Vinte anos de comunismo
Vocês vejam até que ponto chega a distração de um sujeito. Estava aqui pensando naquele velho e surrado dilema de escritor: o que escrever, meu deus? A coluna entra amanhã e nenhuma idéia que preste! Quem sabe uma data querida, hein? Ninguém morreu? Ninguém nasceu?
Fui à Linha do Tempo do Vermelho. Procurei alguma coisa que desse um número redondo, tipo 100 anos, ou 45…
– Não, cara! Quarenta e cinco é o maior atraso!
Sessenta e cinco, então: o que aconteceu em agosto de 1938? Muita coisa, mas nada que me dê uma crônica. Bão, sejamos mais modestos: 1983. Invertamos o 38 e vamos a 83.
Me lembrei, olhaí: em agosto de 1983, esse cidadão que vos fala, ingressou no Partido Comunista do Brasil. Isso dá 20 anos de comunismo numa vida de 36. Pronto, achei assunto:
Foi numa tarde fria, como essa que temos vivido aqui em Sampa: frio sob o sol. Vinha eu tiritando e ponderando sobre o recorrente convite que me era feito por um colega de escola. Já tinha lido estatuto, manifesto-programa (“É grave a situação do país e do povo…”), já tinha ido a reuniões. E resistia. Por quê?
Meu pai foi sindicalista. Trabalhava, nos anos 50, na companhia de bondes da cidade de São Paulo. Operador de estação. Teve participação ativa numa greve que lhe custou o emprego. Chegou a ir a uma reunião em que estava presente José Maria Crispim, do Partido. Quase se filia ao antigo PCB – o velho Partido Comunista do Brasil.
Perdido o emprego, que lhe garantia os estudos e a sustentação da família – seus pais e irmãos -, ele foi parar em Brasília: chefe do almoxarifado das obras referentes ao Congresso Nacional. Voltou de lá conservador e janista. Quando o maluco renunciou, ele renunciou também à política e nunca mais votou em ninguém, até que apareceram Luiza Erundina em 1988 e Lula em 1989.
Ele vivia alertando os filhos sobre os perigos da política, de se meter em agitação. E nos contava o que aconteceu com seu futuro a partir dos relatos de um passado heróico, em que se meteu em piquetes, invadiu bondes para de lá arrancar fura-greves à tapa.
Pobre do velho. Pensando estar vacinando o filho contra o vírus da rebelião, alimentava no garoto os primeiros germes da revolução.
No dia em que me viu lendo as memórias de Gregório Bezerra, teve um treco. Rasgou o livro – que nem era meu – e o jogou no telhado aos pedaços. Neste tempo, eu ainda nem sonhava com o PCdoB. Mas já lia Ferreira Gullar e acompanhava as coisas pelos jornais.
Por tudo isso, naquela tarde, eu ponderava seriamente sobre o passo que iria dar. Dezesseis para dezessete anos, sem independência financeira… “O que iria pensar meu pai?”, era a pergunta que me formulava já à boca da saída do metrô Jabaquara, rumo à Avenida do Contorno, em demanda do Centro Cultural do Jabaquara.
Já no meio da avenida, me vem de lá Ivan Prado, meu colega de Brasílio Machado: calça jeans, camiseta branca, tênis, bolsa de couro a tiracolo. O frio comendo, e o cara feliz, de camiseta.
– Ô, meu! Fui te procurar lá no Centro Cultural. Precisava falar uma coisa com você.
– Eu também quero falar com você – respondi.
– O que é?
– Resolvi entrar pro Partido.
Meus amigos, a cena foi, pra mim, espantosa. O rapaz fechou os dois punhos, ergueu-os no ar e começou a pular e a gritar no meio da avenida. Parecia que o Timão tinha feito o gol que definia todo o campeonato. Confesso que fiquei desconcertado. Não sabia como retribuir a efusão, a euforia. Só soube perguntar, entre um riso amarelo e outro:
– Escuta, precisa de foto?
Ivan caiu numa gargalhada de chorar:
– Foto pra quê, meu?!
– Sei lá! Não sei… pra carteira…
Outra explosão. O sacana se dobrava na calçada. Mais tranqüilo, pousou a mão em meu ombro e me falou de clandestinidade, de ilegalidade e coisas do gênero. Passou o resto da tarde se divertindo às custas de minha ingenuidade. Mas, ao contrário de me aborrecer, vi naquilo o sinal de que estava incorporado, que era da turma, que era pertencia ao Partido da classe de meus pais e avós – aquele que, ao libertá-los, libertaria a mim e aos deserdados de toda a Terra.