A exacerbação do modelo de dominação capitalista atual, de caráter neoliberal, tem provocado conseqüências sociais de grande abrangência. A vida humana alcançou um nível de degradação sem precedentes, materializando o veredicto de Mészáros onde “o extermínio da humanidade é um elemento inerente ao curso do desenvolvimento destrutivo do capital”. Esta degradação não se expressa apenas na generalizada exclusão da produção, com o desemprego; do consumo, com o rebaixamento dos salários; da qualidade de vida, com as precárias vivências urbanas e ambientais; da perspectiva futura, com a crescente militarização do planeta. Esta degradação é amplificada pelo sentimento, em certa medida generalizado, de que não há alternativa histórica à presente barbárie.

Respondendo às pressões provocadas pelas angústias de seus conflitos cotidianos, a humanidade expressa seu inconformismo com a ordem vigente através do surgimento de um número crescente de manifestações, organizações e movimentos cuja característica central é sua diversidade temática, multiplicidade de sujeitos e seu atual estágio de articulação globalizada.

Esta reação contemporânea à barbárie ainda não foi inteiramente decifrada nas suas particularidades transformadoras. Muitos tentam “enquadrar” o movimento em suas análises e convicções pré-estabelecidas e não buscar compreender seu significado e suas perspectivas.

Há quem considere que o que ocorre no mundo quanto ao surgimento desses movimentos seja algo inteiramente novo. Sem dúvida há algo de novo, mas a novidade está na temática motivadora e na forma como ele se apresenta, temática e forma estas que respondem ao estágio atual de exploração
capitalista-imperialista e não no seu caráter de movimento “desde abaixo”.

O espanhol, Manuel Monereo, em artigo divulgado por ocasião do II Fórum Social Mundial, chega a afirmar: “O que é decisivo neste ‘movimento dos movimentos’ é que propõe, pela primeira vez nesta etapa histórica, um sujeito político dos de baixo, capaz de intervir na contradição global que opõe os globalitários aos povos e às populações”. Um raciocinio que, além de simplificar o alcance do confronto em curso, tenta camuflar a negação de um “sujeito político dos de baixo” já existente, que é o movimento operário, sufocado, temporariamente, pela ofensiva neoliberal e por sua crise interior.

O surgimento de um movimento de resistência amplo e generalizado frente à exacerbação da exploração e opressão de classe não é um fato novo. A história humana é toda ela construída de confrontos permanentes entre antagonistas onde o protagonismo dos explorados é o componente central das mudanças, como apreenderam os teóricos marxistas. As belas palavras de um destes teóricos, Plekhanov, sintetizam essa trajetória: “…a causa fundamental de toda a evolução social e, portanto, de todo o movimento histórico, é a luta que o homem trava com a natureza para assegurar a sua própria existência… E a sua livre atividade transforma-se em expressão consciente e livre da necessidade. O indivíduo converte-se na grande força social e nenhum obstáculo pode impedi-lo daí em diante de ‘Lançar-se com a fúria dos deuses/Sobre a pérfida impunidade…”.

Esse movimento de resistência humana apresenta, em cada etapa histórica, as particularidades de seu tempo. Na Grécia antiga o povo ateniense presenciou as lutas dos escravos das dívidas contra a nobreza. O império romano castigou impiedosamente a mais famosa rebelião de escravos liderada pelo gladiador Espártaco, derrotado após sucessivas vitórias. A rebelião da plebe e as revoltas camponesas contra os senhores feudais marcaram, no início do século quatorze, o fim daquele sistema, hegemônico até então. O histórico ano de 1848, presenciou levantes operários onde barricadas se ergueram nas ruas de Berlim, na Alemanha; de Milão na Itália; e de Paris, na França. As lutas contra a dominação colonial e mais adiante as lutas nacionais povoaram os séculos dezenove e vinte. Homens e mulheres atentos à história jamais esquecerão a força dos movimentos revolucionários que impulsionaram a independência formal no Brasil e a simbólica resistência do pequeno Vietnã contra o todo poderoso império americano. Ninguém pode negar o extraordinário feito humano da revolução bolchevique de 1917, na União Soviética, quando se ergueu o primeiro poder dos que produzem a riqueza no mundo, que alcançou níveis de desenvolvimento invejáveis.

O grande desafio para aqueles que querem o progresso é apreender as particularidades dos movimentos de resistência da etapa presente, com o objetivo de potencializar suas demandas na perspectiva transformadora e contribuir para que sua ação não seja apropriada pelos setores dominantes, exatamente aqueles que são responsáveis pelas suas dificuldades.

Características do Movimento

A construção desses movimentos de resistência se realiza, hoje, sob o forte impacto das mudanças do mundo moderno. Nesse último meio século a humanidade vem presenciando um extraordinário desenvolvimento científico e tecnológico, apropriado pelo sistema capitalista-imperialista que o usa para ampliar a exploração e responder aos impasses econômicos que enfrenta. Ao mesmo tempo em que se agiliza e se sofistica o processo produtivo, descobrem-se profundos segredos da vida humana, generaliza-se o acesso à informação, alarga-se o fosso das desigualdades sociais, ocorre a banalização da violência, a degradação das condições ambientais do planeta, a supressão generalizada da liberdade.

Guerras se sucedem, desencadeadas pelo senhor do império, assumindo cada vez mais características de genocídio e de cínicas “guerras preventivas” contra hipotéticos “inimigos”. A exclusão e a discriminação generalizada atingem cada homem e cada mulher do planeta nas suas dimensões mais íntimas. Sobre os trabalhadores, em especial os fabris, o alargamento da exploração cai na forma mais dramática da super-exploração de sua força de trabalho, com o aumento das horas extras, o crescimento das doenças profissionais, a perda de elementares direitos trabalhistas.

Acompanhando essa ofensiva cresce a consciência humana de suas novas necessidades e brotam inumeráveis movimentos de resistência. “Surgem novas dinâmicas na vida social que aparecem em construções de identidades, formulação de reivindicações, criação de estruturas organizativas e novas formas de manifestação e de luta. Vale registrar a emergência da mulher na sociedade, o surgimento de um movimento cultural de massas, particularmente nos setores marginalizados e a intensificação do debate em torno das questões étnicas, raciais, ambientais, de comportamento, de orientação sexual, entre outras”, como indica o documento do 10º Congresso do PC do B. Esses diferentes enfoques vêm produzindo uma imensa rede de organizações e articulações cuja abordagem e “descobrimento” constitui um grande desafio a ser realizado por aqueles que compreendem o alcance transformador das populações em luta. Embora com pautas afins, estes movimentos assumem diversificadas formas a partir das realidades de cada país. Uma entidade de defesa ambiental na Europa apresenta contornos diferenciados de uma organização do Acre, com suas preciosas matas ou de MinasGerais e seus abundantes mananciais.

Em escala mundial explode um amplo e radical movimento pela paz, particularmente após a ofensiva bélica do governo americano, conduzida por um bárbaro imperador que semeia a morte pelas esquinas humanas.

Esse processo em curso, uma das resultantes da exacerbação da exploração neoliberal, ocorre ao mesmo tempo em que os movimentos de resistência tradicional, sobretudo o movimento operário e sindical, enfrentam profunda crise de múltiplas dimensões. Impulsionada pela desagregação da União Soviética e o fim das experiências socialistas do leste europeu, “esta crise ganhou novas proporções, no entender do sindicalista Everaldo Augusto, com a predominância do neoliberalismo, da globalização neoliberal e da reestruturação produtiva. Os efeitos destes três fenômenos, agindo de maneira simultânea e combinada, produziram um resultado desastroso para as organizações sindicais e operárias no mundo todo. Os sindicatos ficaram de mãos amarradas diante do desemprego, dos ataques aos direitos trabalhistas, da precarização das relações de trabalho, do rebaixamento salarial, das privatizações”.

Particularmente no Brasil, uma outra dinâmica da resistência social, também foi atingida. Embora por outras razões, esta crise chegou às demais organizações do povo, sobretudo as vinculadas ao movimento popular de corte urbano. As dificuldades do movimento organizado destes setores são consequência da falta de um projeto político transformador que potencializasse sua ação, de alterações na vida urbana que deslocaram o eixo de suas preocupações iniciais e do surgimento de novas temáticas como a da violência que não se incorporavam às suas pautas anteriores.

Contraditoriamente, a ampliação dos espaços de participação popular em governos democráticos impactaram negativamente essas estruturas, levando-as a certa paralisia. Essa participação, importante conquista do processo democrático brasileiro, encontrou um movimento com enfraquecida autonomia, trazendo como consequência certo grau de cooptação e institucionalização.
Num quadro já fragilizado como este, desencadeia-se uma extraordinária ofensiva ideológica por parte do grande capital para tentar conter e “domesticar” as novas dimensões da resistência contra a exploração capitalista-imperialista.

Para combater o fortalecimento da ação coletiva procura-se exacerbar o individualismo como prática cotidiana, tentando-se desmoralizar a militância como opção da sociedade moderna. O espírito de competição é amplamente estimulado na sociedade. Os recentes programas chamados “reality-shows” são a expressão popular e sofisticada dessa ofensiva. Qualquer cidadão pode ganhar 500 mil reais se vencer seus contendores no período de convivência que são obrigados a realizar.

Aproveita-se a crise que se dá no interior do movimento operário e sindical para desmoralizá-lo e tentar desmontar sua estrutura organizativa unificada com a famosa pluralidade sindical, entre outras medidas que são aprovadas pelos governos.

Evitando-se potencializar a energia transformadora desses movimentos, fragmenta-se a apresentação das demandas de cada setor, retirando-se o enfoque totalizante do ser humano. Cria-se uma organização para tratar da saúde da mulher, outra para cuidar dos problemas da violência de gênero, uma outra mais para cuidar de programas de emprego e renda.

Diante da crise do poder público, fruto da implantação do “estado mínimo”, que se torna incapaz de responder às demandas populares, as novas organizações são usadas como um componente fundamental da nova dinâmica entre sociedade e Estado. Responsabilidades deste são repassadas para aquela. A feminista Sonia Alvarez, em estudo sobre os feminismos latino-americanos registra que “entre a diversidade de organizações que compõem a sociedade civil, as ONGs (Organizações Não Governamentais) agora são proclamadas ‘sócias’ chaves do Estado para avançar a modernização social e econômica”. No mesmo estudo ela cita Hulme para referir-se à larga história que as ONGs têm em realizar serviços aos pobres em países onde os governos carecem de recursos. E alerta: “A diferença é que, agora, elas são o canal preferido para a provisão de serviços, substituindo, a propósito, o Estado”.

Estabeleceu-se uma estratégia eficiente para interferir na temática e nas ações concretas de algumas organizações, através do financiamento realizado por agências internacionais que condicionam o apoio à natureza do projeto. Segundo pesquisa da Associação Brasileira de Organizações Não-Governamentais-ABONG, realizada em 2001 e citada por Everaldo Augusto em seu trabalho apresentado no 3o. Encontro de Sindicalistas Classistas, em Porto Alegre, 78,75% dos recursos dessas organizações são originários de agências internacionais.

Ainda como parte dessa estratégia de “domesticação”, através da ofensiva ideológica do grande capital, procura-se fazer uma artificial separação entre a militância social e a militância política. Proibem-se os partidos enquanto estruturas políticas de participarem da organização do Fórum Social Mundial. Difundem a idéia de que a ausência dos partidos torna os processos mais democráticos e os movimentos mais legítimos. O espanhol Manuel Monereo, já citado, chega a preconizar no mesmo artigo divulgado quando do II Fórum Social que “(com) a erosão planejada do estado nação e as transformações no funcionamento do estado capitalista, o que aparece é uma grave crise da política como possibilidade de transformar o mundo”. Esquece ele de dizer que a crise não é da política e sim de um determinado tipo de política levada a cabo pelas estruturas neoliberais hegemônicas.

Num quadro tão complexo como esse não se pode cair em simplificações caracterizando a presença hegemônica de tal ou qual perfil de ONG ou movimento para estabelecer o seu potencial transformador. O atual estágio de desenvolvimento do movimento espontâneo das massas é de grande valia para a luta revolucionária anti-capitalista, sobretudo pela sua articulação internacional e como tal deve ser valorizado. As mobilizações mundiais pela paz, ocorridas no dia 15 de fevereiro, do ano em curso, data definida no II Fórum, foram a demonstração mais evidente desse potencial.

No último Fórum Social Mundial, só do Brasil participaram 8.503 delegados e 2.368 organizações, com uma diversidade de temas e estruturas a sinalizar possibilidades de um amplo fórum de lutas para momentos decisivos.

O desafio maior está na definição de uma estratégia que contribua para que esses movimentos superem seu horizonte de reivindicações imediatas, rompendo com as cadeias reformistas que as forças hegemônicas no mundo tentam manter sobre eles.

O Assalto “dos de Baixo” aos Céus

A pressão da vida e a intensidade dos conflitos vem conduzindo a articulação anti-globalização a colocar na sua agenda os eixos centrais da pauta política do mundo moderno, isto é, a luta contra o neoliberalismo. A declaração síntese de Porto Alegre II inicia com um claro posicionamento: “ Ante o contínuo agravamento das condições de vida dos povos, nós, os movimentos sociais de todo o mundo, dezenas de milhões de pessoas, temos nos reunido no Segundo Fórum Social Mundial, em Porto Alegre. Aqui estamos em grande número, apesar dos intentos de romper nossa solidariedade. Temos nos reunido de novo para continuar nossa luta contra o neoliberalismo e a guerra, ratificando os acordos do Fórum anterior e reafirmando que “outro mundo é possível”.

Embora, o eixo de combate às políticas neoliberais esteja colocado, o caminho que deve ser seguido para alcançar esse objetivo está no centro das polêmicas. A maioria dos integrantes dos movimentos da articulação anti-globalização tem uma clara estratégia reformista de enfrentamento à essas políticas que, para eles, deve se dar nos marcos do sistema capitalista vigente. Por isso artificializam uma natural tensão partido X movimento, procurando afastar a possibilidade de que “os de baixo decidam tomar os céus de assalto”, incorporando em suas agendas a luta pelo poder político. Estes integrantes concentram nos partidos revolucionários as suas atitudes mais restritivas exatamente para evitar que eles “contaminem” os movimentos com seu projeto transformador. Os partidos revolucionários, até pela sua base teórica marxista sabem muito bem que não há processo transformador sem a junção da “consciência”, materializada num projeto político partidário, com o “movimento espontâneo de massas”. Gladys Marin, presidente do Partido Comunista do Chile, em artigo para o sítio Rebelion, expressa essa comprensão com muita convicção: “Cremos que aqui há lições que perduram. Por uma parte, os partidos que propugnam a mudança da sociedade serão incapazes de materializar seus ideais se não contribuem para o surgimento e impulsionamento das lutas e interatuam com os movimentos sociais que demandam a superação das carências imposta pela sociedade que deve ser mudada. Por outra, os movimentos sociais podem desenvolver lutas potentes e lograr triunfos, porém estes serão efêmeros se não assumem e logram resolver o problema central de toda trasnformação de fundo que é o problema da modificação do caráter da sociedade em que estes emergem…”.

As múltiplas organizações que explodiram, particularmente, nos últimos anos são manifestações de como homens e mulheres tomaram consciência do acirramento da degradação de suas vidas e decidiram reagir contra ela. São novas identidades e novas dimensões da vida humana que se organizam nas suas particularidades e como tal têm que ser compreendidas e respeitadas.

Os partidos políticos surgiram, historicamente, como uma necessidade, nos novos marcos apontados pela Revolução Francesa, dos burgueses organizarem seu domínio e dos operários se oporem a ele. São estruturas políticas para organizar a relação da classe ou classes que representam, com o poder de estado. Logo, estruturas políticas para que cada classe ou setor apresentem o projeto global que têm para o funcionamento da vida em sociedade e tentem conquistar o apoio da maioria.

As condições objetivas estão dadas para que “os de baixo” comecem a compreender a completa inviabilidade da melhoria de suas condições de existência nos marcos do atual sistema capitalista-imperialista de caráter neo-liberal. O desafio está na construção de um projeto estratégico transformador adequado à atual etapa e à dinâmica de cada país que consiga ganhar os melhores homens e mulheres que hoje, saem pelas ruas do mundo buscando um melhor futuro para a humanidade.

Jô Moraes é deputada estadual pelo PCdoB/MG e membro do Comitê Central do PCdoB

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EDIÇÃO 69, MAI/JUN/JUL, 2003, PÁGINAS 55, 56, 57, 58, 59