Este livro é uma coletânea de artigos produzidos a partir da década de 1970 quando, exilado em Paris, Quartim de Moraes abandonou seu doutorado em História da Filosofia Antiga para se "concentrar no estudo do Brasil", especialmente sobre a natureza de classe do Estado brasileiro.

O autor procura analisar as situações em que as Forças Armadas "extrapolam suas funções" e passam a assumir "o controle dos organismos essenciais do aparelho estatal, cessando de ser apenas o 'braço armado' do poder de Estado para tornar-se governo", ou seja, quando se instaura uma ditadura militar.

No Brasil, e na América Latina em geral, a "extrapolação funcional" foi uma resposta à crise do modelo de desenvolvimento capitalista e, por conseqüência, à crise da própria hegemonia burguesa. No entanto, o resultado dessa extrapolação, o seu conteúdo político e social, não pode ser extraído dessa constatação – a experiência brasileira e a peruana demonstram isso.

O regime militar peruano, instalado em 1968, foi um regime progressista fundamentalmente. Realizou uma ampla reforma agrária que melhorou o nível de vida das massas populares peruanas. Adotou uma política externa independente e aplicou um plano econômico que nacionalizou diversas empresas estrangeiras.

Aqui, os governos militares tiveram um conteúdo antipopular. Os militares sacrificaram o liberalismo político em nome da liberdade do mercado, da livre iniciativa. O projeto da grande burguesia monopolista, em aliança com o imperialismo e o latifúndio, foi assentado numa articulação entre o fascismo, no campo político, e o liberalismo, na economia. Provando que aqui liberalismo e fascismo não eram excludentes.

O autor também critica as teses que afirmam que as Forças Armadas teriam exercido papel de poder moderador no curso da história republicana brasileira. Para ele, pelo contrário, a participação dos militares na vida política cumpriu, em geral, um papel desestabilizador. Isso poderia ser demonstrado pelas crises ocorridas em 1911-1912, 1922-1926,1930,1937 e 1945. Nestes três últimos casos, embora as Forças Armadas tenham desempenhado "um papel decisivo na mudança do regime, a cúpula militar não reivindicou o poder para si". Em 1964, ao contrário, a cúpula militar tomou o poder e passou a exercê-lo diretamente.

No Brasil, as condições para a "extrapolação funcional" das Forças Armadas e a implantação da ditadura militar foram sendo gestadas a partir da Proclamação da República, mas se consolidaram no pós-30. "Foi a centralização do poder militar que criou as condições objetivas para que as Forças Armadas se tornassem sujeito político coletivo". Embora alerte que "a centralização do poder militar explica como se tornou possível a 'política do Exército', mas por si só não nos faz compreender o conteúdo desta política".

Para o autor, "foi a incorporação do pró-americanismo ao arsenal doutrinário das Forças Armadas brasileiras (…) que levou à institucionalização do pensamento antidemocrático". Gradualmente, a cúpula das Forças Armadas abandonou a noção de "defesa nacional" substituindo-a pela de "segurança nacional".

Outro artigo emblemático é o que trata da situação do Chile, escrito às vésperas do golpe militar de 1973 Ele mostra todas as esperanças e ilusões depositadas pela esquerda latino-americana na experiência chilena de transição pacífica para o socialismo. A vitória da Unidade Popular, segundo o autor, "tornaria possível uma experiência que os céticos de toda sorte consideravam de antemão condenada: ultrapassar a dominação burguesa a partir da legalidade burguesa, transformar o conteúdo econômico, respeitando as formas políticas, em resumo, a via legal, pacífica, de transição para o socialismo". Poucos dias depois da publicação desse artigo os militares derrubaram o governo socialista de Allende para implantar uma das piores ditaduras do continente.

Os últimos capítulos do livro em questão tratam da conjuntura brasileira da década de 80, especialmente dos limites da transição democrática no Brasil de Figueiredo à Nova República, chegando ao conturbado processo de implantação do neoliberalismo.

Por tudo isso, o livro de Quartim de Moraes ajuda-nos a compreender melhor as vicissitudes do processo político latino-americano, e brasileiro, especialmente a partir da década de 1960. Segundo o autor, as causas do nosso drama estão relacionadas, em última instância, ao fato de que, embora tenhamos mudado de regime, "o poder do dinheiro continua a manter o dinheiro no poder".

EDIÇÃO 70, AGO/SET/OUT, 2003, PÁGINAS 81