reformistas, o golpe militar de 1964 alterou em profundidade a conjuntura política, impondo novas e urgentes tarefas aos democratas, progressistas e nacionalistas. A orientação tática do Partido refletiu essa mudança, registrada no documento O golpe de 1964 e seus ensinamentos, de agosto daquele ano; defendia a formação de uma frente única democrática e antiimperialista, e a luta armada como forma mais elevada de atividade revolucionária, cujo cenário principal seria o campo. A resistência contra a ditadura era "essencialmente nacional e democrática", antiimperialista e antilatifundiária. Exigia a unidade de "todos os que não se conformam com a submissão do país ao estrangeiro e com o atraso em que o povo vegeta". O documento reconhecia também fragilidade do Partido que, embora tivesse "conseguido notável crescimento, tanto numérico quanto na ligação com as massas, o Partido era uma organização pequena para a envergadura das tarefas que tinha a realizar". Por isso, seu fortalecimento era uma tarefa urgente, ampliando suas fileiras para poder estabelecer "profundas ligações com as massas".
A frente contra a ditadura deveria ter uma amplitude para envolver diversos setores
A frente para a luta contra a ditadura devia ter uma amplitude que impedia qualquer distinção entre os progressistas e democratas, exigindo a participação tanto de "revolucionários quanto reformistas, tanto militantes do PC do Brasil quanto do PC Brasileiro, tanto católicos quanto socialistas. Lado a lado, podem atuar trabalhistas, brizolistas, comunistas, elementos do PTB, PDC, PSD e até da UDN". Mais uma vez, reafirmava a necessidade de todas as formas de luta, desde as "mais elementares, os meios mais simples de organização até as ações mais enérgicas e tipos de organização mais elevados".
A 6a Conferência (1966)
O documento aprovado em 1966, União dos brasileiros para livrar o país da crise, da ditadura e da ameaça neocolonialista, aprofundou aquela orientação, e foi importante instrumento de difusão do pensamento avançado e de articulação da resistência democrática. Era taxativo e preciso na avaliação da ditadura instaurada em 1964: "O poder passou para as mãos dos elementos mais reacionários e pró-americanos, que introduziram sérias alterações antidemocráticas na superestrutura política e jurídica da nação", de caráter antinacional e antipopular.
A. idéia de revolução amadurecia, dizia, impondo a união de todas as forças patrióticas, populares e correntes democráticas, sem distinção de filiação partidária, tendência filosófica ou religiosa, classe ou camada social. Propunha a convocação de uma Assembléia Nacional Constituinte livremente eleita para restabelecer as liberdades públicas e reconstruir as instituições democráticas.
A Conferência reafirmou também o Manifesto Programa de 1962, que indicou "o caminho da revolução nacional e democrática, agrária e antiimperialista, mostrou o caráter reacionário e antinacional do atual regime e a impossibilidade de resolver, dentro de seus limites, os problemas fundamentais do País".
Reafirmou também a necessidade histórica do Partido: as tarefas "que se colocam diante do povo brasileiro" exigem "a existência de uma vanguarda marxista-leninista da classe operária", força que "só pode ser o Partido do Proletariado". O Partido deve voltar-se para as massas, ser uma organização numerosa e forte e trazer para suas fileiras "os elementos mais combativos da classe operária e do campesinato".
O centro do documento, diz Haroldo Lima, foi a tática do Partido, a proposta de uma mobilização geral, com bandeiras amplas, apontando o campo como cenário da revolução, e caracterizando a ditadura como expressão política do imperialismo, do grande capital e do latifúndio.
A 6a Conferência distinguiu, em sua orientação tática, as duas realidades opostas e contraditórias que o país vivia: nas cidades, a luta voltava-se para a mobilização política das amplas massas, e a luta no campo, que tinha abertamente a forma de luta armada, com objetivos nacionais e democráticos. O cenário principal da luta era o campo, e os camponeses, concluiu a Conferência, eram uma "inesgotável reserva de energias revolucionárias" e a grande força a ser mobilizada na luta revolucionária que, no Brasil, "assumirá a forma de guerra popular".
Os documentos O golpe de 1964 e seus ensinamentos (1964) e União dos brasileiros para livrar o país da crise, da ditadura e da ameaça neocolonialista (1966) registram o aprendizado com os acontecimentos e, em conseqüência, um sentido autocrítico em relação à política do Partido desde 1962, de denúncia do governo João Goulart.
Aquela política fazia sentido naquele momento em que, sob Goulart, o movimento popular estava em crescimento e era preciso demarcar com os reformistas do PCB. Mas deixava de reconhecer que "o povo usufruía de relativa liberdade", como corrigiu o documento de 1964.
No documento da 6a Conferência, de 1966, essa autocrítica está registrada no reconhecimento de que, ates do golpe militar, o povo brasileiro havia vivido "uma fase de ricos ensinamentos", recolhendo "valiosas experiências" e alcançando "inúmeras conquistas democráticas". O golpe de 1º de abril foi um "duro revés", que "anulou essas conquistas e instaurou no país uma ditadura militar a serviço dos monopólios estadunidenses". Em 1964, diz o documento, "João Goulart era apeado do governo por ter aprovado dispositivos legais que limitavam privilégios da empresas imperialistas e por se ter mostrado partidário de alterações na estrutura agrária do país".
A 7a Conferência (1979)
A oposição à ditadura cresceu desde meados dos anos 70, principalmente depois da derrota eleitoral do governo em 1974. O descontentamento atingia agora também os setores médios e parte do empresariado.
Nessa época, diz Haroldo Lima, o Partido fez uma inflexão tática, traduzindo a tática da Conferência de 1966 nas palavras de ordem Constituinte Livremente Eleita, Fim de todos os atos e leis de exceção, e Anistia Geral, reafirmadas no Manifesto aos brasileiros, de 1975.
A 7ª Conferência confirmou esse rumo e caracterizou as mudanças em curso como parte de uma etapa nacional e democrático-popular da revolução, em marcha para o socialismo. A crise do "sistema político arbitrário dos generais", dizia, levava à gestação de uma situação revolucionária no Brasil, exigindo uma ação mais ofensiva do Partido, voltada para a derrota do regime militar e do governo de Figueiredo, mas também contra o imperialismo e o social-imperialismo soviético; pelo apoio à luta dos povos e dos trabalhadores; o combate ao revisionismo, "em todas as suas modalidades"; e o "fortalecimento do movimento marxista-leninista internacional".
A 8a Conferência (1995), a "Conferência Socialista"
Foi para atender a uma resolução do no 8o Congresso -a definição de um Programa Socialista – que o Partido convocou, para 1995, a 8a Conferência Nacional, conhecida como "Conferência Socialista".
A encruzilhada histórica vivida pelo país só poderia ser superada pelo socialismo. Aprofundando teses dos 7o e 8o Congressos, a Conferência Socialista avançou no sentido teórico e programático. Em primeiro lugar, melhorou a compreensão sobre o caráter da revolução brasileira e suas etapas. O desenvolvimento capitalista do país, mesmo sendo dependente, levou à superação da visão anterior de duas etapas, uma democrática e outra socialista, e a Conferência consolidou a visão de que o Brasil já tinha, em seu horizonte histórico, a passagem imediata para o socialismo. E traduziu essa exigência histórica em um programa socialista baseado nas condições brasileiras e com as características de nosso povo.
Essa reafirmação socialista fazia parte também da luta ideológica, num período em que o capitalismo parecia finalmente vitorioso e o socialismo derrotado. "O socialismo vive", afirmou o Programa Socialista, "e continua sendo a esperança dos explorados e oprimidos, de todos os que almejam a liberdade e o progresso social". Somente "o socialismo científico, tendo por base a classe operária, os trabalhadores da cidade e do campo, os setores progressistas da sociedade, pode abrir um novo caminho de independência, liberdade, progresso, cultura e bem-estar para o povo, um futuro promissor à nossa Pátria".
A 9a Conferência – apoiar o governo Lula para construir um novo rumo para o Brasil
O estudo dos documentos dos congressos e das conferências do Partido mostra a sintonia dos comunistas, ao longo da história, com as necessidades da luta política concreta, da articulação das ações táticas com o objetivo estratégico, que é a conquista do socialismo. O Partido evoluiu na compreensão de sua tarefa histórica e dos meios para lutar por ela; no entendimento do caráter da revolução e de suas condições; da distinção entre a vontade e as condições concretas da luta; na compreensão da frente política, e de sua maior ou menor amplitude; aprofundou a avaliação do caráter do governo e do Estado brasileiro.
O tema principal da 9a Conferência do Partido, convocada para junho de 2003, é a tática do Partido, numa conjuntura nova, depois da vitória da Frente Lula Presidente e da conquista da presidência da República pelas forças patrióticas, democráticas e populares.
A reafirmação do socialismo fazia parte também da luta ideológica, num período em que o capitalismo parecia finalmente vitorioso e o socialismo derrotado
Particularmente desde 1962, a tática do Partido tem uma característica acentuada nas últimas décadas, e que é definida pela expressão unidade e luta. Sem abrir mão da luta dos objetivos de longo prazo, do socialismo, o Partido Comunista do Brasil procurou, em cada conjuntura particular, unir as mais diversificadas forças políticas e sociais, independente de sua filiação filosófica, partidária, religiosa, etc, para alcançar os objetivos próprios de cada momento.
Foi, assim, um dos principais construtores da frente político-eleitoral que construiu, desde 1989, lutou pela eleição presidencial de Luiz Inácio Lula da Silva, com base num programa progressista e afirmativo para o país e seu povo.
O documento para debate na 9a Conferência, Um novo tempo para o Partido – buscar o êxito do governo Lula na consecução de um projeto democrático, nacional-desenvolvimentista, parte da constatação de que, com a eleição de Lula, o Brasil vive um novo ciclo histórico e político. Pela primeira vez, tem a chance de construir um novo rumo, nacional-desenvolvimentista democrático, dirigido por forças populares e avançadas – numa conjuntura mundial onde a crise do capitalismo leva a principal potência imperialista, os EUA, à ação agressiva contra os povos, e onde ainda se sentem as conseqüências da derrota estratégica do socialismo na União Soviética e nos países do leste da Europa.
O centro da tática do Partido, nesta conjuntura, diz aquele documento, é lutar "pelo êxito do governo Lula na condução das mudanças" que aprofundem a democracia e adote um novo projeto nacional de desenvolvimento. É uma tática propositiva e também crítica, combinando a ação institucional (no governo e no parlamento) e a mobilização política das massas populares. O governo que resultou das eleições de 2002, diz Renato Rabelo, é "um governo democrático, plural, que abarca amplas forças políticas, sob plena hegemonia do PT". E que, "em conseqüência da realidade adversa predominante – limites de poder, herança constrangedora, guerra imperialista – e tendo de assumir compromissos de manter os contratos e acordos preexistentes, é levado a dar seqüência à política econômica anterior. Portanto, vive objetivamente uma dualidade: continuar ou mudar o modelo econômico", uma dualidade que, como um "pecado original", é explorada por opositores à direita e à "esquerda", que visam a
objetivos próprios."
A 9a Conferência vai enfrentar uma problemática que não é nova na vida do Partido, mas é um traço da vida partidária, parte da tradição comunista de definir, coletivamente, o caminho para combinar o enfrentamento de desafios colocados pela conjuntura, compreendendo que se trata de passos rumo à conquista do objetivo estratégico, o início da transição para o socialismo.
José Carlos Ruy é jornalista e membro do Comitê Central do PCdoB.
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