Ele havia saído da cidade de Titica do Sul, no sul de algum estado do Norte, há muito tempo. Quando retornou, já era um homem feito. Tinha terminado a faculdade e era conhecido por todos como Doutorzinho. Quando pisou na praça da cidade, onde funcionava a rodoviária, toda a cidade estava presente para recebê-lo. Os moradores antigos e os mais novos, mesmo os que não o conheciam, mas sabiam de suas duas famas. A de ser o único filho de Titica do Sul que teve coragem de ir para a cidade grande e se tornar um doutor, e a de ter apanhado de Tonhão em plena praça pública sem ter conseguido acertar um soco sequer no seu oponente.

      Antes de esclarecer esta história, preciso dizer que o Doutorzinho, jovem de boa aparência, sorriso fácil, compreensível e inteligente, foi muito bem recebido. Estavam lá o prefeito, que fez um discurso, a fanfarra do Colégio Municipal, onde ele estudou, sua família, é claro, e seus amigos mais próximos.

      Entre estes, estava o Chico Lorota, um sujeito gozador, que nunca perde uma piada. Perde o amigo, a piada não.

      A recepção foi feita e o grande almoço realizado na casa de seus pais. Passaram alguns dias e o Doutorzinho, desconfiado dos burburinhos nos bares e nas ruas, se pôs a par de sua grande desventura por intermédio do seu amigo Chico Lorota.

      O Chico fez-se de impressionado quando o Doutorzinho disse que isto não havia acontecido, depois que não se lembrava e, de tanto o Chico insistir, de que tinha dúvidas.

      Na realidade, o Doutorzinho tinha tido alguns desentendimentos com o Tonhão, mas nunca chegou aos finalmentes. Na realidade, mal passou dos entretantos. Porém, o Chico, não contente com a viajem do amigo, espalhou para a cidade toda esta pequena mentira que, com o tempo, foi tomando corpo e todos os munícipes já comentavam como se tivessem presenciado. Tinha gente que contava em detalhes a grande surra tomada pelo Doutorzinho. Dizia até que tinha transportado o pobre rapaz para o hospital. O Tonhão, que se beneficiava com tudo isto, mantinha-se em silêncio diante dos comentários. A família do Doutorzinho, envolvida na onda falsária da cidade, já confirmava a história e acrescentava que o filho tinha passado alguns dias de cama antes de viajar para São Paulo. Todos diziam que a surra tinha sido o motivo da viajem.

      O Doutorzinho estava incomodado com aquilo. Já não sabia mais se tudo aquilo havia ou não ocorrido. Sentia raiva do Tonhão e se pegava falando consigo mesmo: Como pude não ter reagido? Também, eu só tinha doze anos, não sabia me defender. Certo. O Tonhão também tinha doze ou treze anos, mas era moleque de rua, tinha mais prática nestes assuntos.

      E assim se passaram os dias. De tanto a cidade comentar, pois em toda roda de conversa surgia o assunto, o Doutorzinho resolveu dar o troco ao Tonhão. Era à tarde, todos souberam do grande duelo. O Tonhão estava no bar onde supostamente se passara a desventura do Doutorzinho. Este, atravessava a cidade a passos largos. Diversas pessoas o acompanhavam. Chegaram ao bar. "Estou aqui para te dar o que você merece, Tonhão". Assim foi dizendo e partindo para cima do seu oponente. O Tonhão, mestre em capoeira, se desviou e o soco do Doutorzinho passou distante. Em posição confortável, o capoeirista deu a surra que o Doutorzinho não havia ganhado tempos atrás.

      Depois do vexame, os amigos levaram o humilhado jovem para o hospital; do hospital, para sua casa, onde ficou de cama por alguns dias, após o que, voltou para São Paulo. No caminho, veio pensando quanto Goebells era ingênuo: uma mentira muitas vezes repetida, não se torna somente uma verdade: pode virar um fato. Que o diga seu ombro deslocado.