O professor Luciano Coutinho é titular do Instituto de Economia da Unicamp, PhD em Economia pela Universidade de Cornell (EUA), foi Secretário-Executivo do Ministério de Ciência e Tecnologia de 1985 a 1988. Especialista em economia industrial e internacional, coordenou a maior avaliação já realizada sobre a competitividade da indústria brasileira.

Aqui ele fala à Princípios sobre alguns dos maiores problemas da economia brasileira

No quadro mundial, em que pese uma certa competição entre Estados Unidos, Ásia e Europa, é possível esboçar tendências do atual ciclo de estagnação nas principais economias do capitalismo central? Mesmo sabendo do tamanho e importância da economia dos EUA, inúmeros analistas afirmam o seu declínio, vis-à-vis ao desempenho asiático (China, etc.) e o potencial dos futuros 25 países da União Européia. Como o senhor vê a questão?

Luciano Coutinho – Deixando um pouco à parte a discussão sobre a China, o núcleo da economia mundial em termos de peso econômico ainda está centrado nos Estados Unidos, a principal economia individual do planeta – aproximadamente 30% da economia mundial. A União Européia, em processo de unificação, representa um outro pólo importante, equivalente, em termos de PIB e comércio, ao dos Estados Unidos – se somarmos a zona Euro unificada.

Esses dois conjuntos econômicos estão em processo de ressaca depois de um ciclo muito vigoroso de crescimento nos anos 90. Particularmente na economia norte-americana, foram oito anos consecutivos de crescimento com o boom das tecnologias de informação, em que a revolução tecnológica, o progresso, abriu fronteiras novas de acumulação de capital e provocou um endividamento generalizado – e investimento generalizado. Hoje, temos uma situação em que há um excesso de capacidade produtiva – é grande o número dos setores da indústria em desserviço nos Estados Unidos –, e também um problema de endividamento excessivo, de alavancagem excessiva em vários setores. Esse processo está em “digestão”, em reorganização. Não é por outra razão que a autoridade monetária norte-americana tem os juros extremamente baixos e muita liquidez para facilitar a rolagem dessas dívidas e dessas alavancagens, e, ao mesmo tempo, sustentar o consumo – por meio de outras medidas, em especial através dos gastos públicos e dos gastos militares – para manter a economia flutuando, impedindo que entre em um processo de recessão. Claro que haverá um tempo para que esse processo de digestão se complete. Não é possível ainda prognosticar uma recuperação do crescimento mundial mesmo em 2004. É difícil que ocorra uma recuperação sustentada do crescimento norte-americano. Talvez esse processo possa vir após 2004.

A Europa também se encontra num quadro similar, com uma certa estagnação, tendo, porém, uma política monetária mais conservadora em função de seu processo de unificação. O preço que se está pagando para se criar uma moeda comum é a necessidade de se fortalecer a credibilidade nessa moeda e de se homogeneizar uma área monetária muito heterogênea, o que faz com que a política monetária européia seja menos ousada, e também por que os compromissos firmados em Maastrich impedem que os estados façam déficits de grande escala. A Europa, portanto, vê-se em parte pagando um preço para se livrar da tirania do dólar criando sua própria moeda, mas por outro lado manietada pelas próprias regras necessárias para consolidar sua credibilidade.

Então, é complexo o quadro mundial. Um quadro ainda de dificuldades e que deve se prolongar por vários meses. Mesmo em 2004 não vejo perspectiva de uma recuperação muito sólida.

O Japão, por sua vez, vem de uma longa estagnação desde o início dos anos 90. Houve uma pequena recuperação em meados dessa década, mas depois a economia japonesa caiu de novo em recessão, num processo de deflação. Houve excessivo endividamento do setor privado, e graves problemas dentro do sistema bancário. Esses fatores impedem uma recuperação da economia japonesa, e o processo de solução dessas pendências no Japão tende a ser bastante lento. Isso, portanto, exclui também o Japão de ser um vetor com capacidade de auxiliar a recuperação mundial. O Japão tem sido, na verdade, um peso morto e a perspectiva é que continue assim dentro do quadro global.

Assim, o quadro mundial é ainda pouco alvissareiro em matéria de crescimento econômico – embora como no capitalismo o ciclo econômico é sempre intrinsecamente uma sucessão de períodos de euforia depois de períodos de concentração e de digestão, é previsível que venha uma recuperação. Até porque existem fatores de progresso tecnológico muito poderosos que estão sendo amadurecidos e que darão, adiante, curso a uma nova onda de avanços tecnológicos, de abertura de novas fronteiras de acumulação de capital. Isso seria uma previsão possível para 2005 ou 2006.

Agora, com relação à China, este país teve um extraordinário desempenho nos anos 90. Ela quintuplicou seu peso no comércio mundial, tem hoje enorme superávit e uma posição absolutamente especial que é capacidade de crescer mesmo no período adverso. Essa capacidade advém do fato de a China ter um projeto nacional muito bem estruturado, sob a coordenação do Estado chinês. Pode-se criticar vários aspectos de eventuais inconsistências, mas o fato é que esse projeto tem funcionado de maneira muito evidente ao longo dos últimos vinte anos – rápido crescimento com desenvolvimento produtivo e tecnológico. A China possui uma gestão muito pragmática, tendo construindo zonas de exportação, atraído capitais e ao mesmo tempo condicionado a presença dos capitais a processos locais de aprendizado, de transferência de tecnologias, de amadurecimento tecnológico próprio. Os chineses aproveitaram as oportunidades de mercado nos anos 90 e aumentaram muito suas exportações com um conjunto muito grande de produtos – incluindo produtos e bens de tecnologia sofisticada. A China tem hoje exportações na área de equipamentos de telecomunicações, materiais e equipamentos eletrônicos, o que não tinha há apenas cinco anos atrás. Isso foi feito a partir de estratégias muito bem focadas. Além disso a China tem uma taxa de câmbio muito estimulante – deliberadamente sub-valorizada e estimulante para a exportação. A medida disso é que se compararmos o PIB chinês com o poder de compra da população, ele, que é o segundo do mundo, ao ser divido pela taxa de câmbio do país, cai para oitavo. A taxa de câmbio é tão subvalorizada que subestima relativamente o PIB local. Mas isso faz parte de uma estratégia: ter uma taxa de câmbio extremamente estimulante para a exportação e para a produção doméstica além de ter um controle sobre todas as contas cambiais. A China se notabiliza também por ter um balanço de pagamentos extremamente robusto e por ter reservas externas de quase 300 bilhões de dólares, que lhe dão um colchão de resistência a crises cambiais. É, portanto, uma economia de baixíssima vulnerabilidade e que combina por um lado uma capacidade competitiva externa de ganhar mercados no exterior mesmo que a economia mundial não esteja indo muito bem, e, por outro, a sustentação de dinamismo do mercado interno. Essas duas coisas, compostas, dão uma taxa de crescimento do PIB que tem se mantido em 7% ano, apesar da crise e dificuldades mundiais.

O caso chinês é notável e singular pois poucas economias têm tido esse desempenho. A Coréia do Sul teve boa performance, mas em meados dos anos 90 aderiu à liberalização financeira, permitiu endividamento de curto prazo, teve de passar por uma crise aguda, depois se recuperou… mas a Coréia é uma economia de base exportadora mais vulnerável que a China. A Rússia, economia que tem tido bom desempenho nos últimos cinco anos, beneficiou-se da crise do petróleo e está hoje numa situação confortável em seu balanço de pagamentos.

O curioso é o seguinte: os países que têm projeto nacional e um Estado nacional capaz de articular a relação com o exterior de uma maneira autônoma asseguram uma certa margem de manobra para a soberania de suas políticas, e isso faz diferença para o desempenho econômico.
Se a China consegue sustentar esse desempenho econômico ao longo das próximas décadas, ela virá a ter um peso relevante na economia mundial e deslocará o eixo econômico mundial mais para a Ásia – pois, além da China, já tem o Japão e as várias economias dos Tigres. Isso criaria um pólo mundial de poder econômico e de gravitação econômica na Ásia. Essa é uma tendência reconhecida hoje pelos analistas estratégicos que prevêem isso para as próximas duas décadas.

Ao voltar a atenção para o nosso país, as diretrizes iniciais de política econômica do governo Lula vêm sendo fortemente criticadas. Tal política era necessária ou o tamanho da “pancada”, os efeitos de violenta contração (altíssimas taxas de juros, superávit fiscal de 5,41% do PIB no semestre) poderiam ser evitados?

Luciano Coutinho – Essa política foi necessária, porque o governo Lula herdou o Brasil inteiramente quebrado, sob aguda crise cambial. Assim havia duas alternativas. Uma radical, de fechar o país e ir para o confronto para o qual não havia condições de sustentação, o que seria equivocado por provocar efeitos traumáticos de longo prazo na relação entre o país e o sistema internacional. A opção tomada foi a possível, e indispensável, feita com eficiência dentro do quadro de políticas que se colocavam como paradigma. O momento mais grave da crise foi ultrapassado. O impacto da desvalorização do câmbio sobre a inflação do ano passado foi contornado. A inflação foi derrubada e, até mesmo, está em uma trajetória preocupante de deflação. A debilidade das contas externas não foi totalmente superada, mas o processo está em curso. Ainda não é possível dispensar inteiramente algum acerto com o Fundo Monetário Internacional (FMI) para 2004. Isso porque o superávit que devemos fazer neste ano, de 17 a 18 bilhões de dólares não será suficiente (tanto para pagar os encargos normais que o país já acumulou, como também os empréstimos do FMI feitos em 2001 e 2002 pelo governo Fernando Henrique e que são de curto prazo). Para termos maior grau de manobra, teríamos de ter um superávit muito maior. Por isso se torna necessário reiterar esse superávit por vários anos. Em 2004 é essencial que sustentemos outro grande superávit de tal forma a ir fortalecendo a posição cambial brasileira. Saímos da UTI, mas ainda estamos convalescendo da crise.

Entendo que essa política ortodoxa deva ser encarada como uma etapa transitória – como se fosse um movimento tático – para criar condições para uma estratégia de crescimento em torno de um projeto nacional de desenvolvimento consistente, cuja premissa essencial é fortalecer as contas externas brasileiras e a posição de reservas do país. Um país que continua dependente dos mercados, que possui uma dívida muito grande, que não consegue pagar, que depende de novos refinanciamentos… fica vulnerável aos rumores e vaivéns dos mercados. Assim, a construção de um balanço de pagamentos robusto e a manutenção de um superávit comercial forte durante vários anos fazem parte de um caminho inescapável se se deseja reconstruir a autonomia e soberania nacionais sobre o processo de crescimento econômico.

A falta de clareza a respeito disso seria fatal para o governo. Nâo acho que falte clareza ao governo atual, muito embora em certos segmentos da área econômica persista a visão herdada do governo anterior – mesmo porque certas cabeças persistiram na focalização da disciplina fiscal como o único caminho que asseguraria a autonomia do país.

Hoje o Brasil já tem duas condições básicas: inflação dominada e regime fiscal forte. Esse último fator decorre de o Estado brasileiro ter uma eficácia de arrecadação de receita e capacidade de imposição tributária, o que é um elemento de seu fortalecimento. Nosso regime fiscal está sendo fortalecido pela reforma da Previdência, que reforçará a sanidade fiscal de longo prazo do Estado. Essas duas condições são bases importantes para um novo ciclo de crescimeto. Falta o terceiro pilar, essencial, que é justamente o robustecimento das contas externas. Vejo esse processo em curso, mas ainda há carência de uma estratégia clara, eficazmente articulada e coerentemente orquestrada a partir da política de governo. Portanto, para escaparmos de um movimento tático transitório para uma consistente estratégia de longo prazo é preciso construir as bases para uma política firme de competitividade do setor produtivo brasileiro.

Necessitamos em médio e longo prazos que a competitividade e desenvolvimento industrial avancem e que o Brasil vá transitando de forma realista em direção a uma nova pauta de exportação. Que a estrutura industrial brasileira possa se reestruturar numa direção contemporânea e possa recuperar o atraso a que foi submetida nos últimos tempos. O setor agrícola tem prestado contribuição ao setor externo ao exportar produtos, gerando superávit de 20 bilhões ao ano. Mas embora devamos preservar essa base, sabemos que em médio e longo prazos ela possui baixa elasticidade e tem peso declinante no comércio mundial, pois envolve produtos com taxa de crescimento relativamente baixo.

Por outro lado, a estrutura de importação brasileira está centrada nos bens e serviços de alta tecnologia, de base eletrônica sofisticada, de bens de capital que têm alta elasticidade ou crescimento. Então é indispensável que o desenvolvimento industrial brasileiro avance nessa direção.
A desnacionalização da economia brasileira é fato, especialmente após 8 anos de mandato de FHC. Hoje, particularmente a indústria de bens de capital e a eletroeletrônica contribuem negativamente para o suprimento das necessidades do saldo na balança de comércio. Dado a importância destes setores, como reconstruir uma política industrial que afirme nossa soberania?

Luciano Coutinho – Há várias avenidas para reconstruir uma política de desenvolvimento industrial, o que requer uma estratégia de longo prazo. Evidentemente que em curto prazo o Brasil tem de se valer de suas bases de competitividade já consolidadas, que envolvem os produtos semiprocessados, agronegócios, commodities etc. Nesse campo o país deveria fazer grande esforço para reforçar a empresa nacional para que ela possa operar globalmente e enfrentar a concorrência mundial de maneira mais habilitada, e possa assim ganhar novos mercados. O mercado chinês é um exemplo. A China não é apenas exportadora, é também um dos maiores importadores, pois a base de recursos naturais chineses relativamente ao tamanho de sua população a obriga importar. Podemos aproveitar melhor essa complementaridade Brasil-China, uma vez que o intercâmbio comercial entre os dois países está aquém do que poderia ser.

O Brasil tem de se defrontar também com o protecionismo norte-americano e europeu exatamente nos setores em que ele é competitivo. Daí se forma o núcleo duro nas negociações externas brasileiras. Há aqui uma agenda importante. Temos de tomar iniciativas agressivas nessas áreas em que somos competitivos, pois precisamos de resultados em curto prazo. Possuímos um conjunto de setores que podem dar resposta: siderurgia, mineração, celulose e papel, agronegócios (suco de laranja, café, fumo, soja, carnes). Não basta apenas exportar os produtos, mas tentar avançar para produtos de maior valor agregado. Essa é uma agenda muito clara, e até de baixo risco, porque não estamos forçando em setores que ainda irão ter de demonstrar resultado – são setores já competitivos.

Há um outro conjunto de setores que não são de tecnologia sofisticada, em que o Brasil já teve vantagens mas perdeu mercado – no período de câmbio sobrevalorizado – e que pode retomar a iniciativa. Perdemos espaço no setor de calçados, têxteis e confecções, alimentos processados, manufaturas leves, automobilístico e autopeças, bens de capital mecânicos (em que o conteúdo metálico e de energia é alto e onde somos competitivos). Para esses setores é importante estruturar políticas mobilizadoras da cadeia industrial brasileira, mobilizando o empresariado, que é em boa medida de capital nacional, na direção de políticas muito organizadas, dando um tratamento ao conjunto da cadeia para fortalecer sua capacidade empresarial, capacidade tecnológica, treinamento e capacitação da força de trabalho, visando obter padrões de qualidade de design e valor dos produtos.

Há uma vasta gama de iniciativas que podem ser articuladas nesse amplo pedaço da estrutura industrial brasileira para se obter resultados concretos. Aqui se abre espaço para as articulações regionais. Um projeto de desenvolvimento nacional necessita dar respostas regionais. Boa parte desses ramos industriais citados tem expressão regional importante, distribuídas pelo país e que necessitam ser mobilizadas. A política de desenvolvimento deve contemplar e responder às demandas regionais. Se isso não for feito, o país fica refém da guerra fiscal e de iniciativas predatórias dos interesses particularistas.

Há ainda um terceiro bloco de setores econômicos de alta tecnologia, intensivos em inovação tecnologia – o núcleo da chamada terceira revolução industrial. Aqui se envolve o complexo das tecnologias de informação, as pontas sofisticadas na área química e farmacêutica… – onde retrocedemos – e há uma política de médio e longo prazo a ser enfrentada. Nossas bases locais de produção e um conjunto de empresas nacionais foram desarticuladas na última década e a empresa estrangeira substituiu-as de maneira muito rala e insuficiente. Em alguns segmentos ainda temos bases produtivas locais importantes, como no de equipamentos de telecomunicações e na eletrônica de consumo (em grande parte localizada em Manaus). Para esses setores a política é mais difícil, pois há excesso de capacidade em escala mundial, e a capacitação tecnológica é requisito essencial. Buscamos aliança com o capital estrangeiro para produzir aqui, ou se se pretender desenvolver com base em capacitação de empresa nacional há um longo caminho apercorrer. Mas tudo isso deve ser enfrentado se mirarmos no longo prazo. Precisamos instalar e desenvolver bases locais eficientes para desenvolvimento desses setores.

Por último há um conjunto de setores em que o domínio da empresa estrangeira foi tão avassalador que as políticas terão de transitar invariavelmente por alguma forma de articulação e negociação com as grandes empresas estrangeiras. Sem um Estado nacional capaz de negociar, dirigir e organizar essa articulação as empresas não conseguirão responder por conta própria. A valorização da plataforma brasileira de empresa multinacional na divisão mundial dentro da empresa será mais ou menos nobre ou agressivo em termos de linha de produto? Isso passa por uma política de Estado em que o objetivo dessa agenda deveria ser valorizar a subsidiária brasileira de tal maneira que ela possa exercer um papel de exportadora, de compartilhamento de atividades tecnológicas mais nobres, em patamar mais desenvolvido que o atualmente praticado.

Vimos como é complexa a agenda de política industrial brasileira. Tal agenda requer indispensavelmente a participação e capacitação do Estado. Implica clareza e eficiência para construir os intrumentos e, ao mesmo tempo, discernimento para compor os interesses de uma maneira construtiva – uma habilitação que o Estado nacional brasileiro terá de desenvolver para poder cumprir a tarefa. Infelizmente a relativa desqualificação do Estado nos últimos anos enfraqueceu vários instrumentos. Alguns instrumentos chegaram a ser vetados pela arquitetura mundial de compromissos no âmbito da Organização Mundial de Comércio (OMC). Mas há espaços de manobra que podem e devem ser utilizados, mas para isso se deve recompor a competência de quadros técnicos do Estado – sem o que também não se articulam esses processos de uma forma ágil.

Estudos recentes mostram uma queda nos investimentos produtivos de 20,8% para 18,7% do PIB (1994-2002). Estima-se que esta taxa deveria ser de 25%, aproximadamente. Os investimentos públicos estariam hoje na ordem de cerca de 3% do PIB, quando, de imediato, necessitaríamos de algo em torno de 7%. De um lado, há ceticismo no grande empresariado produtivo; de outro, há terríveis restrições no gasto público pelos acordos com o FMI. Como sair disso?

Luciano Coutinho – Temos de escapar dessa armadilha de qualquer forma, e existem algumas escapatórias para isso. A base essencial é primeiro consolidar o processo de robustecimento externo, em curso, e que permitirá sustentar a redução de juros de forma irreversível. A redução de juros tem de ser progressiva, firme, sendo premissa dessa possibilidade. Pois com o diferencial de juros sobre os papéis públicos, ser risco, oferendo ao investidor uma possibilidade rentista extraordinária de obter retorno sobre o capital – isso inviabiliza o investimento produtivo. A ponte aguardada é a redução progressiva da taxa de juros.

Em segundo, a redução de juros abre um pouco de espaço fiscal, mas ainda assim não podermos contar com uma ampliação expressiva do investimento público. De tal maneira que a retomada do processo de investimento terá de combinar esse espaço limitado, porém crescente, das iniciativas de Estado com uma articulação com o setor privado de tal maneira a induzir o investimento privado.
A recomposição do investimento privado é essencial e deve ser feita com base em duas operações. Por uma, o Estado tem de auxiliar a reestruturação financeira do setor privado. Parcela relevente deste setor privado de capital nacional está sobreendividada e é necessário redigerir esse excesso de endividamento, em parte feito em moeda estrangeira. É necessário alongar perfis e criar condições de recapitalização. Em vários casos a reestruturação exige a troca do controlador por não existir mais viabilidade econômico-financeira. Esse movimento de reestruturação do setor privado deve ser operado pelo BNDES. É indispensável usar o instrumento precioso que é o BNDES e sua capacidade de crédito fundado num fundo parafiscal, o FAT, e na própria capacidade de alavancagem do BNDES para dar suporte ao investimento privado.

Num contexto em que a taxa de juros está caindo é possível apontar para a taxa de juros de longo prazo, a TJLP, também declinente em termos reais no longo prazo.
Mas será que a recomposição da capacidade de investimento do Estado, mais os recursos do BNDES, mais a participação com recursos próprios do capital privado reestruturado seriam suficientes? Ainda não!

É necessário mais, uma vez que subir a taxa de investimento de 18 para 25% do PIB é um esforço de grande magnitude e não pode ser feito da noite para o dia. Torna-se indispensável induzir o setor bancário a participar desse esforço.

O setor bancário foi beneficiário de um programa público de grande envergadura que assegurou sua higidez – o Proer, um programa que capitalizou em 25 bilhões de dólares o setor privado bancário brasileiro em meados da década de 90. É um setor que se encontra capitalizado, bem estruturado e rentável, pois se beneficiou extraordinariamente da rolagem da dívida pública, sem riscos e a taxas extraordinariamente altas. É chegado o momento desse setor ter o crédito como uma alternativa, até porque há a expectativa de que a dívida pública deixe de ser um grande negócio – crédito à acumulação produtiva. É necessário trazer o setor bancário a suportar, em conjunto com o BNDES e com o setor público, o investimento privado – e até o investimento público. Com isso não se busca uma política de confronto com o setor bancário nacional – ainda é um setor em grande parte nacional –, mas uma política de aliança. Seria uma grave fratura se tar aliança não for construída, podendo ser fator impeditivo do processo de subida da taxa de investimento. Sou cético quanto à possibilidade de podermos desenvolver em curto prazo mecanismos institucionais de poupança, como fundos de pensão, na escala necessária. Sou favorável que se desenvolvam tais mecanismos de fortalecimento da poupança institucional de longo prazo por ser importante mecanismo para dar suporte – ao funding desses investimentos –, mas isso também não amadurece da noite para o dia pois requer criar uma base. Há uma reflexão a ser enfrentada a respeito de como criar bases de cooperação e cofinanciamento, de suporte de redução do risco e de incentivo, de tal maneira que o negócio creditício à produção se torne uma alternativa para o setor bancário. Isso significa na verdade uma mudança qualitativa na orientação do Banco Central e do Ministério da Fazenda, que precisam olhar à necessidade de construir as bases de funding para o desenvolvimento, matéria que ainda não se instalou como problema para a reflexão – embora seja uma condição. Há aqui uma agenda de grande complexidade, mas que pode ser enfrentada. Os bancos são intermediadores de depósitos e de poupança e qualquer agressão à rentabilidade dos fundos e aplicações tem gravíssima repercussão sobre o amplo estamento de classes médias do país. Além disso há o próprio poder dos bancos enquanto instituições que manejam investimentos, sinalizam os fluxos de capitais, operam o comércio internacional, operam o crédito e a rolagem da dívida pública… Uma política de confrontação seria assim um equívoco.

Penso que a eleição do presidente Lula representou uma rara tentativa na história brasileira, até pelo cansaço de longos anos de crise e de destruição do projeto nacional, de uma aproximação de forças importantes do grande capital de base nacional – tanto industrial quanto bancário – em direção a um novo projeto político. Quero sublinhar que houve uma explícita e presente participação de grandes lideranças da área bancária e industrial em torno da candidatura Lula. Isso não é mero oportunismo em torno de uma candidatura vitoriosa ou mera movitentação de conveniência de oportunidade eleitoral.

Tenho a intuição de que a retomada de um projeto de desenvolvimento que consiga soldar concretamente esses interesses foi vislumbrada de alguma maneira naquela oportunidade da eleição. E é uma rara oportunidade histórica. Esse processo pode advir de um gesto inicial que o transforme numa soldagem efetiva. A tarefa de construir isso exige uma clareza muito grande quanto à estratégia, mas parece-me que há um déficit de clareza com relação a isso. Compete-nos, portanto, ajudar a construir este novo modelo. A intelectualidade brasileira é devedora do país no que se refere à formulação de alternativas construtivas. Vejo lamentavelmente nossa intelectualidade prisioneira por ter ficado em parte seduzida no governo Fernando Henrique Cardoso pela política liberal e em parte imobilizada politicamente. Agora, não pode correr o risco de ficar paralisada numa crítica sem uma capacidade alternativa de formulação que permita construir o futuro

O BNDES, tendo à frente a equipe do professor Carlos Lessa, apresentou um plano de investimentos com gastos de R$ 400 bilhões. Vozes agourentas, economistas tucanos ou de plumagem similar dizem que nada vai dar certo. Outros asseguram que o montante é irrisório. Qual a sua opinião? Com o desmonte do Estado, o endividamento público nas alturas, é possível ser otimista?

Luciano Coutinho – Podemos ser otimistas, porém é preciso construir as bases concretas de competência para isso se concretizar. Independentemente do montante dos investimentos propostos e de sua viabilidade, é positiva a proposição de um projeto dessa ambição. O desafio que precede é como estruturar as condições efetivas para financiar os projetos prioritários. Para tanto é fundamental recompor uma certa recuperação da capacidade pública, com a extraordinária alavanca que é o crédito do BNDES, mais a referida atração e aliança com o setor bancário privado, mais o sistema de poupança da população, de maneira coordenada, de forma a deslanchar tais projetos. Isso implica também em trazer a iniciativa privada para determinados projetos, delimitando-se bem seu campo de atuação.

Aqui aparece outro conjunto de desafios. Além da construção do funding para esses projetos, a delimitação de regras de participação do setor privado, de regulação do investimento privado em vários setores de infraestrutura precisa ser rapidamente equacionada. Estamos passando por um período transitório em que as regras anteriores – que presidiam o processo de privatização, e que foram em boa medida regras prenhes de inconsistência e desequilíbrios e que terminaram por problematizar esses próprios setores –, clamam por uma reorganização. Isso significa que um novo marco para regular os setores de energia, telecomunicações, setores de transporte, de logística etc, necessita ser expeditado. É esse outro desafio e mais uma vez há necessidade de clareza para compor os interesses. Visões que criem conflito público X privado ou hostilidade ou que não sejam capazes de articular soluções construtivas retardarão o processo. Há percepção de certo mal-estar em setores de investidores privados de algumas áreas quanto ao chamado risco regulatório. O governo precisa então focar com muita atenção sobre a maneira de armar esses marcos e papéis de uma forma clara, segura e convincente para mover os projetos.

Com isso quero dizer que compartilho com o otimismo e o considero sua construção ao nosso alcance, mas não podemos subestimar a complexidade e a dificuldade das tarefas que se antepõe a isso. Mais uma vez esse desafio só sublinha a indespensabilidade de quadros competentes e de capacitação para levar adiante o projeto nacional.

*José Carlos Ruy é jornalista e membro do Comitê Central do PCdoB; A. Sérgio Barroso é mestre em economia pela Unicamp e membro do Comitê Central do PCdoB; e Edvar Luiz Bonotto é doutor em direito pela PUC-SP. Entrevista realizada em 7/8/2003 em São Paulo

EDIÇÃO 70, AGO/SET/OUT, 2003, PÁGINAS 12, 13, 14, 15, 16, 17, 18