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    Comunicação

    Sobre mentiras e verdades

          Ele havia saído da cidade de Titica do Sul, no sul de algum estado do Norte, há muito tempo. Quando retornou, já era um homem feito. Tinha terminado a faculdade e era conhecido por todos como Doutorzinho. Quando pisou na praça da cidade, onde funcionava a rodoviária, toda a cidade estava presente para recebê-lo. […]

    POR: Andocides Bezerra

    4 min de leitura

          Ele havia saído da cidade de Titica do Sul, no sul de algum estado do Norte, há muito tempo. Quando retornou, já era um homem feito. Tinha terminado a faculdade e era conhecido por todos como Doutorzinho. Quando pisou na praça da cidade, onde funcionava a rodoviária, toda a cidade estava presente para recebê-lo. Os moradores antigos e os mais novos, mesmo os que não o conheciam, mas sabiam de suas duas famas. A de ser o único filho de Titica do Sul que teve coragem de ir para a cidade grande e se tornar um doutor, e a de ter apanhado de Tonhão em plena praça pública sem ter conseguido acertar um soco sequer no seu oponente.

          Antes de esclarecer esta história, preciso dizer que o Doutorzinho, jovem de boa aparência, sorriso fácil, compreensível e inteligente, foi muito bem recebido. Estavam lá o prefeito, que fez um discurso, a fanfarra do Colégio Municipal, onde ele estudou, sua família, é claro, e seus amigos mais próximos.

          Entre estes, estava o Chico Lorota, um sujeito gozador, que nunca perde uma piada. Perde o amigo, a piada não.

          A recepção foi feita e o grande almoço realizado na casa de seus pais. Passaram alguns dias e o Doutorzinho, desconfiado dos burburinhos nos bares e nas ruas, se pôs a par de sua grande desventura por intermédio do seu amigo Chico Lorota.

          O Chico fez-se de impressionado quando o Doutorzinho disse que isto não havia acontecido, depois que não se lembrava e, de tanto o Chico insistir, de que tinha dúvidas.

          Na realidade, o Doutorzinho tinha tido alguns desentendimentos com o Tonhão, mas nunca chegou aos finalmentes. Na realidade, mal passou dos entretantos. Porém, o Chico, não contente com a viajem do amigo, espalhou para a cidade toda esta pequena mentira que, com o tempo, foi tomando corpo e todos os munícipes já comentavam como se tivessem presenciado. Tinha gente que contava em detalhes a grande surra tomada pelo Doutorzinho. Dizia até que tinha transportado o pobre rapaz para o hospital. O Tonhão, que se beneficiava com tudo isto, mantinha-se em silêncio diante dos comentários. A família do Doutorzinho, envolvida na onda falsária da cidade, já confirmava a história e acrescentava que o filho tinha passado alguns dias de cama antes de viajar para São Paulo. Todos diziam que a surra tinha sido o motivo da viajem.

          O Doutorzinho estava incomodado com aquilo. Já não sabia mais se tudo aquilo havia ou não ocorrido. Sentia raiva do Tonhão e se pegava falando consigo mesmo: Como pude não ter reagido? Também, eu só tinha doze anos, não sabia me defender. Certo. O Tonhão também tinha doze ou treze anos, mas era moleque de rua, tinha mais prática nestes assuntos.

          E assim se passaram os dias. De tanto a cidade comentar, pois em toda roda de conversa surgia o assunto, o Doutorzinho resolveu dar o troco ao Tonhão. Era à tarde, todos souberam do grande duelo. O Tonhão estava no bar onde supostamente se passara a desventura do Doutorzinho. Este, atravessava a cidade a passos largos. Diversas pessoas o acompanhavam. Chegaram ao bar. "Estou aqui para te dar o que você merece, Tonhão". Assim foi dizendo e partindo para cima do seu oponente. O Tonhão, mestre em capoeira, se desviou e o soco do Doutorzinho passou distante. Em posição confortável, o capoeirista deu a surra que o Doutorzinho não havia ganhado tempos atrás.

          Depois do vexame, os amigos levaram o humilhado jovem para o hospital; do hospital, para sua casa, onde ficou de cama por alguns dias, após o que, voltou para São Paulo. No caminho, veio pensando quanto Goebells era ingênuo: uma mentira muitas vezes repetida, não se torna somente uma verdade: pode virar um fato. Que o diga seu ombro deslocado.